A política da Igreja e a educação: o sentido de um pacto

Simon Schwartzman

Trabalho realizado no Centro de Pesquisa e Documentação em História contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. Publicado em Religião e Sociedade, 13/1, março 1986, pp. 108-127.


I

Nunca, na vida republicana brasileira, a Igreja Católica teve presença política tão importante quanto nos anos 30. Estes eram, no entanto, os anos de Getúlio Vargas, gaúcho criado na tradição castilhista, positivista e anti-clerical de seu estado. O pacto selado naqueles anos entre a Igreja e o regime getulista é um episódio ainda pouco estudado e compreendido. Os poucos estudos que existem a respeito se fascinam, sobretudo, com o intenso ativismo político do Cardeal do Rio de Janeiro, D. Leme, deixando de lado a profunda influência que a Igreja exerceu, naqueles anos, na área de educação, da política trabalhista e em muitos outros aspectos da política social então adotada. Para entender este pacto, não basta contar a história(1); é importante, também, identificar suas raízes mais profundas.

do arquivo Gustavo Capanema, FGV/CPDOC

Poucos entendem hoje a paixão e os conflitos que as questões de educação provocavam no passado. Na perspectiva dos anos 80, as atividades educacionais aparecem freqüentemente como uma rotina aborrecida e sem muitas perspectivas, que só pode entusiasmar aos que desenvolvem uma vocação pedagógica peculiar. O sistema educacional brasileiro parece ter entrado em um longo processo de degradação, sem entretanto ter atingido sua plenitude. Metade das crianças que vão à escola primária não passam do primeiro ano. O ensino secundário parece fadado à repetição enfadonha de conhecimentos desidratados, e preocupado exclusivamente com a preparação dos alunos para uma Universidade que, mais tarde, os lançará, pouco preparados, em um mercado de trabalho cada vez menos promissor. O ensino profissional, com raras exceções, é um fracasso.

Esta situação de calamidade geral não parece provocar, no entanto, maiores arrepios. Em parte, talvez seja por um anestesiamento coletivo, provocado pela crise geral de período. Em parte, também, é porque hoje já não se acredita tanto na força e importância da educação. A noção antiga de que pela construção moral e intelectual do homem seria possível mudar a sociedade já não encontra muitos adeptos. Prevalecem, ao invés disto, os dados que mostram como o desempenho escolar é determinado pela origem social das famílias das crianças e as teorias que apontam no sistema escolar nada mais do que um elo da grande máquina desenvolvida maquiavelicamente pelo Estado - ou pelo Capitalismo? - para se reproduzir eternamente. Quando mudarem as estruturas sociais, quando o Estado e o Capitalismo desmoronarem (mas como, se se reproduzem com tanta eficiência?) , então o problema educacional estaria resolvido naturalmente. A esta visão radical e milenarista se contrapõe uma outra, a de que o mercado de trabalho treina as pessoas que precisa, gera os mecanismos educacionais que necessita, e que, por isto, o problema educacional é um falso problema. Reativemos a economia, e a questão educacional se resolverá por si mesma. Duas visões opostas ideologicamente, mas coincidentes em um ponto básico: a educação não é vista como um problema em si mesmo, nem um meio específico para algo maior. Ela não passaria de um dado em um quadro muito mais amplo econômico, político que a arrastaria consigo em suas idas e vindas. Não haveria o que fazer, portanto, e nem mesmo que se preocupar muito com a educação. Ela não teria, como dizem alguns, especificidade própria.

Não era assim no passado, e as diferenças eram tanto de concepções e ideologias quanto da própria realidade. A história mostra que em praticamente todas as sociedades que desenvolveram cultura escrita ou mesmo uma tradição oral consolidada o acesso à educação foi um elemento importante de poder e prestígio social. Não se tratava, simplesmente, da competência técnica que a cultura proporcionava, e que podia ser utilizada nas guerras, no comércio ou na indústria. Mais do que isto, ter educação significava ter acesso e autoridade sobre os princípios morais da sociedade que serviam para obter o apoio das massas e o respeito dos poderosos. Se, para quem já detinha o poder, a educação era no máximo um adorno ou luxo desnecessários, para quem o aspirava ela poderia ser a própria chave para a criação de uma nova posição de liderança, para a exigência de novas formas de autoridade, ou pelo menos para um lugar seguro e prestigiado ao lado da coroa. Por isto mesmo, em quase todas as sociedades do passado, os letrados se constituíam em castas ou grupos à parte, que investiam o que podiam em conhecimentos que se tornavam cada vez mais esotéricos, e dos quais faziam derivar sua influência e poder, quando não sua riqueza.

Isto explica como a cultura humanística e literária, fortemente vinculada às tradições religiosas, sempre foi mais importante do que a cultura técnica, ligada à vida prática. O homem que sabe fazer um navio, construir uma casa ou montar um canhão tem como horizonte colocar-se a serviço dos poderosos e receber deles a recompensa pelos seus serviços. Já o homem que tem a sabedoria dos livros sagrados, das línguas mortas e dos rituais secretos tem poder e prestígio próprios, que os poderosos necessitam e dos quais dependem.

Na tradição judaica antiga, que Max Weber estuda como um dos antecedentes importantes da cultura ocidental, a educação se fazia no interior de cada família, de forma comunitária, e sem que houvesse muito espaço para o surgimento de uma classe sacerdotal constituída. A própria inexistência de um Estado nacional contribuía para isto. A Igreja Católica, no entanto, ao se incorporar ao Império Romano, foi aos poucos assumindo o monopólio não só do conhecimento, mas o que é mais importante: do direito de definir o que é válido ou não estudar, conhecer e aceitar como verdade. Desta posse do conhecimento tido como verdadeiro decorria o princípio de que também a ela caberia a missão de educar.

A revolta contra este tipo de dominação também se daria, freqüentemente, na esfera da cultura e do conhecimento na luta pelo direito de ler a Bíblia, de utilizar a própria língua e, mais tarde, de se fazer valer de um novo tipo de verdade que surgia e que prometia abrir as portas para um mundo novo, livre da ignorância, pobreza e opressão: o conhecimento da natureza, ou científico. É desnecessário lembrar que, junto com estas questões, estavam em jogo todas as demais, de tipo político e econômico.

Não teria sentido reconstituir aqui como esta história evoluiu (o impacto da Reforma Protestante e do Renascimento, a Contra-Reforma, o desenvolvimento do ensino leigo, os conflitos havidos na Europa e principalmente na França) pelo controle do ensino por parte da Igreja e do Estado, e o papel jogado por grupos protestantes e minorias étnicas e lingüísticas em todo este processo. Basta lembrar que estes conflitos ainda estavam bem vivos quando, a partir da década de 20 deste século, começam a se fazer sentir com mais força em nosso meio.

