O Ensino Superior no Brasil: a busca de alternativas

Simon Schwartzman

Preparado para apresentação no VII Fórum Nacional, Instituto Nacional de Altos Estudos, Rio de Janeiro, 15 de maio de 1996. Publicado em João Paulo dos Reis Velloso (coord.), O Real, o crescimento e as reformas, Rio de Janeiro, José Olympio.

Sumário

A barreira da educação

Os problemas da educação superior
Tese 1 - A educação superior brasileira precisa se expandir, e pelo menos duplicar nos próximos anos.

Tese 2 - O financiamento público da educação superior pública no Brasil está em seu limite máximo, e o sistema não tem como continuar a se expandir sem se diversificar e estimular a participação crescente do setor privado

Tese 3 - O "modelo único" da universidade brasileira não existe na prática, mas serve para justificar um sistema educacional extremamente elitista
- Formação para as profissões liberais clássicas
- Formação de elites
- Educação Geral
- Formação nas "novas profissões"
- Educação "vocacional"
- Formação de professores
- Formação científica
Tese 4 - As tentativas de controle formal, burocrático e prévio dos sistemas públicos e privados precisam ser substituídas por mecanismos competitivos, associados a sistemas permanentes de avaliação e desempenho de resultados.
Quadros
Quadro 1 - América Latina, taxas brutas de escolarização superior e gastos públicos por aluno (milhões de dólares, diversos países (1990)

Quadro 2 - Pessoas ocupadas de 10 anos ou mais de idade: classes de rendimento mensal de todos os trabalhos por grupos de anos de estudo

Quadro 3 - Demanda e acesso ao ensino superior, por grandes regiões, 1994

Quadro 4 - Gastos públicos com educação superior na América Latina, 5 países

Quadro 5 - instituições federais de educação superior - despesas executadas com recursos do tesouro e custo por aluno
Referências Bibliográficas

Notas
O Ensino Superior no Brasil: a busca de alternativas

A barreira da educação

A barreira da educação é possivelmente o maior obstáculo que separa o Brasil de hoje, com seus problemas ainda persistentes de desigualdades sociais, sub-emprego e marginalização social, de um país economicamente mais maduro, com maior igualdade de oportunidades, de rendas e maior estabilidade e integração social. Não é que, como se pensava no passado, a educação tenha a virtude de, por si só, resolver todas as demais questões de natureza política, econômica, ambiental e cultural. Mas ela é uma condição necessária para o equacionamento de todas as demais questões, e, o que é mais interessante, talvez seja a política social mais fácil de equacionar e conduzir a curto e médio prazo, apesar de todas as dificuldades. O Ministério da Educação no governo Fernando Henrique Cardoso tem tomado uma série de iniciativas importantes no sentido de romper esta barreira, o mesmo ocorrendo em vários governos estaduais, mas o movimento pela reforma da educação brasileira ainda não adquiriu o ímpeto e a velocidade que seriam necessários.

Ainda que ninguém discorde a respeito da importância da educação, vale a pena ressaltar dois de seus impactos, que têm sido assinalados mais recentemente pelos especialistas. Primeiro, estatisticamente, as diferenças educacionais são a principal causa das desigualdades sociais no Brasil - mais do que região de residência, sexo, cor da pele, ou ocupação ou qualquer outra variável que se possa considerar(1). Segundo, os investimentos em educação são altamente produtivos, e os países, regiões e grupos sociais que investem em educação são os que mais aumentam sua produtividade e mais conseguem atrair e fixar investimentos em benefício de suas regiões e de sua população. Ao longo do tempo, as idéias sobre as fontes de riqueza das nações tem variado, começando pelas terras, e abrangendo depois os recursos naturais, o poder econômico e militar, o acesso a altas tecnologias e o capital. Hoje está claro que a grande fonte de riqueza, e o recurso mais escasso, que tem o condão de atrair todos os demais, é uma população homogeneamente competente e educada.

Mas em que consiste, na realidade, esta barreira da educação no Brasil? Aonde estamos, o que está sendo feito, e quais são os dilemas e perspectivas do futuro? O restante desta apresentação será dedicado a estas questões, naquilo que se relaciona com o ensino superior. Aqui, a título de introdução, eu gostaria de dizer que o principal desafio que educação brasileira precisa vencer, em relação à educação básica, é o da desigualdade de acesso à educação de qualidade. Poderíamos discutir longamente sobre o que significa "qualidade", mas todos sabemos distinguir facilmente uma boa escola de uma escola em ruínas, que funciona sem recursos, com professores mal formados e sem equipamentos, e onde os alunos nada aprendem. Um dos aspectos mais graves do problema da qualidade é a retenção das crianças nos primeiros anos da educação, que acaba redundando em grandes limitações de acesso aos níveis educacionais mais elevados. Em relação à educação superior, o problema da eqüidade no acesso aos cursos de qualidade também existe, mas aqui o principal problema é o do atendimento diferenciado dos diferentes públicos que buscam o ensino superior. Se, na educação básica, a homogeneidade de conteúdos básicos é uma condição essencial de eqüidade e de cidadania, na educação superior a insistência em um "modelo único" de universidade tem levado na prática à consolidação das desigualdades e à desqualificação da grande maioria dos estudantes e seus cursos, por contraste com um suposto padrão de "qualidade" que precisaria ser melhor explicitado e compreendido.

A esta afirmação eu gostaria de acrescentar uma outra, que é a de que o setor público no Brasil dedica uma quantidade bastante grande de recursos à educação, e que não teria condições de investir mais sem um aumento significativo da renda nacional e da capacidade de arrecadação do governo em seus diversos níveis. A Constituição Brasileira exige que o governo federal aplique pelo menos 18% dos impostos, e os Estados e Municípios, pelo menos 25% em Educação. Em 1994 o Ministério da Educação gastou cerca de dez bilhões de dólares, e os recursos somados dos Estados e Municípios foram muito maiores. Os gastos anuais brutos com educação correspondem a quase 4% do PIB, ou cerca de 20% do orçamento disponível(2). Ainda que existam problemas sobre o verdadeiro uso destes recursos, dificilmente estas proporções poderiam aumentar de forma significativa. A questão da mobilização de recursos privados é central para qualquer política mais ambiciosa de expansão e melhoria de qualidade da educação brasileira.

Os problemas da educação superior

Existe um consenso bastante generalizado, no Brasil, de que o ensino superior tem problemas, mas muito pouca clareza sobre o que fazer para superá-los. Uma lista das questões geralmente apontadas inclui:

- qualidade: existiriam universidades boas, cursos de graduação e programas de pós-graduação de boa qualidade, mas muita coisa - possivelmente a maior parte - de má qualidade. Nem tudo que se chama de "universidade", ou "universitário", mereceria realmente este nome. O mercado profissional estaria sendo invadido por profissionais incompetentes.

- conteúdos: haveria demasiados estudantes em cursos sem conteúdo técnico-profissional, e poucos com formação pertinente às necessidades. O país não estaria formando os técnicos e profissionais de que realmente necessita.

- sub-emprego: a proliferação de cursos de má qualidade, ou de conteúdos inapropriados, principalmente pelo setor privado, estaria levando a uma saturação do mercado de trabalho, com pessoas de nível universitário ocupando empregos de nível médio.

- custos : as universidades públicas seriam demasiado caras para o governo, e as universidades privadas, demasiado caras para os estudantes.

eqüidade: o processo seletivo do sistema público excluiria estudantes camadas sociais menos favorecidas, que não tiveram como obter uma boa educação secundária, levando-os a buscar o sistema privado, onde encontrariam a barreira da má qualidade e das mensalidades elevadas.

concentração: o governo concentraria os recursos para a educação superior na região centro-sul, em detrimento das regiões mais pobres, e sobretudo do Nordeste.

As propostas usuais para corrigir estes problemas são de colocar mais recursos públicos na educação superior, distribuí-los de maneira mais homogênea pelo território nacional, reforçar os mecanismos de controle para a criação de novas escolas superiores e universidades, dar mais incentivo à pesquisa e à pós-graduação, inibir a criação de escolas superiores privadas de intuito meramente comercial, e dar ênfase à formação técnica e especializada. Nem todas estas propostas são coerentes entre si. Além disto, a idéia implícita nestas propostas é que a educação superior brasileira deveria evoluir no sentido de um sistema público de âmbito nacional, que integrasse de maneira harmoniosa o ensino, a pesquisa e a extensão, que cobrisse de forma homogênea todo o território nacional, que proporcionasse estabilidade e bons salários a professores e funcionários, e fosse de acesso gratuito aos estudantes.

A tese mais geral deste texto é que quase tudo isto já foi tentado no Brasil, no limite das possibilidades orçamentárias e da capacidade administrativa dos governos, com resultados bastante problemáticos. Faz dez anos que a necessidade de pensar a questão do ensino superior brasileiro desde uma nova perspectiva, mais adequada ao que são no mundo de hoje os sistemas de educação superior de massas e dentro das limitações previsíveis da disponibilidade de recursos públicos, foi apresentada de forma sistemática à comunidade de educação superior, ciência e tecnologia a partir das propostas da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Ministério da Educação, 1985; Schwartzman, 1988). As principais proposições daquele documento, como a ênfase na necessidade de diferenciação do sistema, a importância de mecanismos sistemáticos de avaliação e uma nova visão da questão da autonomia universitária, já causam menos espanto do que no primeiro momento, ainda que não se possa dizer que tenham conquistado ampla aceitação. Este texto retoma algumas dessas idéias junto com duas outras, relativas aos aspectos quantitativos e ao papel do sistema privado no ensino superior brasileiro, que hoje adquirem maior saliência. Para facilitar a discussão, estas idéias serão apresentadas na forma de um conjunto de teses.

