A Lição dos Números

Simon Schwartzman

Entrevista à revista Veja, publicada em 13 de julho de 1994 (páginas amarelas).


VEJA - O professor Simon Schwartzman é um desses PhDs que não se sabe o que vêem de irresistível no governo. No mês passado, aceitou a presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. No meio de uma greve interminável, que pôs os funcionários para dar expediente em piquetes na calçada em frente à sede, no Rio de Janeiro. Faltando pouco mais de um semestre para terminar o mandato do presidente Itamar Franco, que o convidou. E com o censo de 1990, que só começou em 1991, ainda engarrafado nos computadores.

O atraso é tanto que atrapalha até a Copa do Mundo. No campeonato de 1970, o povo brasileiro não votava para presidente nem governador, mas o país estava de acordo na hora de convocá-lo para as comemorações como "90 milhões em ação". Ele vota em outubro, mas na linha de fundo da Copa é citado indiferentemente como 150 ou 160 milhões. Os brasileiros são 153 milhões. Eram 146 milhões quando foram efetivamente recenseados três anos atrás. E o IBGE, que tem parte com essa confusão de números, está nas mãos de um mineiro, formado também em administração pública, com diplomas tirados em Belo Horizonte, Santiago do Chile e Berkeley, nos Estados Unidos. Especialista em problemas de ciência, tecnologia e educação. Aos 54 anos, sociólogo com um currículo cravejado de cargos com nome em inglês, até assumir o IBGE, desdobrando-se entre o lugar de pesquisador na Fundação Getúlio Vargas e a cadeira de Ciência Política na USP, vivia na ponte-aérea Rio-São Paulo. Agora botou Brasília no circuito, quando os políticos começam a desertá-la. Em compensação, levou para o governo a noção de que a política brasileira precisa coar o país no filtro dos números corretos. Os que estão circulando retratam um brasileiro que não pode ser atendido pelos programas oficiais porque não existe. Com os resultados do censo a caminho do prelo e a promessa de que, embora atrasados, pela primeira vez eles sairão também em disquetes para computador, Schwartzman falou a VEJA:

Veja - Apesar do atraso, o censo traz novidades?

Schwartzman - Ele muda inteiramente a perspectiva de crescimento populacional do Brasil. Não se trata de uma novidade, porque a informação já saiu de forma preliminar. Mas, com ele na rua, fica mais difícil ignorar o fato: para os brasileiros, a época da explosão demográfica passou. O censo de 1990, que aliás é de 1991, contrariou tudo o que se esperava a esse respeito. Agora sabemos que, no ano 2020, no máximo até 2040, depois de atravessar o teto dos 200 milhões de habitantes, o país entrará em processo de redução populacional. O número de jovens ainda vai crescer, mas o processo de envelhecimento da população já é visível, e aumentará cada vez mais.

Veja - Com que conseqüências?

Schwartzman - Para começo de conversa, a discussão sobre controle de natalidade ficou obsoleta. A mudança foi tão de repente, que as pessoas envolvidas nesse debate aparentemente não se deram conta disso. Existe no Brasil, na prática, uma política de controle da natalidade, com os resultados que aí estão. Além disso, acaba a ilusão de remendar a Previdência Social, evitando uma reforma mais profunda. Nas bases em que foi concebida, mesmo se a consertarem por dentro, ela fatalmente desabará, mais tarde ou mais cedo. Vai falir porque os brasileiros estão nascendo cada vez menos e vivendo cada vez mais. O país terá cada vez mais velhos, e menos jovens para sustentá-los. O sistema atual foi concebido no tempo em que os cidadãos morriam em média aos 45 anos. Era isso, muito mais do que qualquer favor político, que assegurava o direito da aposentadoria aos 30 anos de serviço.

Veja - Notícia boa, tem?

Schwartzman - Há coisas que a menor pressão demográfica simplifica ou, pelo menos, desentorta. Como a pressão sobre os grandes centros urbanos, que está amainando, permitindo que as cidades possam ser melhor administradas. Prepare-se quem acha que São Paulo não pode parar: está parando. O Rio de Janeiro praticamente parou desde os anos 80. Mudam também os programas educacionais. De que adianta ficar construindo escola, se daqui a pouco vai sobrar vagas, porque há menos criança nascendo? Em São Paulo, está constatado, há vagas sobrando e turmas pequenas na rede pública. Não dá mais para fugir dos problemas inadiáveis, como a qualidade do ensino ou a urgência de adequar os currículos à vida que os alunos de agora terão daqui a pouco.

Veja - Como?