II

É importante lembrar, ainda que de forma abreviada, a posição peculiar que ocupa a Igreja Católica na história brasileira, sem o que os acontecimentos dos anos 20 e 30 tornam-se incompreensíveis

Ao contrário do que freqüentemente se supõe, o Brasil nunca foi urna área de predomínio indisputado e tranqüilo da Igreja Católica, apesar ou possivelmente por causa da íntima relação que sempre existiu entre a Igreja e o Estado português, e que teve continuidade durante o Império. É bem verdade que a quase totalidade da população brasileira sempre se declarou católica, e a Igreja proporcionava o único código moral e ético disponível no país. A Igreja detinha o monopólio dos principais atos cívicos e ritos de passagem que faziam parte da vida de todos o batismo, o casamento, o enterro -' e estar fora da Igreja era sinônimo de não gozar da cidadania que estes atos e rituais simbolizavam. Não se tratava somente de símbolos: ainda no Império, o juramento católico era necessário "para colar grau nas faculdades do Estado, para exercer empregos públicos, para desempenhar as funções de deputado ou senador".(2) Ao mesmo tempo, a instituição do padroado dava à coroa o direito ao "beneplácito", a ser dado ou não às encíclicas, decretos e outras normas emanadas da Igreja Romana, e ainda garantia à autoridade civil interferência na nomeação dos bispos. Esta interpenetração entre a Igreja e o Estado significava, na prática, que as questões religiosas eram freqüentemente tratadas como meramente políticas, ou de qualquer forma leigas, enquanto que a religião era freqüentemente utilizada para os fins políticos do Estado. Fosse a sociedade portuguesa, e mais tarde a brasileira, profundamente religiosa, isto significaria a existência de um regime teocrático, em que a hierarquia católica governaria sobre o Estado e a sociedade. O que ocorria, no entanto, era exatamente o contrário: o estado leigo prevalecia.. e a Igreja tinha que se contentar com um papel relativamente menor, de aceitação mais ou menos pacifica da autoridade civil e dos costumes do povo, em troca de uma certa parcela de autoridade e de poder.(3)

O resultado foi o que hoje se denominaria de "catolicismo habitual", ou de fachada. As normas éticas e morais da Igreja eram constantemente violadas, deixando todos em um estado mais ou menos permanente de pecado, mas que não parecia provocar maiores ansiedades, e era compensado. pelos ritos das absolvições. As formas mais intensas de religiosidade ocorriam, como ainda ocorrem, freqüentemente à margem ou ao arrepio das autoridades eclesiásticas, nos cultos sincréticos, nos movimentos milenaristas e mesmo, mais recentemente, nas diversas variedades de espiritismo e protestantismo, em suas vertentes mais fundamentalistas.

Não é possível falar da Igreja Católica nesse período sem distinguir o clero regular, e mais especialmente os jesuítas, do clero secular, espalhado pelas paróquias do país. Os jesuítas formavam uma casta sacerdotal organizada e fortemente hierarquizada, que tinha condições de disputar com a coroa portuguesa o domínio temporal sobre a colônia. Para eles, o controle da educação, que mantiveram no Império português de forma quase monopólica. até sua expulsão em 1759, era somente parte de um projeto hegemônico muito mais ambicioso, que ia do controle doutrinário da Universidade de Coimbra à organização política e econômica dos índios na região das Missões. É a grandiosidade e ambição deste projeto que explica, em última análise, o conflito da Ordem com o Estado português, que leva à sua expulsão.

Já o padre secular, formado nos seminários que surgiam pelo país, era geralmente uma figura de segundo plano, agregada aos donos da terra, aos quais se aliava e para os quais desempenhava as funções rituais de praxe. além de se dedicar eventualmente ao ensino das primeiras letras e da religião. Para os filhos das melhores famílias que buscassem uma educação mais aprofundada, no entanto, o caminho era Coimbra, desde o final do século XVIII sob o impacto das reformas pombalinas, ou a França, a Bélgica e, mais tarde, as escolas de direito, medicina e engenharia das grandes cidades brasileiras.(4) A carreira eclesiástica era considerada como uma opção menor, buscada por pessoas de origem social pouco definida, e que através dela buscavam uma posição de relativo prestígio que de outra forma não conseguiriam.

Estes delineamentos são suficientes para termos uma idéia do papel que a educação, e a atividade intelectual como um todo, desempenhavam no Brasil colonial, e que continuou após a independência. Por um lado, ela era instrumento de uma classe sacerdotal organizada, que disputava o poder temporal.. e que se viu finalmente derrotada no confronto com o poder real. Para a elite política, a introdução de um novo tipo de educação, supostamente mais moderna e adequada do que a jesuítica, era uma arma em seu confronto com os inacianos. Sem chegar às rupturas do protestantismo, a Reforma Pombalina buscou em outras congregações religiosas menos aguerridas as armas que necessitava para este combate, e pouco a pouco levou a elite luso-brasileira a. se abrir para o que ocorria no resto da Europa, incorporando elementos das doutrinas cientificistas e naturalistas que então fervilhavam.

Para o resto da população, a educação formal quase nada significava, a não ser para os poucos que adquiriam suas primeiras luzes nos seminários e a partir daí buscavam um espaço na vida política e cultural que, muito aos poucos, ia se abrindo. Exemplar, neste contexto, é o papel do Seminário de Olinda e, particularmente, de Azeredo Coutinho, que, na frase de Antônio Cândido, "talvez encarne como ninguém as tendências características de nossa Ilustração - ao mesmo tempo religiosa e racional, realista e utópica, misturando a influência dos filósofos ao policialismo clerical".(5) É desta combinação aparentemente irracional, mas inteligível pela posição peculiar que ocupavam estes intelectuais, que emerge a geração de "sacerdotes liberais" que participam de movimentos independentistas, se filiam à maçonaria e, mais tarde, na pessoa de Feijó, defendem o fim do celibato por um ato político do Império brasileiro, o que levaria ao extremo o regalismo que, no passado, havia vitimado os jesuítas

A independência somente acentuaria estas tendências. Por um lado, o Império manteria o catolicismo como religião oficial, a instituição do padroado, o beneplácito e a delegação de funções civis à Igreja. Mas era uma Igreja enfraquecida, infiltrada pelo Iluminismo, com a espinha dorsal dos jesuítas partida. Por outro, as idéias naturalistas e cientificistas iam penetrando cada vez mais nas elites do país, ainda que sofrendo nesta passagem uma importante transformação. Na Europa, esta nova mentalidade fazia parte de duas forças gigantescas que iam, cada qual por seu lado, varrendo o que restava da ordem política medieval: o Estado absolutista que se modernizava e ampliava seus poderes, e a burguesia que crescia e afirmava seus direitos. A ciência acenava com a possibilidade de uma nova ordem mais racional, mais científica e possivelmente também mais totalitária do que a antiga. E, ao mesmo tempo, era a afirmação dos valores da liberdade de pensamento, da iniciativa individual, da razão comandada pela mão invisível do mercado de mercadorias e idéias. À Reforma Pombalina, e mais tarde ao Império brasileiro, só chega praticamente a primeira destas forças. A primeira escola superior do país é a Academia Militar (mas onde se ensina, basicamente, engenharia) ; as elites se organizam em sociedades secretas, e a aliança entre o modernismo das idéias e o absolutismo da política não é meramente casual.