Tese 1 - A educação superior brasileira precisa se expandir, e pelo menos duplicar nos próximos anos.

Tese 2 - O financiamento público da educação superior pública no Brasil está em seu limite máximo, e o sistema não tem como continuar a se expandir sem se diversificar e estimular a participação crescente do setor privado. As políticas públicas de financiamento à educação superior precisam se ajustar a esta realidade.

Tese 3 - O "modelo único" da universidade brasileira não existe na prática, mas serve para justificar um sistema educacional extremamente elitista. A expansão do sistema da educação superior requer sua diferenciação, que precisa ser instituída de maneira explícita e conseqüente.

Tese 4 - As tentativas de controle formal, burocrático e prévio dos sistemas públicos e privados precisam ser substituídas por mecanismos competitivos, associados a sistemas permanentes de avaliação e desempenho de resultados. O conceito de autonomia universitária deve ser reexaminado neste contexto.

Tese 1 - A educação superior brasileira precisa se expandir, e pelo menos duplicar nos próximos anos.

O tamanho extremamente reduzido de nosso sistema de ensino superior é um de seus aspectos mais dramáticos. Neste limiar do ano 2.000, a "taxa de escolarização superior bruta" (proporção de estudantes de nível superior em relação à população de 18 a 24 anos) brasileira é uma das mais baixas da América Latina, e o que é pior, em processo de queda. O Brasil tinha cerca de 1.600 mil estudantes de nível superior em 1995, ou 1% da população total, quando a proporção era de aproximadamente 1.2%. O sistema está estagnado neste patamar de 1.5 milhões desde o início dos anos 80, apesar do crescimento contínuo da população. O quadro 1, que compara os dados de diversos países da América Latina em 1990, dá para o Brasil uma taxa bruta de escolarização superior de 11.3 para aquele ano, mas um estudo recente de Edson Machado (Machado, 1994) estimava uma proporção de 9.38 em relação à população de 19 a 24 anos para aquele ano. Em 1995, estamos abaixo de 9%. Mesmo que este número dobrasse nos próximos anos, ainda assim o Brasil ficaria em má posição em relação aos outros países da América Latina e aos países em desenvolvimento. Estes simples dados são suficientes para afirmar que um dos objetivos centrais de qualquer política de educação superior no Brasil deveria ser a de viabilizar a expansão quantitativa do sistema.

Existe, desde logo, demanda. A educação, e mais especificamente a educação superior, é o principal determinante do acesso a níveis mais altos de renda no Brasil, além de ser a melhor proteção contra o desemprego. Segundo os dados da PNAD de 1993, a probabilidade de o ganho superior a 20 salários mínimos mensais passa de 0,9% para 2,7% se a pessoa completar o segundo grau (11 anos de escolaridade), e de 2,7 para 17,1% se a pessoa completar um curso universitário (15 anos ou mais de escolaridade) (quadro 2). A chance de estar sem rendimento com um diploma de nível superior era de 1,32%, contra 15,68% para a população como um todo. Estes diferenciais de renda e emprego são suficientemente altos para explicar a grande procura que continua existindo pela educação superior, ainda que muitas vezes os formados não consigam trabalhos com os níveis de rendimento e prestígio social a que aspiravam.

Se a procura existe, porque o sistema não continuou se expandindo, ao longo da década de 80? O extraordinário crescimento ocorrido na década de 70 se explica, sobretudo, pela grande diversificação do alunado, sobretudo pela entrada maciça de mulheres na educação superior, mas também pela busca de cursos superiores por parte de pessoas mais velhas e já integradas ao mercado de trabalho. Esta demanda foi absorvida por uma expansão relativamente pequena do setor público, e sobretudo por um grande número de cursos, principalmente noturnos, criados pelo setor privado. Uma vez terminado este processo de incorporação de novos grupos sociais, a expectativa seria que o sistema continuasse a crescer pelo menos no ritmo de crescimento da população, o que não ocorreu. A principal dificuldade parece ter sido o gargalo da educação média, como pode ser observado no quadro 3. Apesar de existirem em média cinco candidatos para cada vaga aberta anualmente para o ensino superior, a relação entre ingressantes no ensino superior e concluintes do ensino secundário é superior a 60%, indicando que o grande número de candidatos às vagas existentes é formado por pessoas que se apresentam em vários vestibulares, pessoas que se apresentam em anos sucessivos, ou pessoas mais velhas que buscam ingressar ou reingressar em novas carreiras. Existe, de qualquer maneira, uma grande demanda comprimida por educação superior, que deverá se expandir rapidamente se o ensino médio ampliar sua capacidade de graduar seus estudantes.

Mesmo havendo demanda e benefícios privados associados à educação superior, caberia ainda indagar se esta demanda deveria ser atendida, e a que custo, tanto em termos de qualidade quanto em termos de custos financeiros propriamente ditos.

Existem dois tipos resposta a esta questão, ambas parcialmente verdadeiras, mas levando a políticas públicas muito distintas. A primeira é que maiores níveis educacionais estariam necessariamente associados a maiores níveis de produtividade, que se refletiriam em melhores ganhos, tanto públicos quanto privados. A segunda é que a educação superior permitiria o acesso dos diplomados a um segmento protegido do mercado, com rendas altas asseguradas, sem que haja necessariamente um ganho de produtividade para a sociedade. A primeira explicação justifica investimentos públicos crescentes em educação superior, pelo menos enquanto as taxas de retorno destes investimentos permanecerem altas. A segunda leva a uma atitude mais cautelosa e cética, em que se busca evitar investimentos públicos em educação que se destinem sobretudo a reforçar privilégios e benefícios de tipo credencialista, que somente serviriam para aumentar a desigualdade social (ela não chega, no entanto, ao ponto de justificar as tentativas de restringir os investimentos privados).

Na prática, sabe-se que, na medida em que a educação se expande, as diferenças de rendimento entre pessoas de níveis educacionais distintos tende a se reduzir, e as credenciais educativas se tornam mais difíceis de se manter, na ausência de competências específicas associadas; ao mesmo tempo, aumenta a produtividade da sociedade como um todo, e, conseqüentemente, a renda global. Isto significa que a expansão da educação superior é sempre benéfica, por aumentar a produtividade da sociedade e reduzir as desigualdades sociais, desde que, naturalmente, não leve a monopólios de renda injustificados, e não seja feita às expensas de outros investimentos públicos igualmente ou mais meritórios, como por exemplo em educação básica. Em outras palavras, o problema não é se devemos ou não expandir de forma significativa o ensino superior - parece claro que devemos - mas sim a forma pela qual esta expansão será financiada, e as características que esta expansão deve assumir.

Tese 2 - O financiamento público da educação superior pública no Brasil está em seu limite máximo, e o sistema não tem como continuar a se expandir sem se diversificar e estimular a participação crescente do setor privado. As políticas públicas de financiamento à educação superior precisam se ajustar a esta realidade.

A legislação brasileira tem uma forte orientação anti-privatista - ela proíbe o financiamento público a instituições de ensino superior privadas, mantém as instituições privadas sob regime de controle e supervisão, não permite a criação de instituições educacionais com fins de lucro, e mantém os preços das anuidades escolares sob vigilância. Apesar disto, cerca de 60% dos estudantes superiores estão em estabelecimentos privados, proporção que chega a 90% em São Paulo. Enquanto isto, a Constituição proíbe a cobrança de anuidades nas instituições públicas federais, estaduais e municipais. Na prática, o governo tem subsidiado alguns setores do sistema privado através do apoio a atividades de pesquisa e pós-graduação (praticamente limitadas a umas poucas universidades católicas, sobretudo a PUC do Rio de Janeiro) e mediante um sistema intermitente de crédito educativo.

A educação superior pública brasileira é de longe, a mais cara da América Latina (quadro 1), e o volume global de recursos orçamentários destinados à educação - 18% da receita tributária do governo federal, e 25% da receita tributária de estados e municípios - é bastante elevado, não tendo como se ampliar significativamente sem um aumento correspondente da arrecadação(3). O governo federal gastou, em 1995, 5.8 bilhões de dólares em suas 52 instituições de nível superior, atendendo a cerca de 367 mil alunos também de nível superior. Isto corresponde a aproximadamente 50% de todos os recursos gastos pelo governo federal em educação, se somados os provenientes do tesouro e os de outras fontes, como o salário educação (Schwartzman, Jacques, 1996). Oitenta por cento destes recursos se destinam ao pagamento da folha de pessoal, que é onerada pelo fato de que mais de 80% dos professores trabalham em regime de tempo integral, e pelo peso crescente das aposentadorias plenas e precoces a que os professores têm direito (o custo das aposentadorias é mantido no orçamento de pessoal das universidades). Estes dados não incluem as receitas provenientes de projetos de pesquisa financiados pelo CNPq ou outras fontes, nem de convênios e apoios financeiros obtidos por fundações de direito privado que existem na maioria das universidades públicas, cujos orçamentos não são consolidados com o orçamento geral. O sistema paulista é similar ao federal, e tem assegurados 11% da principal receita tributária do Estado, o Imposto sobe Circulação de Mercadorias (ICMS), mas não chega a atender a 10% dos estudantes de nível superior no Estado.