Schwartzman - Nunca foi tão vital cuidar acima de tudo do ensino básico, preparando gente que saiba ler, escrever, fazer conta - ou seja, tenha os requisitos mínimos para enfrentar um mundo de máquinas mutáveis, que tornam inútil aprender bem uma rotina com a expectativa de viver dela indefinidamente. Um engano que se comete em relação ao futuro é pensar que ele exigirá cada vez mais técnicos. Seu número nunca será muito grande. Os empregos que a sociedade pós-industrial promete estarão principalmente no setor de serviços. Um banco precisa cada vez menos de caixas, pois esse é um serviço que o computador pode fazer, e relativamente poucos especialistas em computação. Mas está abrindo vagas para quem saiba atender o cliente por telefone e manter uma conversa que vá além da rotina.

Veja - Isso é programa educacional para filho de pobre?

Schwartzman - Vale para todo mundo. Há pouco tempo estive na Inglaterra, onde meu filho Felipe, de 13 anos, fazia no colégio um curso de tecnologia, e tinha que desenvolver um aparelho mecânico. Ele estava no maior entusiasmo com isso. Eu também fiquei, pelo contraste com nossa educação livresca. Mas, quando comentei o assunto, soube que o curso iria acabar ou, pelo menos, deixar de ser obrigatório. Para concentrar o esforço na aquisição de habilidades fundamentais, que são as que efetivametne contam. A formação genérica, inclusive nas humanidades, habilita a aprender para o resto da vida. Isso é decisivo, já que não adianta mais dar formação técnica muito especializada a um operário para lidar com uma máquina. O provável é que, ao longo de sua vida produtiva, a máquina fique obsoleta, e ele também. Operário especializado é daqui para a frente o que pode ler um manual, muitas vezes em inglês, e entender o software de controles computadorizados. Ou seja, que tenha pelo menos a escola secundária.

Veja - No ensino básico, dispensado de gastar com a construção de escolas, o governo pode fazer mais por menos dinheiro?

Schwartzman - Não. A verdade é que construir escola não é tão caro assim. Pode até ser desperdício, mas nunca é tão dispendioso quanto, por exemplo, manter professores bem pagos. Em decisões como estas não tem facilitário. Serviços sociais, como educação e saúde, são caros e tendem a custar cada vez mais. E são indispensáveis. Os primeiros números do Censo apontam para um país mais manejável em alguns casos, mais complicado em outros, provavelmente solúvel sob quase todos os aspectos. O certo é que isso fica mais fácil se as prioridades nacionais estiverem calibradas para o país, coisa que a política ainda não está fazendo.

Veja - Não faz por que o censo atrasou?

Schwartzman - O censo atrasou, mas as evidências de que o problema do crescimento populacional está se reduzindo está disponível há alguns anos. O que não impede de ter gente até hoje brigando sobre se devemos ou não introduzir políticas de controle de natalidade, que a própria população já implantou. O processo de transição do campo para a cidade também está praticamente esgotado, o que muda radicalmente a questão agrária, que é hoje um problema setorial, e não mais a grande questão nacional. Ele se concentra sobretudo no interior do Nordeste, com uma população isolada em bolsões de pobreza, de seca, de latifúndio improdutivo. E nas áreas onde a capitalização do campo gerou os bóia-frias, geralmente ao redor de grandes plantações mecanizadas. Existem problemas sérios de concentração da propriedade e de latifúndios improdutivos, mas o mais importante, como no caso da educação, é capacitar as pessoas a fazer melhor uso de novas tecnologias, e fazer com que estas tecnologias cheguem até elas. Reforma agrária, portanto, é para resolver os problemas do campo. Os problemas das cidades são muito maiores e mais sérios, e dependem de soluções próprias.

Veja - Estes problemas também aparecem no censo?

Schwartzman - Infere-se. As pesquisas de população, como o censo demográfico e as pesquisas por amostra domiciliar, dão este tipo de informação. Estamos lançando estes dias os dados gerais do Censo de 1991, mas as informações mais detalhadas, de uma amostra da população, ainda estão entrando nos computadores. O último censo econômico é de 1985, e deve realizado novamente em 1995, se existirem recursos adequados. As estatísticas econômicas no Brasil têm como base as firmas registradas, com CGC, e por isto não captam o que ocorre no setor informal. A economia informal é imensa, mas as estatísticas muitas vezes a ignoram, porque se baseiam na análise de impostos, de folhas de pagamento, da papelada que só a economia formal produz. O que sobra é, por exclusão, definido como marginal.

Veja - E não é?

