
As duas faces da educação
Simon Schwartzman
Publicado em O Estado de São Paulo, 29 de junho de 1979, p. 2
Houve uma época, dentro e fora do Brasil, em que a educação
para todos era vista como a solução para todos os males. Nos anos 20 e 30,
os esforços das "pioneiros da educação nova" - Anísio Teixeira à frente
- de criar no Brasil um sistema abrangente e moderno de educação basica
tinha um grande objetivo político, que era democratizar o País da maneira
mais profunda possíveL Um sistema escolar público, uniforme e gratuito,
e de boa qualidade,proporcionaria a todos a mesma chance de acesso aos benefícios
do sociedade, e eliminaria as diferenças de berço entre ricos e pobres,
capitalistas e trabalhadores, pretos e brancos.
A história não quiz, como sabemos, que o projeto da educação
nova se concretizasse. A ele se opôs o Estado Novo, que substituiu a idéia
de um sistema educacional descentralizado, comunitário, por um sistema administrado
pelo Estado, e dividido em dois grandes estratos - um de nível primário, para
educar as grandes massas para o trabalho, e outro de nível secundário, mais
restrito e de tipo académico, para a formação das elites. A ele se opôs também
a Igreja Católica, em defesa do ensino privado e da educação religiosa.
A intensidade dos conflitos entre as diversas tendências na
área educacional mostrava que todas, no fundo, acreditavam nos efeitos redentores
da educação, e por isto dis putavam com tanto afinco o controle de seu destino.
É possível que, se os reformadores da educação pudessem ter ido mais longe
do que foram, hoje tivéssemos um sistema educacional melhor; mas as ilusões
sobre o alcance politico e social da educação, como fator isolado de progresso
e democratização, já perderam muito de sua força. Isto talvez explique por
que a questão educacional parece não mais atrair, como o fazia antes, a atenção
dos setores intelectuais mais vivos do país.
Na visão mais antiga, a educação era vista como uma maneira
de formar as pessoas, e isto teria consequências em relação ao seu comportamento
futuro em todos os aspectos da vida social, inclusive no mercado de trabalho.
Na visão mais corrente hoje em dia, a educação deveria principalmente treinar
as pessoas para o exercício de suas funções profissionais. Nesta perspectiva,
a educação de tipo mais clássico e geral é criticada como ornamental e inútil,
e substituida pelo treinamento prático para a vida do trabalho. Ela deixa,
assim, de ser um simples "consumo", e passa a ser um investimento" economicamente
calculável.
O que estas duas visões não incorporam é um entendimento mais
aprofundado do relacionamento que existe entre o sistema educacional e o sistema
de estratificação da sociedade Existe uma versão estática e uma versão dinâmica
deste relacionamento.
A versão estática, apoiada por um volume impressionante de pesquisas
de todos os tipos, afirma que os poderes de modificação social da educação
são ilusórios, e que o sistema educacional não passa de simples mecanismo
de reprodução do sistema de estratificação social - ou seja. de mecanismo
pelo qual os privilégios e as diferenças sociais de uma geração são transferidos
para a geração seguinte. Não há sistema educacional, por mais democratizado
que seja, que tenha conseguido efetivamente eliminar as diferenças de berço
entre os estudantes, que determinam a escolha das escolas, as oportunidades
de acesso, e até mesmo o aproveitamento dos alunos dentro das salas de aula.
A versão dtndmica não nega que estas diferenças existem e se
mantém, mas toma em consideração o fato de que a própria estrutura social
não é estática. A urbanização, as inovações tecnológicas, a capitalização
da economia, tudo isto vai alterando a estrutura social, gerando novas formas
e oportunidades de emprego, e proporcionando chances diferentes de acesso
e mobilidade social aos que tenham obtido as qualificaçoes educacionais e
técnicas necessárias.
Além destas mudanças no sístema produtivo, existem outras que
todos conhecem, mas que geralmente não são levadas em conta pelos que tratam
de pensar nos efeitos sociais da educação. Estas mudanças afetam a estrutura
social de forma profunda: elas consistem na criação de formas novas de estratificação
e díferenciação social geradas e mantidas específicamente pelo sistema educacional.
É esta a face oculta da educação com a qual os pioneiros da escola nova não
contavam, e que faz com que a educação, em vez de fator necessário de progresso,
funcione muitas vezes como elemento de conservadorismo e estagnação social.
A educação funciona como mecanismo autônomo de estratificação
social quando ela serve como meio de discriminar as pessoas. "Falar bem",
"escrever bem", possuir tal ou qual diploma são formas pelas quais as pessoas
são incluidas ou excluidas de certos círculos, do acesso a certos empregos,
do direito a determinados benefícios sociais. Quando este aspecto da educação
predomina, o conteúdo do que é ensinado deixa de ter importância, e passa
a ser subordinado à forma e à aparéncia: usar a língua "corretamente"; obter
as notas necessárias, obter e registrar os títulos... Este processo é tanto
mais grave quan to mais o sistema educacional cresce e se desenvolve de maneira
independente e separado de transformações sociais mais profundas. Os educados
por este sistema, tanto quanto muitos dos educadores, têm como único capital
social sua própria educação, seus próprios títulos, e por isto tendem a valorizar
cada vez mais a educação como a coisa mais importante que alguém possa almejar,
e a meta mais importante para o País. E é aqui que surge o grande paradoxo
da educação formal: os que mais se beneficiam dos privilégios da educação
formal são, justamente, os que mais defendem os ideais antigos que viam na
educação o instrumento da democratização e da igualdade social...
A conclusão de tudo isto não é que a educação seja um mal em
si, ou que não ter educação é melhor do que tê-la. A conclusão principal é
que o problema educacional deve ser entendido em suas relações mais profundas
com outros aspectos da sociedade, e que uma política social que não tome em
consideração as duas faces da educação está fadada a alimentar um monstro
devorador de recursos que acaba por criar muito mais problemas do que, em
última análise, resolver.
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