Uma política vigorosa de expansão do ensino superior brasileiro sem um aumento correspondente dos gastos públicos deveria, por um lado, aumentar significativamente a eficiência dos recursos atualmente gastos, e, ao mesmo tempo, abrir espaço para a expansão dos investimentos privados.

Os índices conhecidos de desempenho das instituições públicas de ensino superior brasileiras são bastante negativos: taxas de professores e funcionários por aluno extremamente altas, altos índices de abandono de cursos, um grande número de professores de tempo integral e dedicação exclusiva sem produção científica e técnica próprias, e assim por diante. Seria possível, em princípio, aumentar a produtividade do sistema, tanto em termos de alunos formados pelas diversas carreiras como de produção científica e técnica, sem aumento de custos nem queda de qualidade, tão somente com medidas de racionalização administrativa.

Os mecanismos que poderiam permitir às instituições públicas aumentar sua eficiência estão discutidos mais adiante, no ítem referente à autonomia. Se admitirmos, por hipótese, que o sistema público pudesse dobrar sua capacidade de atendimento em poucos anos, ele esgotaria rapidamente o pool de candidatos qualificados pelos atuais padrões(4), e poderia se ver ante o dilema de ter que continuar a restringir a entrada de alunos, ou aceitar uma baixa, ou alteração, de seus padrões de qualidade. Hoje este problema é resolvido de forma implícita, pela diferenciação de recrutamento que existe entre as diversas carreiras nas universidades públicas, e entre estas e o setor privado. Mas um sistema público expandido teria que tratar desta questão de forma explícita, sob pena de entrar em um processo de desorganização interna semelhante ao ocorrido em vários países da América Latina que expandiram suas universidades sem rever suas formas de trabalho. A maneira correta de fazer esta expansão seria criar novas modalidades de cursos para públicos distintos, com duração e níveis de exigência também distintos, e adaptados às condições de escolaridade prévia da nova população de estudantes.

O setor privado tem uma grande vantagem em relação ao setor público a este respeito, que é o de ter que responder naturalmente às pressões e demandas do mercado. Em sua maioria, as pessoas dispostas a comprar educação superior no mercado educacional não podem pagar muito, precisam trabalhar, não têm muito tempo para estudar e não tiveram formação suficiente, na escola secundária, para seguir cursos mais exigentes, principalmente na área técnica. Um curso barato, noturno e pouco exigente atende perfeitamente a esta demanda. No Estado de São Paulo, onde o sistema público é proporcionalmente muito mais limitado e restritivo do que no resto do país, existem instituições privadas que atendem a uma gama muito diferenciada de demanda, fazendo uso, inclusive, de técnicas intensivas de marketing para identificar seus clientes e divulgar os seus produtos. Embora o setor privado não possa disputar com o público em termos de pesquisa científica e prestígio de seus diplomas, em muitos casos ele pode oferecer melhores condições em termos de proximidade com o mercado de trabalho e funcionamento (cumprimento de horários pelos professores, ausência de greves e paralisações prolongadas, etc).

Não dispomos de uma pesquisa motivacional aprofundada que nos ajude a entender o que as pessoas buscam nestes tipos de curso, principalmente nos de menor qualidade. Em termos muito gerais, sabemos que elas buscam melhores rendimentos e mais estabilidade no trabalho. Isto se consegue, em parte, pela posse de credenciais, papéis que possam trazer uma promoção ou um pagamento adicional no serviço público, ou um melhor currículo na disputa por empregos no mercado de trabalho privado. Em parte, elas procuram acompanhar, como podem, o movimento geracional que fez da educação superior um componente quase indispensável na vida de pessoas de determinados círculos das classes médias e altas. E em parte, sem dúvida, elas buscam conhecimentos, que possam abrir seus horizontes e dar mais e melhores alternativas de trabalho. Estes cursos não podem ser avaliados, em seus méritos, por comparação direta com as carreiras tradicionais. O critério correto de avaliação da qualidade de um curso não deve ser o nível absoluto de conhecimento de seus estudantes ao final da carreira, mas o montante de conhecimentos que foi possível adicionar ao que ele traz consigo quando ingressa na instituição.

A existência de instituições privadas que absorvem 60% dos estudantes significa que grande parte da educação superior brasileira já é financiada privadamente, e caberia ao governo desenvolver uma política no sentido de fazer com que esta divisão de custos entre o setor público e privado seja a mais adequada possível. O financiamento dos estudos de um estudante não deveria depender da instituição em que ele está matriculado, e sim, em princípio, de sua renda pessoal ou familiar, da rentabilidade social que possa ser atribuida ao curso ou carreira que está sendo seguida, e do desempenho do estudante ao longo de seus estudos.

O critério da renda leva necessariamente à conclusão de que deveria haver um sistema de cobrança de anuidades escolares no sistema público para os que podem pagar, e um sistema de subsídio, válido tanto para o sistema público quanto para o privado, para os que não disponham de recursos. Não há nenhuma razão pela qual os estudantes das universidades públicas não devam pagar pelos seus estudos se tiverem condições para isto. Tampouco há justificativa para a proibição de subsídios públicos a instituições privadas, já que elas são obrigadas a obedecer ao mesmo currículo que as instituições públicas. A exigência de que as instituições privadas não tenham fins lucrativos é tão utópica e antiga quanto a idéia de que os atletas olímpicos devam ser amadores. Existem instituições educacionais que são efetivamente comunitárias e não lucrativas, e muitas outras que funcionam na prática como empresas voltadas para o lucro. Ser pública ou privada, comunitária ou lucrativa não é nenhuma garantia de qualidade, bom atendimento às necessidades e interesses dos alunos, nem de interesse social.

O uso do critério da "rentabilidade" ou necessidade social, embora intuitivamente pareça ser natural, é na prática de implementação muito difícil. No passado havia a noção de que o ensino superior deveria ser planejado pelos governos, de forma a que os países pudessem ter os quadros que necessitavam para o seu desenvolvimento econômico, tecnológico e social (o que em inglês se denominava "manpower planning", e na terminologia brasileira aparecia com o nome de "demanda social"). O que se fazia, tipicamente, era tratar de identificar os quantitativos considerados desejáveis de profissionais por especialidade (em geral pelo exame das estatísticas disponíveis dos países desenvolvidos), e definir estes valores como metas a serem alcançadas. Estes exercícios serviam também para comparar a distribuição dos alunos por especialidade, e concluir, por exemplo, que o país formava um número excessivo de bacharéis e administradores, e um número insuficiente de engenheiros e médicos.

Esta abordagem não encontra mais muitos adeptos, inclusive nos países desenvolvidos, pela impossibilidade de prever efetivamente quais serão as necessidades de especialistas no futuro mais ou menos próximo, ou estabelecer coeficientes e proporções técnicas consideradas adequadas. Em parte, isto se deve às mudanças tecnológicas que ocorrem de forma imprevisível, alterando a demanda por especialistas de diferentes perfis. Hoje está claro, por exemplo, que a necessidade de engenheiros não é tão grande quanto se pensava anteriormente, e que o mercado de trabalho tem grande demanda por pessoas formadas em administração, direito e contabilidade. Em parte, a "necessidade social" depende de definições legais e dos conteúdos das diferentes profissões, que podem variar levando a resultados muito distintos (o número necessário de médicos diminui se existem profissões paramédicas bem estabelecidas; o número de farmacêuticos necessários depende da lei que exige a presença de farmacêuticos diplomados em cada farmácia; e assim por diante). É concebível que o governo federal ou governos estaduais possam criar programas de longo alcance que requeiram determinados tipos de profissionais - professores, especialistas em saúde pública, etc - e que estabeleçam programas de incentivo especiais para estudantes que queiram seguir estas carreiras. Mas isto não pode ser generalizado para o sistema como um todo.

Finalmente, o critério do desempenho individual do estudante torna-se especialmente problemático quando pensamos em termos de valor adicionado, e tomamos em conta as diferenças de formação que os estudantes trazem para o ensino superior, e a inexistência de padrões homogêneos e confiáveis de comparação. É claro que um estudante que não freqüenta as aulas e não consegue notas mínimas de aprovação não deveria receber subsídios para seus estudos, mas é difícil dizer algo mais além disto.

Dada a alta rentabilidade privada da educação superior, sistemas de crédito educativo amplos, bem estruturados e vinculados a rendas futuras parecem ser a melhor forma de financiamento de pelo menos parte dos custos privados do ensino superior, obviando os problemas de definição de necessidade privada ou social, e mesmo de avaliação de desempenho, ainda que a implementação destes sistemas tampouco seja simples. Na experiência brasileira, a falta de mecanismos adequados de cobrança e de critérios de alocação dos recursos terminou fez do crédito educativo uma forma mais ou menos disfarçada de subsídio a instituições de qualidade e pertinência desconhecidos(5).