Schwartzman - Há quatro ou cinco milhões de favelados no Rio de Janeiro. Mas o que é ser favelado num país que não tem programa habitacional há décadas? Muitas vezes se trata de pessoas que moram em situações irregulares, mas com família constituída, geladeira, televisão, antena parabólica e sem os serviços públicos de esgoto, eletricidade regular. São marginais do Estado.

Veja - O IBGE custará a chegar à economia informal?

Schwartzman - A economia informal, por enquanto, é que chegou ao IBGE. O instituto, nos anos 70, virou fundação, para pagar salários diferenciados, ter liberdade de movimento e autonomia administrativa. A Constituição de 1988 acabou com isso. Todo o pessoal virou funcionário público, com benefícios de estabilidade e aposentadoria integral e, em troca, um brutal achatamento de salário, porque o governo não tem dinheiro. Quando sai um aumento, é geralmente para quem ganha menos. Resultado: muitas vezes, sai quem é qualificado, fica quem não é. E o IBGE não tem condições sequer de recompensar quem, atendendo a uma orientação do próprio governo, consegue recursos externos, através de convênios para prestação de serviços, como fazem as universidades. O pessoal faz escambo.

Veja - Lá dentro?

Schwartzman - Aprendi que no IBGE micro é moeda. Se a equipe de pesquisa tem um projeto interessante e faz um contrato com uma agência para executá-lo, combina o pagamento mais ou menos assim: "Vai custar dois micros". Sabe por que? Porque se for pago em dinheiro, cai no caixa único. Não pode ir para o departamento que fez o trabalho, menos ainda para a pessoa que teve a iniciativa, ao contrário do que acontece nas universidades. O regime jurídico não permite, nem o sindicato, porque sua demanda é sempre a igualdade. Então, a turma se equipa. Fora o que tem lá dentro, dizem as más línguas, de gente fazendo serviço para fora, complementando salário com biscate, dando consultoria.

Veja - De fora, a impressão que o IBGE dá é de estar sempre em greve.

Schwartzman - Por dentro, vê-se que o IBGE está vivo. Posso dizer que até as greves se tornaram, com a experiência, mais prudentes, preocupadas em preservar o instituto. Na última, no mês passado, não se interrompeu a coleta de dados sobre custo de vida, para não quebrar a série histórica, como aconteceu no governo Sarney, passando o levantamento para a Fundação Getúlio Vargas. Cheguei lá no meio da greve e, no contato com a comissão sindical, fiquei impressionado ao ver que muitos eram funcionários com mais de 20 anos de casa, comprometidos com a instituição, e vendo no movimento uma forma de participar do debate sobre o destino do IBGE.

Veja - Qual é?

Schwartzman - O IBGE precisa de uma revisão. Tem um computador gigantesco, que custa mais de 500 mil dólares por mês, alugado à IBM. É muito mal utilizado, porque foi alugado com a perspectiva de um pico que não aconteceu, quando se supunha o IBGE estaria lidando ao mesmo tempo com a massa de dados do censo de 90 e dos censos econômicos. Deve 5 milhÕes de dólares do aluguel. Pode-se ver que outros produtos há para pôr na rua. Existe uma quantidade enorme de projetos lá dentro. O IBGE tem até um herbário perto de Brasília. Não estou dizendo que não devesse ter. Só que ainda não entendi por que tem.

Veja - O IBGE não está caindo aos pedaços?

Schwartzman - Vai muito mal. São ao todo 10.550 funcionários ativos. Uns oito mil e tantos têm nível secundário ou menos, e 1.500 de nível superior. São estes, principalmente, que estão indo embora, aposentando-se em altíssima velocidade. Nos últimos quatro ou cinco anos perdemos 25% do pessoal mais qualificado. Como órgão do governo submetido ao regime único da administração federal, está condenado à morte lenta. Vai perder o pessoal que tem e não vai formar outro. Mas o que impressiona é a quantidade de técnicos e pesquisadores que ainda sobrou, gente qualificadíssima. Agora mesmo, no setor de Geociências, ficou pronto um diagnóstico ambiental da Amazônia que é sem dúvida um grande trabalho, feito por encomenda da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Com uma riqueza de informações impressionante. Mas é ainda em parte sigiloso.

Veja - Enquanto isso, por falta de estatísticas, o país faz vôo cego?