É bastante evidente, neste quadro, a posição relativamente menor desempenhada pela educação religiosa, se comparada com o sistema de escolas oficiais e leigas que foi se implantando no pais a partir da chegada da família real portuguesa, para a educação das elites. Se esta posição inferior da Igreja causava fermentação no baixo clero, não era suficiente para desafiar o poder do Estado. Quando este desafio se deu, com a famosa "questão religiosa" do Segundo Reinado, sua orientação foi a oposta, ou seja, no sentido da reafirmação do poder da hierarquia da Igreja, e não da liderança dos intelectuais iluministas.

Basicamente, a questão religiosa girou ao redor do direito que teria ou não o Bispo de Olinda, D. Vital (e também mais tarde o de Belém, D. Macedo Costa), de ordenar a expulsão de membros de irmandades religiosas que fossem também ligados à maçonaria, ou de interditar o funcionamento destas irmandades enquanto suas ordens não fossem cumpridas. O que tornava a questão complicada era que as irmandades não eram associações meramente religiosas, mas cumpriam também funções civis. Mais do que um simples conflito de jurisdição o que se disputava era o papel da Igreja em relação ao Estado, em uma época em que a Igreja, em todo o mundo, buscava reafirmar sua posição de liderança e autoridade pela reafirmação de seus valores e conceitos mais tradicionais. Conforme indica Roque Spencer M. de Barros, o Syllabus Errorum, que acompanha a encíclica Quanta Cura, do Papa Pio IX, "condena sem apelação o racionalismo, absoluto ou moderado, o naturalismo, o indiferentismo, o latitudinatismo, a idéia da Igreja Livre no Estado Livre (isto é, a separação da Igreja e do Estado), o primado do poder civil, a idéia da dependência do poder eclesiástico, o liberalismo, o progresso, a civilização moderna etc., numa contraposição formal e absoluta entre a Igreja e a opinião moderna, declaradas incompatíveis".(6) São estas as idéias adotadas por D. Vital que o colocavam em linha inevitável de colisão com o Império. Em sua defesa nos tribunais, D. Vital argumentaria que, se o Estado brasileiro é católico, ele deveria ser, naturalmente, súdito da Igreja. "Com efeito", argumenta ele, se não se pode admitir que superior da religião católica Seja quem a ela não pertence, ainda menos se pode admitir que seja superior quem é súdito, porque súdito-superior envolve contradição nos termos".(7) Como sabemos, D. Vital terminaria na cadeia.

III

A República consumou, finalmente, a separação entre a Igreja e o Estado, institucionalizando, na própria bandeira do país, sua adesão ao positivismo. No entanto, a nova ordem política, se abriu espaço para as oligarquias dos grandes estados que o Império marginalizara, não incorporou de forma mais efetiva a nova intelectualidade que ia se expandindo junto com o crescimento das cidades e os albores da industrialização. Não havia muito espaço, no novo regime, para os que haviam desfraldado a bandeira do abolicionismo e agitado nas cidades as vertentes mais radicais do republicanismo. A República é, em muitos sentidos, menos "ilustrada" e modernizadora do que o Império, exatamente por transferir tanto poder aos estados e renunciar ao comando político centralizado que havia caracterizado o Segundo Reinado

A questão educacional surge, quase naturalmente, como o objeto de atenção desta intelectualidade que crescia de tamanho mas se mantinha marginalizada pela estreiteza do regime republicano. É fácil ver por quê. Se o país reconhecesse a importância da educação, os intelectuais e os educadores em particular passariam a desempenhar um papel central na vida nacional. Eles poderiam pôr em prática os instrumentos que acreditavam possuir e que seriam capazes de resolver os problemas do atraso, da pobreza, da ignorância e da falta de espírito público que assolavam a população brasileira. Mais atenção à educação teria que significar não somente mais escolas, mas também novas diretorias, secretarias e até mesmo um ministério para a educação -e desta forma lugares reconhecidos e remunerados para os intelectuais. É isto que explica, já na década de 20, o surgimento da influente Associação Brasileira de Educação, que promove concorridas conferências nacionais para discutir estes temas e cria o clima para os grandes projetos de reforma que se iniciariam ainda na década de 20, para se intensificarem nos anos 30.

Os propagandistas da educação, se tinham em comum sua posição marginal em relação ao regime, estavam por outra parte profundamente divididos. Por um lado havia os que mais tarde se identificariam como os "pioneiros da educação nova", um grupo heterogêneo que incluía nomes como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho, João Lira, Almeida Jr. Lourenço Filho e vários outros. Este grupo difundia a idéia, então considerada evidente, de que bastaria a modernização e racionalização do sistema educacional para que seus problemas começassem a se resolver. Fernando de Azevedo descreve os conflitos da época como, sobretudo, entre o velho e o novo, mentalidades antigas e modernas, um conflito quase de gerações. A expressão "educação nova", que provocava ódios e entusiasmos, ele reconhece ser bastante ambígua. Sua conotação principal era sobretudo pedagógica e inspirada nos princípios da liberdade, atividade e originalidade no processo de ensino, em contraposição ao ensino tradicional, essencialmente formal e baseado em memorizações. Além destes aspectos pedagógicos, que estavam possivelmente mais presentes nos discursos do que nas salas de aula das escolas reformadas, o "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", publicado em 1932, defendia a laicidade no ensino, a sua organização em escala nacional, a partir de princípios e normas gerais fixados pela União, e a atribuição de um papel absolutamente central ao Estado, "como órgão verdadeiramente capaz, nas condições atuais, de realizar o trabalho educativo".(8)

Tratava-se, em outras palavras, de aprofundar o projeto centralizador e intervencionista do Estado, que vinha da tradição do Império e que a República havia abandonado, mas que o governo provisório, com Vargas, parecia poder reviver. É contra tudo isto que se insurge a outra vertente, ou seja, o catolicismo militante.