No limite, todos os estudantes de nível superior deveriam pagar pelo custo direto de seus estudos, seja de forma imediata, seja através de créditos educativos a serem ressarcidos como percentagem da renda futura. Isto não significa que o ensino superior deva ser integralmente financiado pelos estudantes, e a experiência internacional mostra que isto não ocorre em nenhum país. Diferentes estimativas sugerem que seria possível recuperar cerca de 10 a 20% dos atuais custos das universidades com anuidades moderadas cobradas dos alunos oriundos de famílias que podem pagar. Se o cálculo for feito em relação aos custos diretos de ensino, esta porcentagem seria bem maior. Um sistema adequado de crédito educativo poderia aumentar bastante este valor. O preço cobrado pelas universidades privadas de mais prestígio se aproxima hoje de 6 mil dólares ao ano, e não seria impossível chegar perto deste valor se houver um sistema adequado de crédito. Um programa deste requer, naturalmente, um investimento inicial significativo, e o razoável seria que ele começasse em termos modestos, inclusive para permitir a necessária aprendizagem. Existem outras razões, ademais das de ordem financeira e de justiça, que justificam a introdução de mecanismos de recuperação de custos; uma das mais importantes é aumentar o custo, para os estudantes, de ocupar uma vaga na universidade sem intenção efetiva de estudar, onerando indevidamente as instituições.

Tese 3 - O "modelo único" da universidade brasileira não existe na prática, mas serve para justificar um sistema educacional extremamente elitista. A expansão do sistema da educação superior requer sua diferenciação, e precisa ser instituída de maneira explícita e conseqüente.

O "modelo único" da universidade brasileira, definido pelo postulado famoso da "indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão", é uma construção ideológica das elites universitárias européias e norte-americanas que não resiste a nenhuma validação empírica mais profunda, mas foi importada para o Brasil com a Reforma Universitária de 1968, e ainda hoje continua entronizada na Constituição de 1988. Nos Estados Unidos, que têm possivelmente o sistema de ensino superior mais abrangente atualmente, atendendo a cerca de 60% da população relevante, a pesquisa está altamente concentrada em um pequeno número de "research universities", enquanto que a grande massa de escolas profissionais e "colleges" são essencialmente instituições de ensino. O Estado da California possui um sistema de ensino superior de três níveis, dos quais só o menor deles, ocupado pela Universidade da California propriamente dita, dá um peso dominante à pesquisa e à pós-graduação. Na França, a pesquisa está organizada fora do sistema universitário, na estrutura do Centre Nationale de la Recherche Scientifique, ainda que existam, naturalmente, muitos pontos de contato entre o CNRS e inúmeras instituições universitárias. Na Inglaterra, Oxford e Cambridge continuam concentrando a pesquisa e a pós-graduação. Alemanha, França, Inglaterra e muitos outros países mantêm sistemas de formação profissional pós-secundária de nível técnico, profissional e "vocacional", com ênfase no ensino e na formação prática. A dissociação entre o ensino e a pesquisa parece ser a regra, antes que a exceção, e isto por duas razões. Uma, de ordem histórica, relacionada com o desenvolvimento separado das instituições educacionais, de formação profissional, e das instituições de pesquisa, como é o caso da França; e outra relacionada à grande explosão da demanda por educação superior havida em todo o mundo a partir dos anos 60, e que tornou inviável a generalização do modelo de universidade de elite (de pesquisa ou não) que predominava até então.

Os sistemas de educação superior modernos tendem a desempenhar uma pluralidade de papéis freqüentemente contraditórios, uma característica que se acentua ainda mais em uma sociedade tão profundamente estratificada e diferenciada como a brasileira. Parece ser mais recomendável reconhecer as diferenças, e tratar de responder a elas de forma pluralista, do que tratar de negá-las pela via da imposição de igualdades formais, que tendem a intensificar ainda mais os processos de estratificação e de desigualdade. A educação superior brasileira já vem se diversificando na prática, e hoje ela pode ser descrita a partir de algumas de suas principais funções (Schwartzman, 1994):

- formação para as profissões liberais clássicas (direito, medicina, odontologia, engenharia e outras). Este é o setor mais tradicional da educação superior brasileira, e possivelmente o mais preservado, pela capacidade que pode ter tido em resistir ao processo de massificação e às mudanças organizacionais ocorridos a partir dos anos 70. Dados para 1988 indicavam que 36% dos candidatos, mas somente 16% das vagas e 22% dos formados, estavam nestas carreiras. O alto número de formados em relação às vagas reflete as altas taxas de abandono das demais carreiras.

Apesar de algumas faculdades tradicionais terem resistido muitas vezes com sucesso às inovações introduzidas pela reforma universitária de 1968, preservando seu formato de "escola" e a coerência relativa de seus cursos, a grande demanda por este tipo de educação superior levou à proliferação de escolas superiores que oferecem estes títulos, ao mesmo tempo em que ocorria uma gradual erosão do modelo tradicional de profissional liberal independente, e sua substituição por formas de trabalho assalariado. Este processo se explica, em parte, pela saturação do mercado para as profissões liberais clássicas; e em parte, como no caso da medicina, pela expansão do sistema previdenciário e das empresas prestadoras de serviços de saúde, que contratam os médicos como assalariados (Donângelo, 1983). A concentração de profissionais liberais nos grandes centros urbanos levou a problemas de sub-emprego nas capitais, e ausência de profissionais qualificados no interior e nas periferias urbanas.

A qualidade média da educação oferecida por estes cursos parece ter também diminuído, segundo o consenso existente, ainda que não existam indicadores claros a respeito. A introdução da pesquisa científica regular nas escolas profissionais tem sido em geral muito difícil. Com muito poucas exceções, mesmo nas melhores escolas de medicina e odontologia, a maior parte dos professores continuam sendo profissionais liberais atuantes, que não se dedicam de forma integral à atividade acadêmica. Isto é ainda mais acentuado nas áreas de engenharia e, sobretudo, direito(6). Apesar da aparente carência de profissionais da saúde e de tecnologia, não existe mercado que remunere estes profissionais conforme suas aspirações, o que leva a uma grande pressão das corporações profissionais contra a criação de novos estabelecimentos de ensino em seus campos. Existe também grande resistência à criação de cursos profissionalizantes de curta duração. O argumento é que a maioria destes cursos formam pessoal sem qualificação adequada; além disto, no entanto, existe o temor à concorrência que poderia advir de técnicos que pudessem realizar partes importantes de atividades que hoje são monopólios de determinadas profissões. O mesmo ocorre na área do Direito, onde as questões da necessidade social e da qualidade são menos claras.

- formação de elites. No século passado as elites brasileiras eram educadas predominantemente nas faculdades de direito e, em menor grau, de medicina e engenharia, no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife, para onde se dirigiam os filhos das famílias mais abastadas e influentes. A vivência adquirida através dos contatos pessoais e as atividades culturais e políticas desenvolvidas nos anos de universidade compensavam pela ausência de uma educação efetivamente competente, que os cursos não proporcionavam. Terminados os cursos os filhos das elites se dirigiam seja para a política, seja para os altos cargos públicos, seja para a atividade empresarial, e a rede de relacionamentos construídos nos anos de universidade constituíam um capital de grande valia.

A expansão do ensino superior neste século diluiu esta função de formação de elites, e acentuou o caráter regional das instituições de ensino superior, ao mesmo tempo em que o conteúdo profissional e científico de muitas instituições também melhorava. Hoje, as universidades federais que existem em todas as capitais dos estados brasileiros são locais naturais de passagem dos filhos das elites das respectivas regiões, mas dificilmente possuem o "ethos", a mística e a cultura institucional próprias que marcaram, por exemplo, as faculdades de direito de São Paulo e Pernambuco ou a Escola Politécnica do Rio de Janeiro em seus tempos de maior prestígio. Não há nada no Brasil que reproduza o papel das Grandes Écoles francesas, da Ivy League americana ou da Universidade de Tóquio no Japão. Algumas instituições paulistas, como a Universidade de São Paulo em suas faculdades mais tradicionais, e a Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, desempenham algo deste papel a nível do Estado. O Instituto Tecnológico da Aeronáutica teve um papel importante na formação de lideranças científicas e empresariais em seu período áureo, nas décadas de 50 e 60, um lugar que hoje parece ter sido perdido.

Duas tentativas recentes de retomar esta função podem ser assinaladas. O Governo Sarney instituiu em Brasília uma Escola superior para o serviço público, junto ao Ministério da Administração (ex-DASP), em um esforço deliberado de emular a École Nacional d'Administration francesa. A promessa de que os graduados desta escola teriam altas posições na administração pública atraiu inicialmente um grande número de candidatos. Não parece ser possível, no entanto, criar uma Grande École em Brasília dentro da burocracia federal, quando a única competência que efetivamente existe está localizada nas universidades, e geralmente fora da capital(7). A outra tentativa é da Universidade de Campinas, que vem fazendo um esforço deliberado de se projetar como universidade de expressão nacional, pelo recrutamento de estudantes em todo o país, e está iniciando um projeto ambicioso de acelerar a qualificação de seus quadros de professores. Ainda que seja cedo para avaliar o projeto da UNICAMP, parece ser claro que suas possibilidades são muito maiores do que as do governo federal.

