ECONOMIA,
SOCIEDADE E POLÍTICA NO BRASIL
Simon Schwartzman
Palestra realizada em Belo Horizonte, Novembro,
1987 (inédito).
Sumário:
A visão clássica das ciências sociais e sua limitação
A visão contemporânea
Interação entre Sociedade e Economia
Interação entre Sociedade e Estado
Interação entre política e economia
Conclusão
ECONOMIA, SOCIEDADE E POLÍTICA NO BRASIL
Seria difícil pensar em um tema tão abrangente quanto este, o da "Economia,
Sociedade e Política no Brasil". Para não me perder completamente, creio
que devo entendê-lo como uma proposta de examinar, em termos bastante amplos,
como se dão as relações entre estas três esferas da atividade humana em
nosso país, e, mais particularmente, na conjuntura especial que estamos
vivendo. Ainda assim o tema é amplíssimo, mas, pelo menos, já é possível
começar a delineá-lo.
Creio que o ponto de partida deve ser o de contrastar a visão tradicional
das ciências sociais a respeito do relacionamento entre economia, sociedade
e política, e a visão que temos hoje destas questões.
A visão clássica das ciências sociais e sua limitação
A visão clássica das ciências sociais era a de que a sociedade se organizava,
basicamente, para a produção e a apropriação de bens, e daí decorria tanto
as diferentes formas de organização social quanto as diferentes formas de
organização do Estado. A sociedade, entendida como a trama de relacionamento
entre grupos sociais - classes, regiões, grupos lingüísticos, culturais,
étnicos - deveria sempre ser entendida em função do jogo de interesses econômicos
que tinha por detrás. A política, expressa através da disputa partidária,
e materializada no controle do Estado, era a expressão do conflito de interesses
econômicos, e da dominação de uma classe social sobre as demais.
No seu tempo, este entendimento das relações entre economia, sociedade e
política foi revolucionário, na medida em que propunha uma inversão total
da visão tradicional de encarar a organização da sociedades humanas, que
punha ênfase seja no seu ordenamento jurídico, seja em seus valores religiosos
e morais, seja nas qualidades pessoais de seus líderes. Esta visão revolucionária
não ficou restrita aos políticos ou intelectuais da tradição marxista, para
os quais todos os fenômenos sociais e políticos devem ser, em última análise,
referidos à esfera do econômico; ela também domina, e talvez de forma até
mesmo mais radical, entre os economistas da tradição liberal, ou clássica,
que buscam utilizar a lógica do cálculo do interesse econômico para todas
as esferas da atividade humana.
Basta olharmos para a realidade do Brasil de hoje, no entanto, para verificarmos
quão insuficiente é esta visão economicista da realidade em que vivemos.
Seria insano menosprezar a gravidade dos problemas econômicos pelos quais
passamos - as dívidas externa e interna, os baixos níveis de investimento,
a especulação financeira, o desemprego, a pobreza absoluta de grande parte
da população - e as restrições e os condicionantes que eles colocam sobre
o futuro que nos espera. O que eu quero enfatizar é que a lógica econômica
não basta para entender como chegamos à situação em que nos encontramos,
e não acredito que será suficiente para nos ajudar a sair dela.
A visão contemporânea.
Hoje sabemos que a sociedade e a política não são fenômenos redutíveis ao
econômico, mas que têm sua dinâmicas próprias, que devem
ser entendidas e estudadas nelas mesmas, e não em função de outras realidades;
mais ainda, sabemos que é no entendimento da interação entre
estas esferas que está a chave para o entendimento mais adequado de nossa
realidade. Sabemos, ainda que a interação entre economia, sociedade e política
não se dá no vazio, mas a partir de uma realidade historicamente
densa de instituições, experiências, relações, valores, hábitos
e expectativas.
Interação entre Sociedade e Economia.