Fernando de Azevedo, que percorrera pessoalmente o caminho do seminário tradicional às tentativas de modernização da educação, descreve a Igreja Católica no Brasil nos primeiros tempos da República como passando por "uma crise de lassidão de que no século XX, e sobretudo depois da grande guerra, devia reerguer-se apesar de graves obstáculos, para novas iniciativas nos vários domínios das atividades religiosas, sociais e culturais". Havia, segundo ele, "uma indiferença recíproca, senão quase uma dissociação , entre a Igreja e o século, entre a religião e as forças vivas da sociedade". As vocações sacerdotais, "cada vez mais raras, que eram colhidas no seio da família brasileira, isoladas e encerradas em seminários, já não partilhavam da vida dos outros estudantes."(9) O que não é claro é como, desta situação de desmoralização e apatia, surge o que ele mesmo descreveria como "o mais vigoroso movimento católico de nossa história, pela amplitude de sua ação social, por uma nova interpretação da Igreja e do século, pelo renascimento do espírito -religioso e nacional a um tempo e pela combatividade, nem sempre marcada pelo espírito ecumênico, de catolicidade, ou por uma grande largueza de vistas".(10)

Não seria aqui o lugar para reconstruir esta história, já tratada exaustivamente por outros autores.(11) O que mais chama a atenção nesses anos é sem dúvida o ativismo do Cardeal Leme, que se vale de momentos dramáticos como a inauguração da estátua de Cristo no Corcovado e a consagração do país a Nossa Senhora de Aparecida, ambos em 1931, para reunir multidões em praça pública e mostrar ao novo governo a força da Igreja e a necessidade de tomá-la em consideração na nova ordem política que estava sendo construída. A este ativismo da Igreja oficial se soma um outro componente novo, os intelectuais, os católicos leigos e militantes, cujo representante principal é o recém-convertido Alceu Amoroso Lima. Como a maioria dos intelectuais da época, eles estão profundamente insatisfeitos com o atraso do país, a ignorância e a má-formação intelectual e moral das pessoas, e a inépcia dos governos. Como os outros, acreditam que o caminho para a redenção do homem brasileiro é sua reconstrução desde dentro, a partir da educação. Como os demais, pretendem também desempenhar um papel importante nesta tarefa reeducativa e redentora. Intelectuais sempre brigam entre si, e talvez fosse meramente por acaso que, ao buscarem todos inspiração na França. uns se identificassem mais com o republicanismo dos dreyfusards, enquanto outros encontrassem mais inspiração no radicalismo conservador da Action Française.

Os católicos tinham, no entanto, sobre os liberais e republicanos, uma vantagem relativa importante, que era sua tentativa de reencontrar, sob o manto aparente da apatia e da indiferença do brasileiro, uma religiosidade mais profunda, que pudesse ser reavivada e lhe servisse de apoio e sustentação.

Ainda que enfraquecida, a Igreja não perdera sua rede de contatos e influência sobre a população espalhada por todo o território nacional, e para a maioria da qual as idéias inovadoras e reformistas que as elites traziam da Europa eram incompreensíveis ou absurdas. Diante da demissão do Estado, tanto a nível federal quanto a nível estadual, é a ela que as famílias mais .ricas recorrem para a educação de suas filhas e filhos, antes de mandá-los, quando podem, para as escolas superiores das grandes cidades ou da Europa.

É na combinação deste contato com a população mais pobre e interiorana com sua proximidade com os homens, e sobretudo as mulheres, das melhores famílias, que a Igreja se baseia para tentar, mais uma vez, assumir o papel hegemônico que a sociedade brasileira até então lhe negara. Não é evidentemente por acaso que ela vai buscar o nome de D. Vital para inspirar o centro de irradiação de idéias e de mobilização política que cria nos anos 20, primeiro sob a liderança de Jackson de Figueiredo, e mais tarde conduzido por Alceu Amoroso Lima. Assim como D. Vital, o novo catolicismo militante vai buscar o que havia de radicalmente mais conservador e ultramontano no pensamento da Igreja: a defesa da ordem, da hierarquia, da autoridade religiosa, da educação guiada pelos princípios religiosos e controlada pela autoridade eclesiástica e o ataque aos ideais, considerados deletérios, do liberalismo, do individualismo, da liberdade de informação e pensamento, e também ao poder do Estado, quando desprovido da supervisão da Igreja. Também como nos tempos de D. Vital, a nova militância surge em um contexto de reafirmação do poder e direção de Roma sobre sua Igreja Universal. A conseqüente "romanização" da Igreja Católica teve, entre outras conseqüências, um alinhamento muito mais próximo da Igreja brasileira com o ultramontanismo de Roma, um grande fluxo de padres estrangeiros para as paróquias brasileiras, e a busca de um papel político mais claro e significativo do que aquele a que a Constituição Republicana lhe destinara.(12)

É difícil imaginar como tal programa poderia pretender se efetivar no clima político dos anos 20 e 30. Por um lado, no entanto, ele dava fundamento a todo um trabalho de reafirmação da fé católica e dos princípios morais da Igreja, que sempre encontrava eco na população ante a demissão doutrinária e ideológica das elites políticas tradicionais, e que já havia servido de base para a atuação cada vez mais intensa de D. Silvério, Arcebispo de Mariana, na política de seu estado.(13) Por outro, a preocupação com a ordem e o horror à idéia de revolução leva a uma aproximação natural entre a Igreja e o poder constituído, Seja ele qual for, e à elaboração progressiva de um pacto que termina por se consumar em

IV

O estado de Minas Gerais, segundo a descrição de John Wirth, foi o berço do renascimento da militância católica conservadora no Brasil. Graças à liderança do Arcebispo de Mariana, D. Silvério Gomes Pimenta, a igreja desenvolve uma ampla ação de combate à laicização do ensino implantado por João Pinheiro, que culmina com a introdução do ensino do catecismo nas escolas públicas em todo o estado em 1928, sob a gestão de Francisco Campos, Secretário do Interior do governo Antônio Carlos e principal responsável pelas tentativas de modernização do sistema educacional em Minas Gerais nos anos 20. É certamente desta experiência mineira que Campos deduziu a importância de tê-la a Seu lado para projetos políticos mais ambiciosos e o espaço que havia para conquistá-la

Não há nada que indique ter sido Campos um homem especialmente católico, e suas idéias não provocavam entusiasmo em Alceu Amoroso Lima. Há uma carta que Alceu escreve a Mário Casassanta, em 1932, e que faz parte do Arquivo Gustavo Capanema, onde expressa sua inquietação sobre "o primado da ação sobre o ato, que é um dos pecados mais graves do 'mobilismo contemporâneo"'. Ele vê qualidades na Legião de Outubro, iniciada por Francisco Campos, Capanema e Casassanta, que denomina sem pejo de "fascista", mas adverte que ela só poderia ser realmente útil se mantivesse "o primado da inteligência como meio de defesa da supremacia da fé". De outro modo, prossegue, "através do hegelianismo, do primado da ação, continuaremos apenas no evolucionismo, no relativismo que provocam o ceticismo e que numa nacionalidade como a nossa, sem estrutura certa, sem ideais definidos, sem unidade geográfica e sem critério político, poderá ser o nosso desastre definitivo".(14) É uma condenação clara de toda a filosofia política de Campos, baseada nas idéias sorelianas do primado da ação, do irracionalismo como elemento irredutível da realidade social, a ser capitalizado pela audácia e liderança de um herói nietzschiano, que ele mesmo tratou, embora fracassando, de ser, e que depois buscou-se construir ao redor de Getúlio Vargas.

