A Organização
Napoleônica do Conhecimento Simon Schwartzman
não publicado, junho de 1989
Meio século antes da Revolução de 1789 a França já despontava como a grande
potência intelectual e científica da Europa. A Revolução demoliria muitas
das principais instituições culturais e científicas da França, começando
pela Academia de Ciências, passando pelas universidades e chegando a seu
extremo, talvez, com a execução de Lavoisier na guilhotina. Ao mesmo tempo
começava, no entanto, uma grande remontagem do sistema educacional e científico,
começando com a criação da Escola Politécnica em 1794, passando pela transformação
do antigo College Royal no College de France, e culminando
com a centralização napoleônica, que deixaria sua marca pelos próximos cento
e cinqüenta anos e seria avidamente copiada pelo mundo afora, inclusive
no Brasil.
As reformas napoleônicas ampliariam, por algumas décadas, o predomínio intelectual
francês sobre a Europa, e tornariam realidade uma parte importante do ideal
revolucionário de igualdade social, garantindo a todos o acesso à educação
pública, sob a supervisão e a tutela do Estado. Em meados do século XIX,
no entanto, a França já havia perdido sua liderança científica e tecnológica
para a Alemanha, e mais tarde para a Inglaterra e os Estados Unidos. É só
a partir dessa época, infelizmente, que o Brasil começa a copiar, de maneira
fragmentada, o modelo educacional napoleônico, que seria consolidado em
versão verde e amarela nos anos 30 deste século. A revisão e a desmontagem
do sistema napoleônico tem sido uma preocupação central na França nas últimas
décadas, ante o desafio tecnológico norte-americano e asiático; atrasado
como sempre, o Brasil só agora começa a suspeitar que podem haver coisas
extremamente problemáticas no sistema de organização da educação, da ciência
e da cultura que por tantos anos procurou copiar.
Não é possível começar a entender o sistema napoleônico, e suas conseqüências,
se não atentamos para o seu paradoxo central, que foi a criação de um sistema
educacional e científico extremamente centralizado, estratificado, formalizado
e rígido, em nome da igualdade e da liberdade. A criação de um sistema educacional
uniforme para todo o país, o monopólio governamental na outorga de diplomas,
a criação de um sistema de "faculdades" sob estrita supervisão
central, os concursos públicos para as posições de magistério e do serviço
público, o baccalauréat uniforme ao término dos estudos secundários,
tudo isto foi feito em nome da igualdade de oportunidades, da expansão da
educação e da eliminação dos privilégios. Em parte, estes resultados foram
alcançados. Ao mesmo tempo, no entanto, a burocracia aumentava de tamanho,
as possibilidades de iniciativa e criatividade locais eram suprimidas, e
a cidade de Paris inchava, concentrando nela todo o poder, prestígio e brilho
que a França irradiava para o resto do mundo, mas que, pouco a pouco, ia
exaurindo.
Seria um equívoco supor que a concentração de poder e a extrema estratificação
do sistema cultural francês tenham sido uma simples conseqüência dos impulsos
igualitários da Revolução. A centralização administrativa e burocrática
já existia no regime antigo, e a restauração napoleônica nada mais fez do
que retomar uma tendência que já vinha se fortalecendo décadas antes, e
que a revolução fora capaz de ameaçar, mas jamais de substituir por uma
concepção nova sobre como reorganizar a sociedade de forma efetivamente
mais democrática e justa.
Algumas das características do sistema napoleônico tinham mais que ver com
a tradição centralizadora e aristocrática da sociedade francesa, e com a
tradições intelectuais do país, do que com as eventuais perversões do igualitarismo
burocrático. Uma delas foi a criação de um sistema de ensino superior de
dois andares, o primeiro ocupado com um pequeno conjunto de grandes
écoles especializadas e acessíveis por concursos extremamente competitivos
e que abriam as portas para as posições de maior autoridade e prestígio
no país, e o outro pela profusão de facultés de acesso relativamente
fácil, mas orientadas, principalmente, para a formação de professores de
nível secundário, ou de profissionais de menor prestígio e reconhecimento.
Um resultado positivo deste sistema foi a manutenção da qualidade do sistema
de educação básica e secundária na França; o principal resultado negativo,
no entanto, foi deixar a pesquisa científica praticamente do lado de fora
do sistema educacional, o que ajuda a entender como a França acabou por
perder sua posição de liderança ao longo do século passado.
O debilitamento da França como potência científica se prende, também, ao
sistema de generalizado de concursos públicos tanto para o ingresso nas
escolas mais disputadas quanto para a contratação e promoção de professores,
assim como para outras posições importantes do serviço público nacional.
Enquanto que na Alemanha, por exemplo, professores eram contratados para
as universidades por sua capacidade demonstrada de pesquisa e contribuição
original para o conhecimento, na França prevalecia a demonstração da cultura
acumulada, da memorização e da erudição no uso de conhecimentos já consolidados.
A ênfase na matemática formal, exigida dos candidatos às grandes escolas
de engenharia, como a Politécnica, se por um lado fez famosa a matemática
francesa e a qualidade de seus engenheiros, tem sido também apontada como
uma das causas de sua debilidade na física experimental e em outras ciências
empíricas. A ênfase nas grandes sínteses literárias e filosóficas, se fizeram
famosos alguns dos grands patrons das humanidades parisienses,
também contribuiu para sua duração efêmera, assim como para a pobreza da
pesquisa social e econômica mais quotidiana no dia a dia da universidade
francesa.
Esta visão da herança napoleônica no campo do conhecimento é certamente
polêmica, e apenas toca um grande conjunto de problemas que tem sido intensamente
discutidos em todo o mundo, e na França sobretudo. Ela faz parte de um grande
movimento intelectual de rever e reexaminar o legado da Revolução de 1789,
não, evidentemente, para restaurar o Ancien Régime, mas para trazer
de volta a França, e todos aqueles que, no passado, se viram fascinados
por suas conquistas, de volta para o mundo do presente e do futuro.
<