- Educação Geral. O sistema de educação superior no Brasil foi organizado na tradição continental européia basicamente francesa e italiana , orientado para a habilitação profissional superior de uma pequena elite, dentro da suposição de que a grande maioria se contentaria com a educação geral na escola secundária, ou com cursos técnicos de nível médio. O caráter socialmente discriminatório dos cursos técnicos de nível médio, no entanto, associado à sua má qualidade, jamais permitiu que eles se consolidassem, enquanto que o ensino acadêmico convencional foi se esvaziando progressivamente pela crescente dificuldade de recrutamento de bons professores e pela irrelevância de seus currículos, transformados em meros rituais de memorização e repetição, ou, no melhor dos casos, em treinamento para os exames de ingresso às universidades(8). Se no passado a educação média era considerada suficiente para grande parte da população de classe média e alta, e sobretudo para as mulheres, agora a expectativa nestes setores é que todos continuem seus estudos até a universidade. Os cursos de humanidades e ciências sociais que proliferaram em grande quantidade nas últimas décadas absorvem parte desta demanda, sem, no entanto, abandonar a pretensão de oferecer, ao final, uma habilitação profissional qualquer, que geralmente se frustra (Schwartzman, 1992). Esta ambigüidade de papéis contribui para a anomia e baixa motivação que caracterizam a maioria destes cursos. A conseqüência é que praticamente não existe, no Brasil, lugar em que um estudante possa obter uma boa educação geral, exceto, talvez, em algumas poucas escolas secundárias privadas.

- formação nas "novas profissões". As dificuldades de acesso e profissionalização nas profissões liberais clássicas, e a ilegitimidade de um currículo de educação geral a nível pós-secundário, levou à criação de um grande número de "novas profissões" comunicações, biblioteconomia, administração, nutrição, estatística cada qual aspirando a um nicho próprio e cativo no mercado de trabalho, e monopólios profissionais garantidos por lei. Com algumas poucas exceções (administração de empresas e economia, por exemplo, em algumas regiões) estas "novas profissões" tentem a atrair estudantes menos qualificados, que se dirigem a cursos com pouca ou nenhuma tradição e consistência acadêmica e intelectual, e encontram mais tarde grandes dificuldades em obter trabalho que de alguma forma corresponda aos conteúdos formais das carreiras que escolheram. A profissionalização efetiva nestas carreiras só ocorre geralmente no nível de pós-graduação, que seleciona um número muito limitado de estudantes, fazendo com que os demais fiquem sem uma habilitação profissional efetiva.

- educação "vocacional". A expressão "vocational education", que nos Estados Unidos designa os cursos de curta ou média duração voltados para a qualificação profissional em atividades técnicas e aplicadas, não existe no Brasil, sendo substituída, de maneira imprópria, por "educação técnica". Apesar de que a maior parte dos estudantes de nível superior estudem em "estabelecimentos isolados", isto, é, não universitários, não existe diferença legal nem cultural entre um título "pós-secundário", ou vocacional, e universitário. Carreiras como biblioteconomia, contabilidade, enfermagem, engenharia operacional e outras que em outros países são freqüentemente proporcionadas em cursos de curta duração tendem a ter seus currículos prolongados para atingirem o mesmo status, e em princípio os mesmos direitos, do que as profissões universitárias clássicas. Houve na década de setenta uma tentativa de obrigar as escolas secundárias a oferecer uma alternativa de educação vocacional a todos os estudantes, que foi mais tarde abandonada. Um número limitado de Escolas Técnicas Federais (as CEFETs) e estaduais oferece ensino profissionalizante de boa qualidade, graças a um investimento de recursos muitas vezes superior ao que é gasto normalmente com os demais estabelecimentos de nível secundário. Reconhecidas como de qualidade, estas escolas técnicas começam a ser disputadas por estudantes que as buscam como caminho de acesso às universidades, e neste sentido parecem estar perdendo parte importante de sua função, que seria a de oferecer uma alternativa profissional à educação universitária convencional. A principal forma de educação vocacional que subsiste, a nível de primeiro e segundo graus, é aquela proporcionada pelo sistema de aprendizagem industrial, que funciona de forma separada do sistema educacional convencional, sob a direção da federações patronais.

- formação de professores. O sistema educacional pré-universitário brasileiro foi organizado na década de 30 no formato 4-4-3 (primário, ginasial e colegial), e transformado no início dos anos 70 para o formato 8-3 (básico e secundário). Apesar de tantos anos decorridos desta unificação, a formação de professores ainda obedece ao formato antigo: para os quatro primeiros anos (e também para o pré-primário) ela se faz a nível secundário, através das "escolas normais", enquanto que para os anos posteriores ela é feita nas universidades.

A justificativa para esta diferença parece ser que, até a quarta série do curso básico (o primeiro ciclo, ou seja, até o final do antigo primário), os alunos estudam essencialmente com um único professor (ou, na grande maioria dos casos, professora), cujo trabalho pedagógico é semi-maternal (in loco parentis) o que dispensaria a formação especializada de nível superior. A partir da 5 série o curso se divide em uma pluralidade de matérias especializadas, com professores dotados de formação específica, além de treinamento em matérias pedagógicas oferecidas pelas faculdades de educação, requeridas para as licenciaturas de nível superior para o magistério.

Se este formato fazia algum sentido no passado, hoje ele subsiste somente pela falta de alternativas adequadas. Nos principais centros urbanos, grande parte dos professores e professoras do primeiro ciclo obtêm títulos universitários, freqüentemente em habilitações como orientação educacional, supervisão escolar ou administração escolar, que são as oferecidas pelas faculdades de educação, e os utilizam como instrumentos para promoções funcionais que normalmente os afastam das salas de aula, deixando as atividades de ensino para os menos motivados ou qualificados. Esta situação justificaria transformar de vez a formação para o magistério pré-escolar e de primeiro ciclo em habilitação de nível superior. No entanto, em muitas regiões, e principalmente na zona rural, ainda existe um grande número de professores leigos (ou seja, sem qualificação formal para o magistério, e freqüentemente sem educação secundária completa), que trabalham com níveis mínimos de remuneração, e a exigência de qualificação universitária para esta função tornaria impossível preencher estes cargos. A adoção de uma política flexível e diferenciada, que pudesse atender à grande disparidade de situações existentes, não parece ter ainda entrado em cogitação. A atuação das universidades em relação ao primeiro ciclo se resume à formação de supervisores, gerentes, especialistas em educação especial ou professores habilitados para o ensino nas escolas normais.

A formação de professores para o segundo ciclo e para o nível secundário se faz através das licenciaturas universitárias, que são normalmente divididas em duas partes. Por um lado, os estudantes adquirem seus conhecimentos específicos nos respectivos departamentos (de matemática, física, química, ciências sociais, etc.); por outro, o conhecimento pedagógico é proporcionado pelas Faculdades de Educação (os que não pretendem se habilitar para o magistério podem obter um título de "bacharel" na respectiva habilitação). Não há nenhuma evidência, antes pelo contrário (Esposito, 1987) de que as disciplinas pedagógicas requeridas para as licenciaturas sejam efetivamente úteis para os futuros professores, que geralmente as seguem como requisitos burocráticos. O principal problema com a formação de professores, no entanto, é que ela é vista como uma habilitação profissional de pouco prestígio e interesse, tanto por parte dos professores e departamentos universitários quanto pelos estudantes. Os departamentos acadêmicos, principalmente nas universidades públicas, se consideram sobretudo centros de formação científica e técnica, e só secundariamente como centros de formação de professores de nível médio. Nestas universidades a habilitação para o magistério tende a ser procurada por poucos alunos, normalmente aqueles que não conseguem passar para o nível de pós-graduação, e as taxas de reprovação e abandono tendem a ser extremamente altas, principalmente nas áreas de ciências naturais e exatas. A carreira de magistério secundário só é atrativa, em geral, para estudantes de origem social menos privilegiada, que em geral não conseguem ingresso nas universidades públicas melhor qualidade, e terminam obtendo suas habilitações em cursos noturnos oferecidos por estabelecimentos de qualidade duvidosa.

A conseqüência geral deste quadro é que o ensino superior brasileiro não está formando professores na quantidade e qualidade necessárias para um sistema de educação básico necessidade de expansão, e sujeito a taxas extremamente elevadas de turnover. A solução do problema não é simples. O trabalho de formação de professores não é considerado prioritário nos departamentos de orientação mais científica e acadêmica, muitos dos quais prefeririam ter esta atividade (incluindo as pesquisas e trabalhos sobre o ensino de ciências) transferida para as faculdades de educação. No entanto, esta transferência poderia ter resultados ainda mais problemáticos, tanto pela seleção negativa quanto pelos problemas inerentes à tradição pedagógica das antigas faculdades de filosofia e de educação.

