O Arado e a Espada

Simon Schwartzman

Publicado em O Estado de São Paulo, 1 de junho de 1979, p. 2

Uma das características mais gerais do pensamento ideológico é ver o mundo de atitudes, valores e posições políticas em termos sempre dicotômicos, ou unidimensionais - nas sociedades modernas, uma dimensão que vai da "esquerda" a "direita" e á qual corresponderia, basicamente, uma polarização entre proletariado e burguesia.

Não há dúvida de que, na história européia dos últimos cem anos, grande parte do jogo político pode ser entendido nestes termos. No entanto, eles são insuficientes para entender as diferenças profundas entre os sistemas políticos da França, Inglaterra, Holanda e Escandinávia, por exemplo, ou as razões pelas quais os partidos da esquerda, supostamente identificados com as maiorias sem privilégios, não conseguem dominar com facilidades os respectivos governos. Existem muitos estudos históricos - entre os quais o do cientista político norueguês Stein Rokkan - que mostram como a dimensão classista é somente um dos aspectos a influir na formação dos partidos europeus. Divisões religiosas, regionais, setoriais e lingüísticas que se dão através do tempo tendem a se sobrepor das maneiras mais diversas; dando quadros politico-partidários que só historicamente, e tomando em consideração o processo de formação do Estado nacional de cada pais, podem ser entendidos. Com o desenvolvimento da industrialização, os partidos trabalhistas, social-democratas e comunistas tenderam a polarizar os diversos quadros políticos ao longo da divisão de classe, absorvendo entre si de um quarto à metade do eleitorado dos diversos países. É possível afirmar que a tradução fiel dos partidos Politics europeus em termos classistas era mais evidente no período de pré-guerra do que agora.

Se o quadro é tão matizado nos próprios países que deram origem a estes conceitos, a aplicação do raciocínio uni-dimensional a ambientes históricos bem distintos pode levar a equívocos e conclusões trágicas. Um exemplo próximo nosso é o Peronismo. No inicio, seu conteúdo militarista e sua aproximação com o nazismo afastou dele toda a esquerda e todos os grupos liberais argentinos. A vinculação do Peronismo com o operariado organizado terminou por difundir a ideia de que, na realidade, as esquerdas e os liberais haviam estado a direita em sua oposição a Perón; e como Perón, depois de sua queda, estava contra os militares, a conversão ao Peronismo generalizou-se. De volta ao poder, o grupo peronista destruiu, pela utilização sistemática de métodos fascistas de atuação política, a breve e esperançosa primavera argentina, e conduziu o país a passos largos ao obscurantismo do terror e contra terror do qual ainda não saiu. E claro que o problema argentino e bem mais complexo do que isto. O que importa aqui, no entanto, é ressaltar a perplexidade gerada em uma população altamente educada e politizada pela necessidade do pensamento ideológico de enquadrar o Peronismo na dimensão esquerda - direita e a partir daí derivar seu apoio (ou oposição) a ele, sem prestar demasiada atenção á forma pela qual o Peronismo, de fato, atuava.

O Brasil tem exemplos parecidos, ainda que sem a dramaticidade do caso argentino. A questão da vinculação dos sindicatos brasileiros ao Ministério do Trabalho serviu, no passado, para identificar as lideranças operárias que se opunham á máquina petebista como direitistas - algo que parece totalmente esquecido hoje, com o ressurgimento do sindicalismo independente no ABC paulista. Foi este mesmo processo que levou á caracterização de vários dos herdeiros mais insignes da oligarquia gaúcha como lideres das classes trabalhadoras brasileiras. O Brasil é ainda um dos primeiros países em que o nacionalismo surge como Ideologia de esquerda, não mais por sua eventual Identificação com interesses de classe, mas por sua oposição á política internacional norte-americana.

É no campo da política internacional, alias, que a total inadequação do pensamento polarizado e uni-dimensional se torna mais evidente. O conflito do Oriente Médio coloca, de um lado, o feudalismo da Arábia Saudita, os revolucionários palestinos, a União Soviética e o fanatismo religioso e retrógrado de Gadaffi - e de outro, o Partido Trabalhista de Israel, com forte tradição social democrática, a falange cristã do Líbano, o nacionalismo exacerbado de Beguin e, hipoteticamente, os países dependentes do petróleo. A China, até há pouco radicalmente pró-árabe, parece querer aproximar-se de Israel...

A realidade é que a vida política tem muitas dimensões, e a visão dicotômica só serve como instrumento de pressão para ganhar adeptos para os lados em pugna. Para ficarmos no Oriente Médio, é tão falso dizer que Israel representa a defesa do mundo livre (ou, o que é o mesmo, o braço do imperialismo ocidental) quanto dizer que o governo saudita representa os interesses do povo palestino - ou, ainda, os de Moscou. A possibilidade de um encaminhamento adequado dessas questões depende de uma consideração real e concreta dos interesses e motivações dos diversos setores e países envolvidos: econômicos, culturais, religiosos e históricos. Isto significa, especificamente reconhecer os direitos palestinos, a realidade histórica de Israel, e fazer com que os quatro ou cinco milhões de israelitas e palestinos deixem de ser peões no conflito artificialmente ideologizado das grandes potências e dos interesses do petróleo.

Em celebre conferencia feita em 1818 na Universidade de Munich, Max Weber distinguia o mundo das posições políticas do mundo da análise da realidade. Na vida política, "as palavras não são instrumentos de análise científica, mas instrumentos de conseguir votos e ganhar dos adversários. Não são arados para ventilar o solo para o pensamento contemplativo; são espadas contra os inimigos; estas palavras são armas". Weber não era, como ninguém poderia ser, contra o uso da espada, quando sabemos com clareza qual é o inimigo. Mas esta clareza não pode ser obtida pela espada, e sim pelo uso o mais livre possível da razão. <