Em uma sociedade onde o único que predominasse fosse o mercado, as divisões
sociais seriam coextensivas com a divisão social do trabalho - patrões e
empregados, burgueses e proletários. No Brasil, no entanto - como, em graus
diferentes, em todas partes - a sociedade se estrutura tanto em função da
organização econômica quanto em função de outros fatores - as origens étnicas
e culturais, a localização geográfica, as divisões e solidariedades lingüísticas
e religiosas. As próprias relações de classe, aquelas referidas mais diretamente
à divisão do trabalho econômico e à distribuição da renda, são influenciadas
e condicionadas pelo sistema político - se, por exemplo, o Estado intervém
ou não na regulação das relações de trabalho, se o acesso a empregos e a
rendas pode ser obtido pela via política e institucional, e assim por diante.
O que caracteriza a sociedade brasileira, talvez mais do que muitas outras,
é a ausência de uma sociedade efetivamente organizada em termos de classe,
ou seja, de relações de mercado, e a impregnação de todas as interações
sociais pela presença do Estado, da política e, eventualmente, de outras
instituições.
Interação entre Sociedade e Estado.
A noção de que o que ocorre no nível do Estado, ou da política, é perfeitamente
inteligível a partir da sociedade, é ainda muito prevalente em nosso meio.
A primeira questão que vem à mente dos que acompanham a realidade política
brasileira contemporânea é a da irreversibilidade ou não dos processos de
abertura política e democratização a que estamos assistindo. Uma das teses
defendidas a este respeito é de que os anos de autoritarismo já teriam cumprido
sua função, que seria a de realizar, à sua maneira, o processo de transição
da economia brasileira de um sistema proto-capitalista para uma economia
capitalista plena. Uma vez cumprida esta função, o autoritarismo já não
teria razão de ser. E uma tese difícil de ser sustentada se aceitamos que
não existe um padrão uniforme de desenvolvimento para todos os países, e
que o entendimento de uma sociedade nem de longe se esgota na análise das
transformações de seu sistema produtivo; ou, mais especificamente, se entendemos
que o Estado brasileiro tem características próprias, ligadas a suas origens
patrimonialistas, que o tornam bastante distinto dos modelos dos países
capitalistas ocidentais. Bastaria, além disto, uma simples visão da conjuntura
econômica brasileira em meados de 1987 - o problema da dívida externa ainda
não equacionado, a imprevisibilidade dos superavits comerciais, os
gastos públicos ainda fora de controle - para vermos que os anos futuros
serão, certamente, turbulentos na área econômica, com inevitáveis repercussões
ao nível político e social.
Uma outra tese, certamente mais complexa que a anterior, é o que poderíamos
chamar de "tese do transbordamento". Basicamente, ela consiste em afirmar
que o crescimento e a modernização da sociedade brasileira nas últimas décadas
foi de tal ordem que os sistemas tradicionais de controle político da sociedade,
pela cooptação das lideranças e enquadramento corporativista dos setores
organizados da população, ou pela mobilização populista do eleitorado, já
seriam coisas do passado, e neste sentido a volta aos padrões tradicionais
de dominação de nosso Estado neo-patrimonial seria impensável.
Trata-se de uma tese somente em parte verdadeira. E' certo que a parafernália
de controles políticos e institucionais que conhecemos, em parte constituída
nos anos do Estado Novo, está começando a se desmoronar, e a sociedade brasileira
se organiza hoje em uma pluralidade de formas não previstas e dificilmente
enquadráveis em qualquer mecanismo estável de dominação estatal. O que não
é certo é que este processo significa a consolidação da ascendência permanente
da "sociedade civil" sobre o Estado, superando assim, de maneira definitiva,
nosso passado autoritário. Para que isto fosse verdade seria necessário
não somente que as estruturas tradicionais de dominação tivessem "transbordado"
- o que não deixa de ser um fato - mas também que a sociedade brasileira
tivesse se tornado "mais madura" neste processo, podendo ocupar, desta forma,
o espaço deixado pelos antigos mecanismos de cooptação. Não é nada óbvio
que isto tenha ocorrido.
