A quem a ciência serve?

Simon Schwartzman

Publicado em Isto É, 29 de junho de 1977, pp. 14-15.

A ciência e a tecnologia a estão por toda a parte e poucos se atrevem a se opor a elas. No entanto, a ciência é uma flor exótica e delicada, que exige condições especiais para crescer e florescer. A razão é simples: todos, ou quase todos, são a favor do produto da ciência, mas nem todos os países, governos e sociedades estão dispostos a pagar seu preço.

As comunidades científicas são, em geral, exigentes Elas parecem pedir, nem mais nem menos, um cheque em branco. Os cientistas querem liberdade para escolher seus temas de pesquisa, decidir entre si o que é e o que não é importante, ser os juízes da qualidade do trabalho próprio e de seus colegas, ter um padrão de vida razoável, que atraia os melhores talentos, não se submeter à disciplina de horários e relógios de ponto e não prometer nada em troca, a não ser a busca descomprometida da verdade.

Os países que concordam em dar a seus cientistas este cheque em branco não estão simplesmente interessados nos benefícios da técnica: eles acreditam no valor do conhecimento, na utilização da razão como critério último da verdade das coisas. Eles acreditam em uma fronteira em constante expansão, levada à frente por um conhecimento cada vez mais abrangente e mais profundo da natureza física, biológica e social. Como esta fronteira não é dada de antemão, eles acreditam na liberdade de pesquisa, no valor da inteligência e no fortalecimento constante de suas comunidades científicas.

"Judeu branco."

Nem sempre isto ocorre, como os exemplos históricos mostram. A Alemanha do século XIX ofereceu condições excepcionais para o desenvolvimento da pesquisa científica em suas universidades. A transformação da Alemanha em potência científica antecede, pelo que sabemos, a própria unificação do país e sua transformação em grande potência européia na segunda metade do século, No entanto, a exótica flor da ciência já fenecia, naquele país, quando ele se preparava para a aventura militar e tecnológica que foi a Segunda Guerra Mundial.

Em 1935, o reitor da Universidade de Heidelberg declarava que "a importância científica de qualquer conhecimento é algo totalmente secundário quando comparado à questão de sua utilidade." Esta frase expressava a noção de que a ciência e os cientistas deveriam servir, não mais ao ideal da verdade, mas aos objetivos econômicos, políticos e militares do Reich. Se até então os critérios de avaliação do trabalho dos cientistas eram tão objetivos quanto possível, agora eles passavam a ser ideológicos e raciais. Werner Heisemberg, um dos fundadores da física moderna, não escapa da pecha de "judeu branco" por teimar em afirmar que as teorias de Einstein eram importantes para a ciência.

Fim da da inocência.

O significado mais profundo do utilitarismo e racismo alemães, em relação à ciência, era que ele implicava em retirar da comunidade científica o direito de decidir o que devia ou não ser pesquisado e quais eram os bons e os maus cientistas. Robert K. Merton, em 1 938, já mostrava como a situação era insustentável. "Em muitos casos," dizia, referindo-se à Alemanha de então, "cientistas são obrigados a acatar o julgamento de líderes políticos incompetentes a respeito de questões de tipo científico. Mas isto contradiz frontalmente as normas institucionalizadas da ciência. Estas normas são desprezadas pelo Estado totalitário como preconceitos 'liberalóides', 'cosmopolitas' ou 'burgueses', na medida em que não se submetem a um credo político que não pode nem deve ser questionado." Não é por acaso que um processo similar tenha ocorrido , anos depois, na União Soviética, onde a subordinação da pesquisa científica aos princípios doutrinários do stalinismo levou à catástrofe hoje conhecida como o affair Lysenko.

Após a Segunda Guerra, a comunidade científica mundial vê-se chamada à responsabilidade . Não bastava mais buscar a verdade pela verdade, garantir a independência de trabalho e de pesquisa, para que tudo fosse bem. A física moderna tinha construído a bomba atômica e os políticos e militares agora a usavam. Pela primeira vez, talvez, os próprios cientistas começam a se perguntar se não deveriam colocar limites em suas pesquisas e se preocupar com os possíveis malefícios de seus produtos.

Rompe-se a identidade que parecia existir entre o progresso, o bem-estar da humanidade, o império da razão e o desenvolvimento da ciência. Oppenheimer se opõe à utilização da física para fins militares e sofre os efeitos da inquisição de McCarthy. A comunidade científica, inevitavelmente, se politiza, e a idade da inocência, se um dia existiu, aproxima-se de seu fim.

DNA e ficção.

Em seu discurso na reunião anual de 1977 da American Association for the Advancement of Science - que serve de inspiração para nossa SBPC - seu presidente, W. D. McEnroy, defendia a necessidade de um apoio contínuo da sociedade norte-americana à ciência básica, baseado na noção de que se trata de um investimento que inevitavelmente reverte, a longo prazo, em benefício da solução dos problemas humanos. Esta noção é o cheque em branco que continua, assim, a ser exigido.

Uma das razões da continuação deste cheque em branco é que, ao lado da ciência básica, existe também a ciência aplicada, o desenvolvimento de modernas tecnologias, que servem de correias de transmissão entre a sociedade que dá os recursos e os cientistas que buscam suas verdades de acordo com seus próprios critérios.