O problema do professor de educação básica ainda tem sido encarado de forma muito tradicional, e as soluções usualmente apontadas, inclusive pelo MEC - melhores planos de carreira, pisos salariais mais elevados, concursos públicos para a contratação de professores, revisão dos currículos dos cursos de formação do magistério, cursos de reciclagem - não vão ainda ao âmago do problema. Parte da solução talvez esteja na criação de um formato intermediário de formação para o magistério, semelhante aos "teacher colleges" existentes em outros países . Mas a solução mais adequada parece ser a de abrir radicalmente o leque de recrutamento de professores para o ensino fundamental e médio para toda a população de profissionais formados pelas escolas secundárias e universidades, mediante cursos breves de reciclagem. Com isto, a atividade de ensino pode se tornar atraente para muitas pessoas qualificadas que, de outra forma, não se aproximariam das escolas. Isto já vem ocorrendo com o ensino privado superior, que por isto mesmo é capaz, muitas vezes, de apresentar padrões de qualidade bastante acima do que seus baixos investimentos em pessoal e equipamento fariam esperar. Uma política mais agressiva de abrir o magistério para pessoas formadas em outras áreas encontraria resistências, e precisaria ser analisada em todas as suas implicações, mas parece ser a única que permitiria um salto qualitativo importante e a curto prazo na qualidade do ensino básico, sem um aumento extraordinário de investimentos.

- Formação científica. O Brasil implantou, a partir do final da década de 70, um sistema bastante abrangente de pesquisa e pós-graduação, que lhe deu um lugar de destaque entre os países do terceiro mundo. Deste o início da década de 80 este sistema tem se mantido estagnado em termos de crescimento, mantendo um total de pouco mais de mil cursos de mestrado e doutorado (alguns localizados em instituições semi-universitárias, como os Institutos do CNPq ou o Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro) e cerca de 41 mil alunos em nível de mestrado, e 17 mil em nível de doutorado. Este conjunto de programas de pós-graduação é avaliado regularmente por um sistema de "peer review" coordenado pela CAPES, cujos resultados sugerem que aproximadamente um terço dos cursos é de boa qualidade (conceitos "A")(9). Estes programas concentram, ainda, a maior parte dos pesquisadores e da pesquisa científica efetivamente produzida no Brasil e publicada no país e no exterior. Além de serem gratuitos, grande parte dos estudantes de pós-graduação no Brasil recebem bolsas de estudo do governo - em 1994 havia um total de 62 mil bolsas de estudo de pela CAPES e CNPq (que absorviam cerca de 60% dos recursos desta agência)(10).

O sistema de pós-graduação constitui sem dúvida um dos elementos mais dinâmicos do ensino superior brasileiro, tanto por sua capacidade de se mobilizar para conseguir recursos em momentos de dificuldades financeiras, quanto pela influência benéfica que exerce naquelas universidades em que ele está mais presente e integrado com os cursos de graduação (como nas Universidades de São Paulo, Campinas e na Universidade Federal de Minas Gerais, por exemplo). Existem, no entanto, problemas. As taxas de deserção são muito altas a estimativa é que somente 30% dos alunos terminem seus cursos em nível de mestrado ou doutorado e a duração dos cursos tende a ser demasiada em média, 4 anos e 8 meses para o mestrado, 5 anos e meio para o doutorado(11). A produtividade científica dos professores e pesquisadores é baixa em termos quantitativos, sua penetração internacional é pequena, e seus efeitos, em termos de transferências de conhecimento para o setor produtivo e para a sociedade mais ampla, não parecem ser muito grandes, apesar de não existirem informações muito adequadas a respeito(12). Existe uma tendência, em muitas áreas de conhecimento, para que a pós-graduação substitua de fato a qualificação profissional que deveria ser proporcionada no nível de graduação, funcionando assim como um filtro que na prática compensa a massificação e perda de qualidade do ensino de graduação, e acentua sua desqualificação.

Existe ainda um problema específico com os cursos de mestrado, que parecem ser uma peculiaridade brasileira. Nos Estados Unidos, cursos de mestrado são geralmente programas de especialização profissional, necessários dado o caráter geral da educação proporcionada pelos "colleges" a nível de bacharelado. A formação acadêmica e científica se dá sempre a nível de doutorado. Na Europa os mestrados geralmente se limitam a cursos de no máximo um ano, associados à realização de um pequeno trabalho individual. No Brasil, os cursos de mestrado são em grande parte como que doutorados de segunda classe, dados por instituições que ainda não dispõem de massa crítica para doutoramentos plenos. O Ministério da Educação tem se esforçado por corrigir esta anomalia, reduzindo a duração das bolsas de estudo para os mestrados, mas com muita dificuldade.

O prestígio e o sistema de incentivos associados à pós-graduação e à pesquisa no sistema universitário brasileiro tem levado em muitos casos à desvalorização das atividades de ensino e formação profissional propriamente ditos, e a tentativas de reproduzir o formato e o estilo das atividades de pós-graduação e de pesquisa em todo o sistema. A implantação do formato da pós-graduação acadêmica em áreas de formação nitidamente profissional, como psicologia clínica, direito, administração, e mesmo engenharia e medicina, tem levado a profundas dissonâncias entre as expectativas dos alunos e a estrutura dos cursos, o que parece explicar em parte as altas taxas de teses não concluídas. Um outro efeito é o surgimento de áreas de conhecimento que mimetizam os comportamentos típicos das ciências estabelecidas, com suas revistas, organização de congressos e seminários, demanda e concessões de bolsas de estudo, e assim por diante, sem que existam, necessariamente, conteúdos que os justifiquem. Por último, é possível perguntar-se se o subsídio quase generalizado aos estudantes de pós graduação, na forma de bolsas de estudos, se justifica em termos de produtividade e eqüidade social.

***

Este panorama deve ser suficiente para comprovar que é completamente esdrúxula a idéia de que todas estas funções pudessem ser atendidas por um "modelo único" de universidade. Não só as funções são diferentes, mas cada uma delas requer culturas profissionais, valores e formas de trabalho específicas e próprias, que precisam ser desenvolvidas de forma individualizada, Muito recentemente, o governo vem propondo uma série de ações que partem do reconhecimento implícito da necessidade da diferenciação como a criação de um conjunto de centros de excelência para a atividade de pesquisa e pós-graduação, e procurado dar nova ênfase ao ensino técnico. Não existem ainda, no entanto, políticas articuladas para o ensino técnico, profissional e vocacional pós-universitário de massas, que interessam diretamente à grande maioria dos estudantes e postulantes ao ensino superior; e nem políticas articuladas para a formação de professores para a educação básica e de segundo grau.

Tese 4 - As tentativas de controle formal, burocrático e prévio dos sistemas públicos e privados precisam ser substituídas por mecanismos competitivos, associados a sistemas permanentes de avaliação e desempenho de resultados. O conceito de autonomia universitária deve ser reexaminado neste contexto.

É bastante claro que o governo central não tem nem terá condições de avaliar e acompanhar em detalhe o que ocorre com a educação superior nas escolas e faculdades isoladas do país. Isto não se deve somente às conhecidas limitações de nossa administração pública, mas sobretudo ao fato de que a atividade de ensino e de pesquisa depende do envolvimento e da ação autônoma e motivada das pessoas, e não pode ser comandada e regulada externamente. A idéia de que o governo deve exercer este controle está associada à organização cartorial e corporatista do Estado brasileiro, que tende a associar os diplomas universitários a privilégios e monopólios profissionais válidos para todo o país. Se um médico formado no interior de Minas é igual a um médico formado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, então alguém deveria verificar e controlar para que isto seja realmente assim. A solução mais adequada deste problema é dissociar a formação da outorga legal do título profissional. Com isto, as universidades estariam livres para ensinar como preferirem, e seus produtos seriam avaliados externamente. Esta autorização legal para o exercício profissional, nos poucos casos em que seja realmente necessária (como na medicina, por exemplo) pode ser feita de formas diferentes: por exames de Estado uniformes para todos os graduados, por exames de ordem feitos pelas associações de classe, ou por sistemas de avaliação periódica de cursos que possam validar em bloco os diplomas de determinadas instituições. A perspectiva atual é que é necessário reduzir ao mínimo possível os monopólios e privilégios profissionais estabelecidos em lei, e estimular a criação de uma pluralidade de mecanismos de tipo competitivo pelos quais a sociedade, e o próprio governo, possam se informar sobre o que está ocorrendo. Aqui, o setor público e o setor privado precisam de tratamentos bem diferenciados.

A autonomia universitária hoje existente significa, basicamente, que as universidades ensinam que querem, e mandam a conta para o governo. Ainda que o governo tente manter os gastos sob controle, a tendência histórica recente tem sido a de um aumento continuo dos gastos das universidades, sobretudo de pessoal (quadro 5), e toda a política de salários fica por conta do governo. A proposta de autonomia universitária que o governo pretende implantar busca, muito adequadamente, inverter esta situação, e tem dois componentes fundamentais. O primeiro é que as universidades recebam um orçamento global, que inclua os gastos de pessoal, e assumam a responsabilidade de geri-lo. Isto requer uma mudança no regime jurídico do funcionalismo, para dar às universidades condições de criar sistemas próprios de incentivo e desincentivo a seus professores. Um sistema como este permitiria que as universidades disputassem professores entre si, demitissem ou deixassem de promover os que não apresentam desempenho satisfatório, e reformulassem cursos e departamentos com excesso de professores ou pouca demanda. O segundo componente fundamental é que o financiamento seja balizado por um sistema confiável de avaliação contínua de desempenho.