Schwartzman - A falta de estatísticas deforma políticas de governo, sim. Por exemplo, quando o país não precisa mais de construir escolas, e sim de melhorar o ensino, mas continua construindo, para responder a uma pressão por vagas que não existe mais. Um governo informado de que tem cinco ou dez mil crianças abandonadas para cuidar, pode imaginar uma estrutura adequada para isso. Está diante de um problema que cabe em soluçÕes administrativas. Mas se está convencido de que há milhões de meninos de rua, aí o problema vira coisa de ONG, de campanhas internacionais ou da oposição. Os americanos têm muita competência no tratamento destas questões

Veja - Competência ou verba?

Schwartzman - Os Estados Unidos podem ser um país rico, mas têm problemas de marginalidade, em cidades como Nova York, Washington, Chicago ou Boston, que nada devem aos nossos. Alguns desses problemas são insolúveis. Mas isso não impede que, lá, os governos decidam criar abrigos para mendigos, manter hospitais públicos, prestar todos os serviços chamados assistenciais. É para ser assistencialista, sim, mesmo que isto não esgote os problemas. No Brasil, o exagero dos números criou a convicção de que o assistencialismo não resolve. O problemas parecem ter tal magnitude que, para resolvê-los, seria preciso antes consertar o Brasil inteiro, mudá-lo de alto a baixo, reformar a ordem social, política e econômica. Vivo ouvindo a conversa de que o país tem mais de 30 milhÕes de pessoas sem condições mínimas de subsistência. Ou seja, de mendigos.

Veja - Onde nasce um número como esse?

Schwartzman - Das estatísticas oficiais. Ao fazer pesquisa sobre renda, o tipo de dados que geralmente se recolhe baseia-se na declaração pelo entrevistado de quanto ele ganha. Se declara que é um salário mínimo ou menos, e o valor for comparado com o da cesta básica, por definição ele tem que estar com fome. Não há informação sobre se vive com soluções alternativas. Um número considerável de brasileiros se vira no mercado informal, fazendo biscates. Tem uma renda irregular, mas não necessariamente ilegal, que os questionários normalmente não captam. Seria preciso mergulhar na vida desses brasileiros para entender como se organizam.

Veja - E varrer a pobreza para debaixo das estatísticas?

Schwartzman - Aonde o exagero nos está levando? De um lado, os números inchados alimentam a crença de que os problemas brasileiros não têm saída fora de grandes reformas gerais. É nostalgia da revolução, que paraliza e desmoraliza o trabalho quotidiano dos profissionais da saúde, da segurança e da educação. Do outro, dá aos neoliberais pretexto para alegar que o Estado não deve se meter com problemas maiores do que ele. Existe uma vasta pobreza pedindo para ser atendida com serviços públicos competentes. O interior do Nordeste e a periferia das grandes cidades, principalmente, têm milhões e milhões de pobres, vivendo com muito poucos recursos monetários, sem serviços médicos, sem condições de mudar de vida pela educação. O que faz um jovem negro inteligente de 18 anos numa favela do Rio de Janeiro? Vai trabalhar por salário mínimo ou arriscar o tráfico de drogas?

Veja - A resposta está nos números?

Schwartzman - Tome-se o caso das crianças abandonadas. O Brasil tem muita criança com problemas criados pela pobreza: falta de alimentação adequada, precisando trabalhar numa idade em que deveria estar na escola, sendo empurrada para a marginalidade. E tem criança abandonada na rua. As contagens efetivas falam em alguns milhares de crianças nas ruas das grandes cidades. Dez mil, talvez. Quando se fala em milhões de meninos de rua, confunde-se o problema a criança pobre com o dos meninos de rua. Tem lugar sobrando no Rio de Janeiro nos albergues para meninos abandonados mantidos pelas ONGs.

Veja - Erra-se nas contas por intenção?

Schwartzman - Talvez por estilo. É o estilo que nos leva a entregar um território do tamanho de Portugal aos ianomamis, em vez de ter uma política indigenista. Fica complicadíssimo saber o que se faz com os índios, se os índios a serem preservados não são reais, mas sua encarnação romântica. Lida-se até hoje com os índios de José de Alencar e Jean-Jacques Rousseau, que vivem em harmonia com a natureza, imunes à sanha predatória do homem branco. Bota-se esse índio na redoma de um parque nacional gigantesco, tão vasto que é impossível policiá-lo. E o índio vende as árvores de sua reserva para madeireiras. Temos uma legislação para a infância que não faz a menor diferença entre uma criança de oito anos e outra de 17 anos e 11 meses. Sem uma política adequada para tratar com jovens adolescentes, acaba-se por deixá-los à mercê de grupos de extermínio, vinditas de comerciantes, polícia mineira, e todo brasileiro se sente cúmplice de linchamentos. Começa-se com uma idealização. Acaba-se num mal-estar maior ainda. <