A revolução de 30 não provocou, entre os militantes católicos, a não ser sentimentos de hostilidade e de suspeita. O próprio fato de ser uma "revolução" já provocava arrepios em quem valorizava, acima de tudo, a manutenção da ordem constituída. Além disto, Vargas provinha do Rio Grande do Sul, estado há décadas sob o domínio absoluto de uma oligarquia inspirada no pensamento positivista, e trazia para o poder uma orientação centralizadora e de fortalecimento do Estado. Alceu Amoroso Lima, no início, define a revolução getulista como "obra da Constituição sem Deus, da Escola sem Deus, da Família sem Deus". Gustavo Capanema, que desenvolveria nos anos seguintes relação de íntima colaboração com Alceu, descreve Getúlio Vargas como "homem frio, inexpressivo; não achei nenhuma flama, nenhuma Simpatia; sem ardor, sem luz; não inspirando confiança". E mais tarde, sobre a missa que Getúlio participou em Minas, ao lado de Olegário Maciel e Afrânio de Melo Franco: "Getúlio não ajoelhou. Protestante? Dizem que tem um filho chamado Lutero. Positivista, talvez. Talvez nada".(15)

A Igreja buscava, neste momento, restabelecer sua posição e direitos que havia perdido quando da implantação da República. O ensino religioso nas escolas públicas era talvez o mais importante; além disto, o reconhecimento de efeitos civis para os casamentos religiosos, e o direito de os sacerdotes servirem o Exército não como soldados, mas como capelães. Eram estas as "emendas religiosas" que terminaram, finalmente, incorporadas à Constituição de 1934. Nesta época, a desconfiança entre a Igreja e o Estado já se havia transformado em um pacto de colaboração, que ganharia mais tarde sua dinâmica própria.

Ao Cardeal do Rio de Janeiro não faltariam, certamente, intermediários para negociar este pacto com o governo, a começar pelo Padre Leonel Franca.(16) Menos conhecida, no entanto, foi a atuação de Francisco Campos neste processo, que tinha por objetivo colocar a Igreja a serviço de um projeto político próprio

Ao lado de Getúlio nas conspirações de 30, Minas participa do governo provisório através de Francisco Campos, que assume em 1931 o novo Ministério da Educação e Saúde, de onde articula seus planos para vôos maiores. Por um lado, haveria que quebrar o poder da velha oligarquia mineira , encastelada no Partido Republicano Mineiro sob a liderança de Arthur Bernardes. Depois, haveria que constituir sua base de sustentação política própria, que, partindo de Minas, pudesse se espraiar para todo o país. Para isto, o papel da Igreja seria fundamental

O projeto é apresentado de forma detalhada em carta de abril de 1931 a Amaro Lanari, companheiro na organização da Legião de Outubro. Nela, Campos rememora seus antecedentes de colaboração com a Igreja em Minas Gerais, que o fazem insuspeito e "motivos de oportunidade ou de atualidade" para defendê-la. Diz que a Legião de Outubro, para ir mais longe ainda em seu programa de renovação e de disciplina espiritual, deveria pedir à Igreja "não Somente inspirações, mas também modelos e quadros de disciplina e ordem espiritual". Passa, depois, a descrever o conteúdo das emendas religiosas, "das quais fui o autor espiritual e apoiei na Câmara dos Deputados", e que São exatamente aquelas que seriam adotadas pela Constituinte de 1934. Logo depois, em abril, escreve a Getúlio Vargas propondo a decretação imediata do ensino religioso nas escolas públicas.(17)

Nesta carta a Getúlio Vargas, Campos defende a assinatura de um decreto autorizando o ensino religioso nas escolas públicas que, na aparência, não se limitaria ao catolicismo, mas atenderia às preferências de cada um. Depois de justificar o projeto, Campos acentua que, "neste momento de grandes dificuldades, em que é absolutamente indispensável recorrer ao concurso de todas as forças materiais e morais, o decreto, se aprovado por V. Excia., determinará a mobilização de toda a Igreja Católica do lado do governo, empenhando as forças católicas de modo manifesto e declarado, toda a sua valiosa e incomparável influência no Sentido de apoiar o governo, pondo ao Serviço deste um movimento de opinião de caráter absolutamente nacional".(18)

Não seria aqui o lugar para reconstituir, em detalhe, como este pacto se desenvolveu nos anos Seguintes. Em 1932, Francisco Campos, sob a Suspeita de envolvimento com a Revolução Constitucionalista, cai no ostracismo, do qual só ressurgiria com o Estado Novo. Seu protegido e sucessor na Secretaria do Interior de Olegário Maciel, Gustavo Capanema, rompe com Campos, assume interinamente o governo de Minas com a morte de Olegário Maciel, mas termina preterido para o cargo, com a nomeação surpreendente de Benedito Valadares. Em 1934, no entanto, pelo menos três fatos demonstram como o projeto do pacto havia frutificado: as emendas religiosas são incorporadas à Constituição; Getúlio Vargas, em um ato de acatamento à autoridade da Igreja, se casa no religioso, após anos de vinculo estritamente civil; e Gustavo Capanema é empossado no Ministério da Educação e Saúde, após negociações das quais participou Alceu Amoroso Lima, que se transformaria. daí por diante, em mentor espiritual e intelectual do Ministro e de toda a atividade educacional no país.

V

O texto manuscrito que Alceu Amoroso Lima encaminha a Capanema em 1934, delineando o que a Igreja esperava do governo, vai muito além do que as emendas religiosas haviam conseguido. A educação do país deveria ser estruturada segundo princípios fundamentais de base católica, que serviriam como critérios para a seleção dos professores das escolas e universidades. O "ecletismo pedagógico" e o "bolchevismo'" deveriam ser rigorosamente excluídos; as humanidades clássicas deveriam ter lugar predominante nas escolas; um plano nacional de educação calcado em "filosofia sã" deveria ser elaborado, e para isto uma Convenção Nacional das Sociedades de Educação deveria ser convocada, mas "com as bases principais previamente assentadas". Faculdades Católicas de Teologia deveriam ser implantadas nas universidades, e assim por diante. O documento propunha também medidas correlatas na área sindical, incluindo a "seleção cuidadosa dos funcionários do Ministério do Trabalho e das diretorias?dos sindicatos, um Programa de publicações e periódicos que difundissem a concepção cristã do trabalho' , , e cumprimento da legislação social.(19)