A passagem do atual sistema para um outro definido nos termos acima é extremamente complexa, e necessitaria um certo tempo. Existem várias idéias já sendo amadurecidas a respeito. Uma delas é dividir o orçamento das universidades públicas em duas partes, uma fixa, histórica, e outra variável, sujeita a avaliações anuais, e cujo peso relativo fosse crescendo ano a ano. Existem procedimentos de avaliação mais ou menos automáticos, relacionados a índices mensuráveis (alunos por professor, abandonos de curso, renda dos formados no mercado de trabalho, produção acadêmica de professores), e outros mais qualitativos, que requerem a criação de sistemas de avaliação por pares. A avaliação dos conhecimentos dos estudantes ao final dos cursos que está sendo implementada pelo Ministério da Educação é uma forma engenhosa e criativa de começar a enfrentar esta questão(13). Dado o tamanho de nosso sistema de ensino superior e sua diferenciação de funções, a expectativa é que se possa criar um amplo sistema de avaliações para as diferentes áreas de atuação, e fazer com que os orçamentos universitários tenham que ser analisados, e eventualmente negociados, função a função, naquilo que depender de recursos financeiros do setor público.

O tema da avaliação tem estado na ordem do dia do Ministério da Educação há pelo menos dez anos, e têm havido muitas experiências interessantes de avaliação realizadas de forma independente por várias universidades, sem que existam, no entanto, sistemas inter-institucionais permanentes que produzam resultados comparáveis. Qualquer sistema de avaliação estará sujeito a imperfeições, mas isto não é razão suficiente para não avaliar, principalmente quando a alternativa é deixar o ensino superior sem qualquer mecanismo adequado de indução de desempenho e qualidade. Existe o temor, por parte de instituições fora do eixo Rio - São Paulo, de que sistemas nacionais de avaliação possam redundar em concentração cada vez maior de recursos nas instituições de maior prestígio e desempenho, reduzindo assim ainda mais as condições que instituições menos aquinhoadas possam ter de melhorar seu desempenho. Este temor tem fundamento, sobretudo se os sistemas de avaliação não levarem em conta as diferenças de objetivos, orientações e populações atendidas pelas diversas instituições de ensino superior, ou seja, se não forem realizadas tomando em conta, de forma clara e explícita, da questão da diferenciação institucional

Em relação ao setor privado, o governo não tem, em princípio, por que tentar interferir e controlar quando não existem recursos públicos envolvidos. A retirada do governo da tentativa de regulamentar o setor privado deverá levar necessariamente ao surgimento de mecanismos de controle e avaliação por parte de associações profissionais e redes de instituições privadas que se preocupem em se diferenciar dentro do mercado educacional. O governo deve estimular a criação destes mecanismos, sem monopólios. Em geral, é necessário que existam muito mais informações sobre os diferentes cursos, carreiras e instituições do que há hoje, para que o público e o próprio governo possam se orientar. Instituições privadas que recebem recursos públicos devem estar sujeitas, em princípio, aos mesmos mecanismos de avaliação das instituições públicas propriamente ditas(14). E sistemas de crédito educativo, se bem constituídos, podem se transformar em mecanismos bastante eficazes de financiamento tanto para o setor público quanto para o setor privado, baseado na avaliação implícita feita por cada estudante ao decidir aonde colocará seu investimento.

Finalmente, a distinção que hoje ainda existe entre "universidades" e "escolas isoladas" parece estar totalmente esvaziada, e talvez devesse ser abandonada de uma vez por todas. A suposição ainda dominante é que as universidades, por cobrirem "todas" as áreas de conhecimento e terem professores e pesquisadores de alto nível, poderiam ser autônomas, mas não as escolas que se dedicam a áreas específicas e não têm um quadro acadêmico bem constituído. A aplicação rígida deste critério, hoje, desqualificaria um grande número das atuais universidades, tanto públicas quanto privadas, desta categoria. A exigência de "universalidade do campo" é totalmente obsoleta para os dias atuais, e tem sido sistematicamente fraudada (um curso de biologia ou "ecologia" pode ser apresentado como cobrindo a área de ciências biológicas, e um curso de matemática pode responder pelas ciências exatas e tecnologia). Em última análise, se a sociedade dispuser de mecanismos claros de avaliação das instituições e suas carreiras, feitas pelos governos, corporações profissionais, entidades de classe e outras, a distinção entre instituições universitárias e não universitárias perde o interesse. Se estas avaliações não existirem, a distinção continuará sendo irrelevante.
Quadros

Quadro 1: América Latina, taxas brutas de escolarização superior e gastos públicos por aluno (milhões de dólares, diversos países (1990)

País

Taxa Bruta de Escolarização Superior

Gasto médio anual por aluno em instituições oficiais

Argentina

39,90 920

Bolívia

20,60 455

Brasil

11,30 8.712

Colombia

14,20 981

Cuba

20,80 677

Chile

20,60 1.480

México

14,00 1.155

Peru 

33,10 262

Uruguai

30,10 872

Venezuela

26,60 1.454
Fonte: J. J. Brunner e outros, 1994.

Quadro 2 - Pessoas ocupadas de 10 anos ou mais de idade: classes de rendimento mensal de todos os trabalhos por grupos de anos de estudo.
  Total Sem instrução e menos de 1 ano 1 a 3 anos 4 a 7 anos 8 a 10 anos 11 a 14 anos 15 anos ou mais Não determi-nados e sem declaração
Até 1/2 salário mínimo 11,39% 23,15% 16,60% 10,33% 5,39% 2,13% 0,26% 9,70%
Mais de 1/2 a 1 salário mínimos 17,70% 21,95% 20,13% 20,37% 17,10% 9,42% 1,56% 25,91%
Mais de 1 a 2 salários mínimos 20,82% 16,95% 20,18% 24,20% 25,62% 19,60% 6,15% 25,80%
Mais de 2 a 3 salários mínimos 10,69% 5,12% 8,26% 11,95% 15,23% 15,29% 6,78% 8,67%
Mais de 3 a 5 salários mínimos 10,24% 3,18% 5,38% 9,82% 14,76% 20,30% 16,09% 7,42%
Mais de 5 a 10 salários mínimos 7,28% 1,24% 2,53% 4,92% 9,41% 17,78% 25,86% 6,28%
Mais de 10 a 20 salários mínimos 3,26% 0,35% 0,77% 1,46% 2,84% 7,74% 22,11% 0,85%
Mais de 20 salários mínimos 1,61% 0,08% 0,22% 0,53% 0,94% 2,71% 17,01% 0,00%
Sem rendimento 15,68% 25,62% 24,70% 15,66% 7,90% 3,64% 1,32% 13,04%
Sem declaração 1,32% 2,36% 1,23% 0,76% 0,81% 1,40% 2,86% 2,34%
  TOTAL 100,00% 100,00% 100,00% 100,00% 100,00% 100,00% 100,00%
Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Sem rendimento: Inclusive as pessoas que receberam somente em benefícios.

Fonte: IBGE, PNAD 1993.

Quadro 3 - Demanda e acesso ao ensino superior, por grandes regiões, 1994
  Norte Nordeste Sudeste Sul C Oeste Total
Vagas 17,542 68,152 351,46 101,34 35,641 574,135
Inscrições 113,367 358,569 1.270.142 334,039 160,906 2.237.023
Ingressantes univ 16,557 65,128 265,442 83,534 32,589 463,25
Concluintes 2 grau 45,07 172,37 355,273 121,438 54,683 748,834
% ingressantes 14,60% 18,16% 20,90% 25,01% 20,25% 20,71%
ingressantes univ/ concluintes 2 grau 36,74% 37,78% 74,71% 68,79% 59,60% 61,86%
Fonte: Ministério da Educação, Sinopse do Ensino Superior, 1995

Quadro 4: Gastos públicos com educação superior na América Latina, 5 países.
  Gasto público em educação como % do PNB % dos gastos correntes em educação superior taxa de gastos públicos em educação superior, 1990 (1980=100) gasto público total educação superior (milhões de dólares) gasto por aluno em instituições públicas de ensino superior
Argentina(a) 1,5 46,7 79 844,42 920
Brasil(b) 3,9 25,6 214 3146 8712
Chile 3 21,6 59 216,62 1480
Colômbia 2,9 18,5 129 185,85 961
México 4,1 16,7 83 1028,7 1155
(a) só inclui os gastos centralizados do Ministério da Cultura e Educação, dedicados predominantemente às universidades nacionais (b) a taxa da coluna 3 se refere ao ano de 1986

Fonte: Brunner, 1994

Quadro 5 - instituições federais de educação superior - despesas executadas com recursos do tesouro e custo por aluno (Em milhões de dólares)
  Orçamento Global Custo Por Aluno*
ANO US$ Oficial  US$ Paralelo US$ Oficial US$ (Paralelo) Em US$ de 1994
1974 325.659,8 310.629,3 1,396 1,381 5.027,5
1975 442.503,8 371.979,1 1,793 1,507 5.977,0
1976 596.018,5 480.373,1 2,343 1,889 7.406.4
1977 674.076,6 589.817,1 2,432 2,128 7.157,6
1978 832.723,2 739.605,9 2,773 2,462 7.388,6
1980 976.681,9 866.101,7 2,918 2,588 7.321,1
1982 1.482.764,6 1.246.601,9 4,214 3,61 8.694,5
1984 857.349,5 837.010,4 2,349 2,294 5.815,4
1986 1.231.783,3 816.277,5 3,457 2,291 8.700,0
1988 3.631.185,4 2.617.547,0 10,02 7,223 11.303,5
1989 7.313.312,1 3.368.555,8 20,516 9,45 15.654,5
1990 3.621.029,8 2.833.018,8 9,099 7,119 10.947,7
1991 2.256.725,4 2.039.326,2 5,619 5,077 7.895,5
1992 1.931.789,0 1.620.642,1 4,652 3,902 6.656,8
1993 2.861 .959,0 2.433.654,3 6,545 5,565 8.258,8
1994 4.369,000,0 4.117.735,9 9,783 9,22 9.783.2
1995 5.896.300,0 5.857 882,4      
* A partir do 1990, inclusive, Os alunos do 1º e 2º grau estão incluídos no total do corpo discente.