O exemplo talvez mais significativo das novas características da comunidade científica norte-americana é o atual debate sobre a recombinação do DNA, ou seja, a pesquisa sobre engenharia genética. A possibilidade entrevista longinquamente de criação de novas formas de vida criou uma celeuma que envolveu, em certo momento, a Câmara de Vereadores de Cambridge, Massachussetts, que se julgou no direito de dizer à Universidade de Harvard o que ela poderia ou não pesquisar. Resumindo sua avaliação deste exemplo, observava o presidente da AAAS ter sido muito importante que "as normas de segurança estabelecidas pela pesquisa de recombinação de DNA fossem estabelecidas pela própria comunidade. Acredito que a comunidade científica deve reconhecer as novas prioridades da época que se aproxima, com o risco de enfrentar a possibilidade de que outros tomem as necessárias decisões em seu lugar."

Apoio financeiro

No Brasil, contudo, esta flor exótica sempre encontrou solo inóspito, e quase nunca a comunidade científica brasileira teve condições de tomar suas próprias decisões. Houve uma época, ainda na Colônia, em que falar de ciência cheirava a liberalismo e Revolução Francesa, e por isto era vedado. Depois, com a independência, surgem escolas superiores, bibliotecas, museus, laboratórios. Mas a mentalidade era estritamente prática, utilitarista. Havia lugar, na monarquia esclarecida de D. Pedro II, assim como na República positivista que a sucedeu, para a técnica moderna, para os resultados da ciência - mas não para a comunidade científica.

Alguns homens extraordinários conseguem grandes feitos. Oswaldo Cruz, à sombra do sucesso das campanhas contra as epidemias, constrói um centro de ciências básicas que sobrevive por algumas décadas, enquanto dura o prestigio de seus criadores. Henrique Morize assume o Observatório Nacional em 1908, quando ele se transforma, por decreto, em "Diretoria de Meteorologia e Astronomia"; consegue organizar de alguma forma a meteorologia, e isto lhe permite, mais tarde, espaço para a pesquisa astronômica. O Instituto Biológico de São Paulo tem seu valor reconhecido no combate à broca do café, e a presença de Rocha Lima, cientista de formação alemã, consegue aproveitar o impulso para transformá-lo em importante centro de pesquisas, que dura tanto quanto sua própria liderança. No Rio, Carlos Chagas Filho organiza, na década de 30, o Instituto de biofísica da Universidade do Brasil, graças a uma série de circunstâncias pessoais que não excluem o apoio financeiro da família Guinle. (A persistência deste Instituto como centro de alto nível através dos anos é uma rara exceção a confirmar a regra do pobre quadro da ciência carioca.)

Modelo europeu.

Existem outros exemplos com história semelhante de ascensão, brilho e queda de instituições e grupos de pesquisa. A receita é, em geral, a mesma: primeiro, um cientista de alto nível, treinado no exterior, ou estrangeiro ele próprio; depois, uma circunstância excepcional - uma atividade de impacto, com relacionamento eventual com governantes ou mecenas; a partir daí, alguns anos de brilho, que vão pouco a pouco se esvaecendo ante o utilitarismo dominante, a perda de contato com as fontes internacionais de estímulo.

A necessidade de fundos públicos traz consigo a burocracia, a indiferença ou a imposição de critérios "práticos" ou "aplicados" ao trabalho das instituições, impedindo assim que a comunidade cientffica floresça com suas regras próprias de funcionamento e decisão.

Se os institutos brasileiros nunca chegaram a dar à comunidade cientifica a pujança necessária, as universidades teriam um pouco mais de sucesso, Não no Rio de Janeiro, onde a planejada Faculdade de Ciências da Universidade do Distrito Federal não chega a ganhar corpo, nascida, na década de 30, entre os embates ideológicos da época; mas em São Paulo, onde, pela primeira vez na história do país, se procura transplantar toda uma faculdade de cientistas europeus, com o objetivo explícito e declarado de fazer ciência. Não sem dificuldades, pois ocorria num contexto em que predominavam as escolas profissionais e onde a possibilidade de uma comunidade científica organizada por critérios próprios era até então impensável.

Laboratórios não bastam.

No entanto, a semente germina e cresce. Terminada a Guerra, todos percebem que a ciência pode trazer poder, todos acreditam no progresso. A comunidade cientifica paulista sente que não pode mais ficar à mercê dos humores, preconceitos e contingências dos governantes. Surge, com cem anos de atraso, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - organizada em 1948, mais de um século depois de sua congênere do Norte. É criado o Conselho Nacional de Pesquisas, os recursos para o setor aumentam.

Esta não é mais, no entanto, a idade da inocência. A crença no progresso trazido pelo simples estímulo à liberdade de pesquisa e ao uso da razão já não predomina. Agora os governos querem a ciência e tecnologia para obter poder - ou, ao contrário, tratam de impedir seu desenvolvimento pela mesma razão. Os cientistas mais esclarecidos não se contentam com seus laboratórios, e tratam de discutir as condições sociais e políticas necessárias para estimular e utilizar, de forma adequada, os conhecimentos que têm. Os políticos e administradores, como é natural, se ressentem.

Neste confronto, perde-se muitas vezes de vista que, pelo fato de ser menos inocente, a flor exótica da ciência não deixou de ser frágil. Ela ainda necessita de uma comunidade científica que pesquise com liberdade, que defina seus próprios critérios de qualidade, que tenha uma participação ativa e vigorosa na determinação de suas prioridades. Ela necessita, mais agora do que antes, de uma comunidade científica que assuma, plenamente, a responsabilidade social que lhe cabe. <