As coisas não ocorreriam como era esperado, e em junho de 1935 Alceu Sente que O país ameaça tomar rumos profundamente contrários aos que desejava. "A recente fundação de uma universidade municipal (a UDF, dirigida por Anísio Teixeira) " com a nomeação de certos diretores de faculdades que não escondem suas idéias e pregações comunistas, são a gota d'água que fez transbordar a grande inquietação dos católicos", escreve ele. O que querem os católicos, diz Alceu, é a ordem pública, a paz social, a liberdade de ação para o bem (mas não para o mal) e a unidade de direção do governo. Eles querem a repressão ao comunismo, expurgos do Ministério do Trabalho, do Exército e da Marinha, e a transformação da polícia do Distrito Federal (então dirigida por Felinto Müller) em Ministério. A carta reafirma, também, os termos da colaboração dos católicos com o governo: "Vejam eles que o governo combate seriamente o comunismo (sob qualquer aparência ou máscara para disfarçar) súmula de todo o pensamento anti-espiritual e portanto anticatólico; que combate seriamente o imoralismo dos cinemas e teatros pela censura honesta; Organiza a educação com a imediata colaboração da Igreja e da Família vejam isto os católicos e apoiarão, pela própria força das circunstâncias, os homens e os regimes que possam assegurar ao Brasil estes benefícios".(20)

O sufocamento da rebelião da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, com a deposição de Pedro Ernesto e o afastamento de Anísio Teixeira, abre caminho para que estas idéias comecem a ser postas em prática. A Universidade do Distrito Federal seria, por algum tempo, dirigida pelo próprio Alceu Amoroso Lima, e mais tarde extinta, com parte de seus professores incorporados à nova Universidade do Brasil, cuja recém-criada Faculdade de Filosofia e Letras caberia também a ele dirigir (o que, finalmente, nunca ocorreu) . A nova universidade tratou de repetir, na aparência, a idéia paulista de trazer do exterior seus professores, mas a seleção foi feita em termos estritamente confessionais, pouco ficando em termos de institucionalização de uma verdadeira universidade. O ensino secundário foi reformado segundo o modelo italiano (a chamada Reforma Gentile) , com grande ênfase no ensino do clássico e do latim e na doutrinação patriótica da educação moral e cívica. O ensino religioso foi instituído nas escolas públicas; as escolas privadas católicas encontraram seu espaço e, aos poucos, seus subsídios.

Se a Ação Católica, em nome da qual falava Alceu Amoroso Lima, conseguia apoio em muitos setores das classes médias, os intelectuais de inclinação mais conservadora se vinculavam mais diretamente ao movimento integralista que, sem se afastar dos princípios doutrinários e do anticomunismo militante da Igreja, tinha um projeto político muito mais explícito e direto. A reação conservadora que se implanta no país a partir da insurreição comunista de 1935 corresponde a uma união da Igreja, do movimento integralista, das Forças Armadas e de outros setores do governo contra as ameaças de rebelião popular e as lideranças leigas que a própria revolução de 30 havia ajudado a florescer.(21) Na estratégia de Francisco Campos, um dos articuladores do golpe de estado de 1937, esta seria a ocasião para realizar, finalmente, o projeto que acalentava desde o início da década: um regime forte, centralizado a princípio na figura idealizada de Vargas, com Plínio Salgado e os integralistas controlando o Ministério da Educação, e com ele próprio, Campos, à frente de uma vasta Organização paramilitar de juventude que controlaria, de fato, as Forças Armadas e o próprio governo.

VI

Sabemos que a história foi distinta. Uma vez consolidado o golpe de 1937, Getúlio Vargas volta-se contra os integralistas que O haviam apoiado, e coloca o movimento na clandestinidade. Francisco Campos teria papel importante no novo regime; Capanema é mantido no Ministério da Educação, mas os projetos mais militantes e ambiciosos vão sendo pouco a pouco esvaziados. A tentativa de organização de uma Organização Nacional da Juventude nos moldes alemães ou italianos se reduz a pouco mais que um calendário de solenidades cívicas. Em 1939, Capanema propõe a Vargas, com a assessoria de Alceu Amoroso Lima e do Padre Leonel Franca, um ambicioso "estatuto da família", que, entre outras coisas, proibia o trabalho feminino e estabelecia uma censura rigorosa a todos os meios de expressão cinema, cátedra, jornais para impedir a divulgação de idéias ou valores que, de alguma forma, pudessem ir contra os valores da família em sua acepção cristã mais estrita. O projeto se perde em discussões palacianas e finalmente se transforma em uma série de medidas muito mais limitadas e inócuas de proteção à infância e auxílio ao matrimônio

Consolidado no Ministério da Educação, sem ter que prestar contas ao Congresso, e livre das ameaças do ativismo mobilizante que vinha do integralismo, Capanema trata de consolidar seu espaço próprio no interior do Estado Novo. Este espaço teve que ser disputado com o Ministério do Trabalho, pelo controle do ensino industrial; com o Ministério da Justiça, pelo controle do cinema e do rádio educativo; com o Exército, pelo controle do ensino paramilitar, da educação física e da educação moral e cívica. Além disto, havia que garantir o lugar junto ao Presidente, por demonstrações de fidelidade e respeito, materializadas sobretudo no grande livro de comemoração dos feitos do Estado Novo, que tanto ocupa o tempo do Ministro. Nem tudo seriam vitórias. O ensino industrial fica em grande parte com a Federação das Indústrias, com o apoio do Ministério do Trabalho; o DIP não abandona seu controle sobre os meios de difusão e a propaganda ideológica do regime; o livro comemorativo no Estado Novo jamais chegaria à luz.(22)

É neste espaço, disputado a duras penas, que o Ministro vai tratando de dar cumprimento a seu acordo com a Igreja através de um projeto ambicioso e, em última análise, irrealista, de definir no papel e na legislação todo o funcionamento presente e futuro do sistema educacional do país, a ser controlado por um Ministério de dimensões avantajadas. Tudo, dos currículos escolares às plantas dos prédios, dos salários dos professores às taxas de matrícula, deveria ser regulamentado e controlado pelo Ministério. Comissões e mais comissões são formadas, projetos de todo o tipo são elaborados e encaminhados, e pessoas vão sendo empregadas, muitas vezes por indicação de Alceu Amoroso Lima, e tantas outras por políticos, homens de governo ou relações pessoais às quais favores não podiam ser negados. A lógica de poder e de montagem de uma burocracia com estas dimensões nem sempre permitiria que Capanema fizesse o que seu mentor desejava. Alceu termina por recusar a direção da Faculdade de Filosofia, que é assumida por San Tiago Dantas, e até mesmo se afasta, por algum tempo, do Ministro. Capanema ressente, e em julho de 1939 escreve a Alceu dizendo ser melhor "você ouvir menos alhures, e conversar mais comigo. O governo é coisa constituída de tal natureza, que exige que a gente adote a todo momento um modo especial de agir, a fim de que o objetivo desejado e previsto se atinja. É a tal história de andar direito por linhas tortas". O principal, porém, era que "tudo quanto combinei com você está na minha memória, e não deixará de ser cumprido".(23)