Fonte: Jacques Schwartzman, 1996. Políticas de Ensino Superior no Brasil na Década de 90. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, abril de 1996, manuscrito.



Referências Bibliográficas

Barros, Ricardo Paes e José Márcio Camargo, "As Causas da Pobreza no Brasil", em Modernidade e Pobreza, Rio, Nobel (Forum Nacional), 1994, pp. 81-114.

Brunner, José Joaquin e outros, 1994: Educación Superior en América Latina: Una Agenda de Problemas, Políticas y Debates en el umbral del año 2.000. Santiago, FLACSO, manuscrito.

Castro, M. H. Magalhães, A Pós-Graduação em Zoom, NUPES, documento de trabalho 6/91.

Daland, Robert T., Brazilian Planning: Development, Politics and Administration. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1967.

Donângelo, Maria Cecília, coordenadora, Condições do Exercício Profissional de Medicina na Área Metropolitana de São Paulo, Universidade de São Paulo, Departamento de Medicina Preventiva, 1983, mimeo.

Espósito, Marília Pontes, coordenadora- Estudo Exploratório sobre o destino ocupacional, expectativas e desempenho profissional dos graduados em Pedagogia, Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, Núcleo de Estudos de Sociologia da Educação, Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, 1987, mimeografado.

Machado, Edson, 1994 - A questão da Expansão do Ensino Superior Brasileiro - um desafio para o curto prazo. Rio de Janeiro, Fundação Cesgranrio, Forum: Brasil 1995, Novembro, 1994, manuscrito.

Ministério da Educação, Por uma Nova Política para o Ensino Superior no Brasil, relatório final da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior, Brasília, Ministério da Educação (Simon Schwartzman, relator). Brasília, 1995.

Schwartzman, Jacques, "O Crédito Educativo no Brasil", Educação Brasileira 17, 34 (janeiro-junho, 1996), pp. 71-84.

Schwartzman, Jacques, Políticas de Ensino Superior no Brasil na década de 90. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, abril de 1996, manuscrito.

Schwartzman, Simon, "Brazil: Opportunity and Crisis in Higher Education,"Higher Education, 17, 1 (99-119), 1988.

Schwartzman, Simon, "O Futuro do Ensino Superior no Brasil", em Vanilda Paiva e Mirian Jorge Warde, Dilemas do ensino Superior na América Latina, Campinas, Papirus, pp. 143-178, 1994.

Schwartzman, S., Helena Bomeny e Vanda Costa, Tempos de Capanema, Paz e Terra / EDUSP, 1984

Schwartzman, Simon - Os Estudantes de Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, NUPES, Análises Preliminares AP5/92, 1992.

Schwartzman, S., Eduardo Krieger, Fernando Galembeck, Eduardo A. Guimarães e Carlos O. Bertero, "Ciência e Tecnologia no Brasil: uma nova política para um mundo global", in S. Schwartzman, ed., Ciência e Tecnologia no Brasil: Política Industrial, Mercado de Trabalho e Instituições de Apoio. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1995, pp. 1-59.

Silva, Geraldo Bastos Silva, A Educação Secundária, São Paulo, Editora Nacional (Atualidades Pedagógicas, vol. 94), 1969.



Notas:

1. Ricardo Paes e Barros e José Márcio Camargo, 1994.

2. As informações orçamentárias são extraídas sobretudo de Schwartzman, Jacques, 1996.

3. Os cálculos de custo por aluno são reconhecidamente imprecisos. No numerador, depende de se estão incluídos os gastos com hospitais universitários (que aparecem os orçamentos globais) e os gastos de bolsas, pesquisas e rendas próprias (que em geral não aparecem), ou se é possível diferenciar o que seja, especificamente, gastos com educação. No denominador, depende de se estão incluídos os alunos de cursos secundários mantidos pelas universidades, e os alunos de pós-graduação. O "número de alunos" é também um conceito impreciso, variando do começo ao fim de ano, e também do número de disciplinas cursadas (seria necessário, a rigor, uma medida do número de alunos em tempo integral equivalente, o que não existe).. Comparações através do tempo dependem também das taxas de câmbio e delatores utilizados. Seja qual for a conta, no entanto, o custo per capita dos estudantes das universidades federais brasileiras continua extraordinariamente alto, se comparado com o custo dos demais países da região.

4. Exceto em áreas como Medicina e Odontologia, onde existe um claro excedente de candidatos qualificados que não conseguem acesso,

5.Ver Schwartzman, Jacques, 1995, para uma análise da experiência brasileira e atuais projetos de crédito educativo.

6. Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo o regime de dedicação exclusiva só atingia a 13% dos professores, segundo os dados de 1989. Nas áreas de medicina e engenharia existiam grandes contrastes entre as instituições da capital do Estado e as do interior. Assim, a Faculdade de Medicina de São Paulo tinha 32% de seus professores em regime de tempo integral, em contraste com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, com 90%. A Escola Politécnica tinha 54% de professores em tempo integral, e a Escola de Engenharia de São Carlos, 79%. Em relação às faculdades de odontologia de São Paulo, Bauru e Ribeirão Preto, as percentagens eram de 21%, 76% e 62%, respectivamente.

7. O modelo que se procura imitar é do Instituto Rio Branco, responsável pela formação do corpo diplomático brasileiro. Não existe nenhuma avaliação conhecida do Instituto Rio Branco, além de sua boa reputação, que se estende à diplomacia brasileira em seu conjunto. O Instituto funciona como uma escola de graduação, e, ao se constituir como única porta de entrada para o serviço diplomático, acaba por impedir que o Ministério de Relações Exteriores brasileiro recrute diplomatas entre os alunos dos melhores programas de pós-graduação em economia, ciências políticas, história, administração, e assim por diante. A Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas foi criada na década de 50 com a mesma pretensão, sem ter conseguido os resultados que se esperavam (Daland, 1967).

8. A reforma do ensino secundário de 1942 instituiu a distinção entre o ensino secundário propriamente dito, de formação acadêmica científica e humanista, conduzindo à Universidade, e o ensino profissional de tipo industrial, agrícola e comercial, do qual só o último adquiriu maior dimensão, recrutando estudantes de nível socialmente inferior aos que se dirigiam às escolas secundárias convencionais. (Schwartzman, Bomeny Costa, 1984, pp. 188 e seguintes; e Silva, 1969).

9. Teoricamente, cursos de nível "A" deveriam ter qualidade comparável a cursos semelhantes nas melhores universidades no exterior. Na prática, o rigor desta avaliação parece variar conforme a área de conhecimento, e tem uma tendência a inflacionar.

10. Segundo publicação do Ministério de Ciênica e Tecnologia, em 1994 a CAPES e o CNPq concederam um total de 67.544 bolsas de estudo, 4.620 das quais para o exterior. (Ministério de Ciência e Tecnologia, Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia, 1966.) Levantamento preliminar da CAPES para 1995 indicava um total de 31.757 bolsas das duas agências para estudantes de mestrado e doutorado. Segundo estes números, 46% dos alunos de mestrado e 52% dos de doutorado teriam bolsas de estudo. A este número haveria que se acrescentar os bolsistas da FAPESP e outras fundações estaduais, e bolsas de pesquisa que não são contabilizadas como de pós-graduação.

11. Castro, 1991 (dados do Ministério da Educação). A estes 10 anos de pós-graduação devem ser somados os 5 anos de graduação, o que significa que a idade mínima para o doutoramento deve ser de aproximadamente 33 anos. Como na maioria dos casos existem intervalos entre os diferentes cursos, não é rara a situação em que doutorados são obtidos quando os estudantes já estão próximos da aposentadoria, que, para mulheres em atividades docentes no Brasil, se dá aos 25 anos de exercício profissional.

12. Para uma visão da situação atual da pesquisa científica e tecnológica no Brasil, ver S. Schwartzman e outros, 1995.

13. Este sistema pode funcionar bastante bem para avaliar, de forma comparativa, cursos de áreas relativamente homogêneas e bem institucionalizadas, mas não teria como medir o valor adicionado da educação superior, a não ser se associado a mensurações realizadas no início dos cursos.

14. É interessante que o Chile tenha abandonado a distinção tradicional entre instituições "públicas" e "privadas", e utilize agora a diferença entre instituições com subsídios governamentais (que incluem, por exemplo, a Universidade Católica do Chile, em pé de igualdade com a Universidade Nacional) e as instituições sem financiamento público. <