Era uma promessa que não poderia ser cumprida em sua integridade. É fato que, muitos anos após o fim do governo Vargas e do ministério Capanema, o catolicismo conservador continuaria a manter posições importantes no sistema educacional do país e particularmente na Universidade do Brasil, mais tarde convertida novamente em Universidade do Rio de Janeiro. Mas a própria Igreja, desde o final da década de 30, acalentava o projeto de construir sua própria Universidade, que finalmente seria instituída no Rio de Janeiro no início dos anos
* * *


Como se explica o fracasso de um projeto que havia chegado, aparentemente, tão perto de se realizar? Em parte são razões políticas, as mesmas que haviam levado D. Vital à prisão no século anterior. O pacto de 1934 restabeleceu, em linhas gerais, a mesma ambigüidade e as mesmas tensões que haviam marcado o relacionamento da Igreja com o Estado até a República. O governo Vargas, aparentemente, limitou-se a cumprir a letra das emendas religiosas sem jamais aceitar a tutela ideológica e doutrinária que a Igreja pretendia. Esta, tal como D. Vital no século anterior, trataria de utilizar-se dos espaços conquistados para alinhar o Estado brasileiro com seus princípios e ideais e trazer a Igreja à posição de predomínio que talvez nunca, nem mesmo antes de Pombal, tivesse alcançado. Por alguns anos de 1935 a 1939, mais precisamente pareceria que este objetivo seria alcançado. Pouco a pouco, no entanto, ficaria claro para a Igreja que esta não era ainda a sua vez.

O apoio da Igreja, a manutenção da ordem pública e dos princípios morais, o fortalecimento da família, a censura à imprensa, o ensino religioso, todas estas coisas eram bem-vindas e desejadas pelo regime, desde que não ameaçassem O sistema político mais profundamente. A Universidade poderia, sem grandes riscos, ficar com os católicos. O Ministério da Educação estava bem nas mãos de Capanema, pessoa ambiciosa mas moderada e conciliadora; nas mãos de Plínio Salgado, como pretendia Francisco Campos, já era demais. A própria mobilização da juventude, enquanto significasse um movimento patriótico, de culto aos símbolos do país e às qualidades de seus líderes, deixava de ser aceitável quando pretendia se aproximar do modelo das Organizações paramilitares , que , nos regimes fascistas , terminavam compartilhando do exercício do poder. Em outras palavras, o limite da colaboração da Igreja com o Estado era o da delegação de funções, principalmente na área educacional e dos ritos civis.

Havia ainda outros limites, talvez mais profundos, de tipo social e institucional. O projeto educacional e cultural da Igreja era extremamente limitado e conservador em seu conteúdo, e não dava lugar para o mundo moderno ao qual o país tratava, bem ou mal, de se incorporar. A ausência de um espaço realmente aberto para a pesquisa científica, a ênfase excessiva nas pedagogias tradicionais, o conteúdo fortemente elitista da educação secundária, o lugar menor a que era relegado tudo o que não fosse o ensino secundário ou universitário em sentido estrito, tudo isto fazia do projeto educacional que ia se implantando no Brasil algo que já nascia esclerosado, com pouca vida.

A estes problemas de conteúdo se juntaram outros derivados da própria natureza autoritária e centralizadora do Estado Novo. A tentativa de organizar todo o sistema educacional de cima para baixo, através de uma legislação minuciosa que se fizesse acompanhar por sistemas complexos de inspeção e controle, teve duas conseqüências extremamente sérias. Primeiro, iniciativas locais e autônomas eram tanto quanto possível sufocadas, em nome dos princípios da uniformidade ou da manutenção de padrões nacionais de qualidade e cultura. Isto ocorreu, de forma visível, na violência que se instituiu contra a educação em língua materna dos imigrantes do sul, facilitada pela identificação entre muitos destes imigrantes e o fascismo europeu. Também afetou, de diversas formas, as iniciativas educacionais dos estados, que, até 1934, pareciam indicar que se iniciava no país um movimento descentralizado bastante amplo e renovador da educação. É fácil ver que foram as áreas que, de alguma forma, conseguiram resistir a esta uniformização centralizadora - a Universidade de São Paulo, o SENAI, colégios católicos mais tradicionais -, que conseguiram manter, cada qual à sua maneira, os padrões de qualidade de seu ensino.

A segunda conseqüência foi fazer de todo o sistema educacional uma Vasta burocracia cujo funcionamento jamais conseguiu corresponder às intenções da legislação. A forma prevalecia sobre o conteúdo, a letra sobre o espírito das normas, tudo isto gerando comportamentos ritualizados, com pouco sentido para os que ensinavam, e menos ainda para os que deveriam, pelo menos em princípio, dele se beneficiar. E uma herança que ainda hoje nos acompanha
VII


Ao final do Estado Novo, pouco restava do pacto de 1934, e o regime de 1946 restabeleceria a tradição republicana de afastamento entre o Estado e a Igreja. A tradicional vinculação de setores católicos com o ensino privado continuava existindo, e universidades católicas começaram a surgir em outras regiões do país. O debate entre ensino público e privado, que havia polarizado católicos e escolanovistas nos anos 30, ressurgiria novamente nas longas discussões sobre a Lei de Diretrizes e Bases, e a corrente católica ainda conseguiria fazer predominar seus pontos de vista na legislação aprovada já nos anos.

A esta altura, no entanto, a questão educacional já perdera a importância política que havia tido no passado, e a Igreja já não jogava nela tantos de seus trunfos. Nos anos que se seguem, voltam a surgir dentro do catolicismo brasileiro as três tendências que, de uma forma ou de outra, sempre o caracterizaram. Em sua maior parte, continuou prevalecendo o catolicismo tradicional e rotineiro de sempre, educando as moças e rapazes, cuidando dos batizados, casamentos e enterros, e ocupando um papel respeitável, mas Secundário, na vida nacional. A tradição ultramontana e reacionária ficou por muitos anos reprimida, sofrendo os rescaldos de sua aproximação passada com o integralismo, até ressurgir por breves momentos com as "marchas da família" de 1964, para voltar a se fechar ao redor de grupos ativistas e minoritários como a TFP ou figuras isoladas como os bispos de Campos e Diamantina. o que realmente cresce, até dar por um breve momento o tom preponderante, é a tradição iluminista que havia tido seu apogeu no início do Império, e que havia refluído até quase desaparecer a partir de D. Vital e sua reencarnação nos anos

Em sua versão moderna, o iluminismo surge pela tentativa de fazer um catolicismo engajado na história e comprometido com as transformações sociais que estavam por vir. Suas raízes intelectuais são européias: a experiência dos padres operários fascina, e Teilhard de Chardin parece oferecer a ponte que faltava entre o catolicismo e o evolucionismo histórico, quase indistinguível do historicismo hegeliano-marxista. Mas é na América Latina, e particularmente no Brasil, que esta corrente encontra sua maior penetração. No inicio dos anos 60, ela capta a imaginação dos jovens intelectuais universitários e de parte importante do clero, e dela se aproxima aos poucos até mesmo Alceu Amoroso Lima, novamente converso. Por um tempo, pareceria que o "reencontro do século", por tantos anos buscado, fora finalmente atingido, dando à Igreja e a seus sacerdotes e líderes leigos a posição central que sempre buscaram, em um país em processo de transformações profundas. Esta posição parecia se firmar, significativamente, no âmago das universidades brasileiras, para daí se espraiar, de forma aparentemente irresistível, para os movimentos populares, os partidos políticos e até, quem sabe, para a conquista do poder. Era o sonho frustrado dos anos 30 que parecia tornar-se realidade.

Não caberia aqui acompanhar o desenrolar desta história tão recente. Basta observar que, com o passar dos anos, o catolicismo progressista perde força junto à hierarquia, e retrocede enquanto pólo de atração para jovens universitários que, ou são levados pelo radicalismo ao rompimento total com a Igreja, ou, ao perderem a juventude e saírem do ambiente universitário, abandonam também sua militância. O catolicismo progressista não desaparece, mas é possível observar que, aos poucos, o componente iluminista e histórico parece ceder lugar seja a um novo romanismo que se afirma com João Paulo II, seja a um progressismo onde a indignação profética predomina sobre as pretensões intelectuais e culturais.

É assim que, por diversos lados, a Igreja parece ter desistido, pelo menos por enquanto, da conquista da alma do brasileiro através das instituições de ensino do país. Nas universidades católicas, construídas com tanta perseverança nos anos 40, os conteúdos religiosos passam a segundo plano, e elas se distinguem pouco pelos professores, pelos alunos, pelos conteúdos curriculares das demais escolas superiores, leigas ou públicas. A Igreja continua a ter presença importante no ensino secundário, e suas escolas conseguem freqüentemente manter padrões de qualidade que as destacam como estabelecimentos de elite no quadro de massificação do ensino brasileiro. Mas é exatamente este aspecto de educação de elite o que predomina, e não o de educação católica. O progressivismo católico, finalmente, busca assentar raízes não mais nas universidades e escolas, mas nas favelas e sindicatos, nas comunidades do campo e nas periferias das grandes cidades, de onde, supõem seus líderes, sairá revigorado, e poderá desempenhar o papel central na sociedade brasileira que até hoje lhe tem sido negado.



Notas:

1. Para a história das relações entre a Igreja e a Estado no Brasil contemporâneo, veja, entre outros, Márcio Moreira Alves, L'Église et le politique au Brésil, Paris, Les Éditons do Cerf, 1974; Thomas C., Political Transformations of the Brazilian Catholic Church (Nova Iorque, Cambrídge University Press, 1974); Emmanuel de Kadt, Catholic radicais in Brazil (Londres e Nova lorque, Oxford University Press, 1970); e Margareth Patrice Todaro (Todaro Williams), Pastors, prophets and politicians: a study of lhe Brazilian Catholic Church, 1916-1945 (Tese de Ph.D., Universidade de Columbia, 1971). Para uma apreciação conjunta destes trabalhos, veja Ralph DelIa Cava, "Catholicism and Society in Twentieth Century Brazil", Latin American Research Review XII, 2, 1976, p. 7-50. Todos estes trabalhos se concentram nos aspectos políticos da ação da Igreja, e deixam em segundo plano seu papel na área da educação. Este papel, no entanto, é central em Tânia SaIem, "Do Centro D. Vital à Universidade católica", em S. Schwartzman, ed., Universidades e instituições científicas no Rio de Janeiro (Brasília, CNPQ, 1982, p. 97-136), e em S. Schwartzman, Helena Mana B. Bomeny e Vanda Maria R. Costa, Tempos de Capanema (Rio de Janeiro e São Paulo, Paz e Terra/EDUSP, 1985).

2. Roque Spencer M. de Barros, "vida Religiosa". em Sérgio Buarque de Holanda, ed. História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), vol. II, 4 ("O Brasil Monárquico: Declínio e Queda do Império", p. 330).

3. Sobre a presença da Igreja no Brasil colonial, veja a capítulo correspondente de Américo Jacobina Lacombe em HGCB, vol. 1, 2 ("A Época Colonial: Administração, Economia, Saciedade", p. 51-75).

4. Sobre a educação das elites brasileiras até a século XIX, ver José Murilo de Carvalho, A Construção da ordem, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1980.

5. Antônio Cândida de Meio e Souza, "Letras e idéias no Brasil Colonial", HGCB, vol. 1, 2. p. 102.

6. HGCB, II, 4. p. 326.

7. Citada por Roque Spencer M. de Barros, HGCB, 11, 4, p. 349.

8. Fernando dc Azevedo, A Cultura brasileira, 4 Edição, Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 668.

9. A Cultura Brasileira, op. cit., p. 270-271.

10. ibid.

11. ver nota 1.

12. Sobre "romanização", ver Ralph Della Cava, op. cit., p. 11-12; Roger Bastide, "Religion and Church in Brazil", em T. Lynn Smith e Alexander Marchant, eds. , Brazil: Portrait of Half a Continent (Nova lorque, Dryden Press, 1951, p. 334-355).

13. Veia a este respeito: John D. Wirth, O fiel da balança (Minas Gerais na Federação Brasileira 1889-1937), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, especialmente capítulo 3.

14. Esta carta, assim como as demais citadas abaixo, exceto uma, faz parte do Arquivo Gustavo Capanema, do acervo do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio vargas. Assim como as demais, ela foi incluída no apêndice de S. Schwartzman, H. Bomeny e V. Ribeiro Costa, Tempos de Capanema. A exceção é a carta de Francisco Campos a Getúlio vargas de 1931, que faz parte do arquivo Getúlio Vargas, também do acervo do CPDOC.

15. Anotações manuscritas de Capanema, FGV/CPDOC, AC/Capanema, pi 00.00.00/2.

16. Veja, a respeito, Margareth Todaro Williams, "Integralism and the Brazilian Catholic Church", Hispanic American Historical Review, vol. 54, 3 (agosto de 1974) , p. 443. Ver também Irmã Maria Regina do Santo Rosário (Laurita Pessoa Gabaglia), O Cardeal Leme (Rio de Janeiro, 1962).

17. FGV/CPDOC/Arq. AC.

18. FGV/CPDOC/Arq. GV.

19. FGV/CPDOC/Arq. GC.

20. FGV/CPDOC/Arq. GC

21. Sobre o inter-relacionamento entre a Ação Católica e o Integralismo, ver Margareth Todaro Williams, op. cit

22. Este livro jamais seria publicado sob a gestão de Capanema, e só viria à luz com a abertura de seus arquivos. Cf. Simon Schwartzman, organizador, Estado Novo: um Auto-Retrato (Brasília: 1983).

23. FGV/CPDOC/Arq. GC. <