Teorias sobre a "maturidade" dos cidadãos costumam vir em duas versões,
uma de tipo evolucionista, outra de fundamento mais religioso. A primeira
destas versões consiste em afirmar que, na medida em que as sociedades se
desenvolvem, e o povo se torna mais culto e educado, aumenta também seu
nível de politização, seu grau de consciência política, sua maturidade.
Como todas as teses evolucionistas, esta também tem duas vertentes, uma
mais liberal, outra mais marxista e revolucionária. Pela vertente liberal,
o processo de "amadurecimento" se relaciona basicamente com a educação a
ser obtida nas escolas a ser transmitida pelas famílias. Na vertente mais
revolucionária, o processo de amadurecimento político estaria diretamente
relacionado com o desenvolvimento do capitalismo, que traria como conseqüência
a transformação das antigas "classes em si" em "classes para si". Ambas
teorias têm em comum a noção de que o amadurecimento político não se dá
de forma espontânea e automática, mas é um processo evolutivo que depende
de um trabalho constante e permanente de educação e proselitismo, tanto
para que as pessoas "evoluam", na vertente liberal, quanto para que elas
superem os condicionantes das ideologias hegemônicas e mascaradoras dos
verdadeiros interesses, na segunda vertente.
As teorias de fundo mais religioso dispensam a evolução, e partem da tese
que o povo é naturalmente bom, justo e sábio. O problema com o regime político
brasileiro não estaria na "imaturidade" ou falta de consciência política
do povo, mas sim nas manipulações das elites, que sistematicamente tratariam
de escamotear a realidade e apresentá-la de maneira falsa e deturpada. O
verdadeiro trabalho político não seria o de educar e catequizar o povo,
mas sim o de desmascarar seus inimigos explícitos ou ocultos, e permitir
assim que o povo se expresse com liberdade. Esta visão religiosa da sabedoria
popular se manifestou com muita clareza na idéia lançada por alguns setores
segundo a qual a Assembléia Constituinte de 1987 não deveria ser eleita
pelos partidos convencionais, e sim formada, "diretamente", pelo povo. Havia
a idéia de que os partidos políticos, mesmo nas condições de liberdade estabelecidas
para as eleições de 1986, seriam necessariamente corrompidos e alienados;
mas que o "povo", se pudesse se manifestar em sua pureza, poderia se expressar
de maneira plena, fazendo com que o Brasil finalmente encontrasse o regime
político de seus sonhos.
Os resultados das eleições de 1986 permitem testar algumas destas teses.
Chama a atenção, nestas eleições, tanto o fracasso dos candidatos ideológicos
quanto o dos candidatos cuja principal base eleitoral fosse o simples poder
econômico ou a identificação de classe. A eleição paulista poderia ter se
polarizado entre o grande capitalista, Ermírio de Morais, e a liderança
operária organizada no Partido dos Trabalhadores; no entanto, ela terminou
sendo muito mais um conflito entre o líder municipalista Quércia e o arrivista
Paulo Maluf. No Rio de Janeiro, a tentativa brizolista de polarizar as eleições
entre "ricos" e "pobres" fracassou, levando com ela o candidato do PDT.
Em Minas Gerais a polarização foi entre um político tradicional mas rebelde
e outro de base populista, que contava com o apoio do governo do Estado.
Entre os dois, foi punida a rebeldia. A vitória maciça do PMDB foi, em sua
maior parte, a vitória do governo federal. E claro que este é o governo
da República Nova; mas, em muitos estados, o peemedebista de hoje é o pedeessista
de ontem, e o governo é sempre governo.
Sem pretender esgotar a complexidade e variedade dos resultados eleitorais,
e pensando não só nas eleições de governadores, mas também nas proporcionais,
é possível dar uma lista dos atributos necessários para que um candidato
fosse eleito. A primeira é que ele conseguisse, de alguma forma, furar a
barreira do anonimato, e se transformasse em um "mídia event", uma figura
dos meios de comunicação de massas. E claro que dinheiro conta para isto,
mas radialistas e comentaristas de televisão foram eleitos sem maiores dificuldades,
assim como candidatos de pequenos partidos que souberam utilizar bem os
horários gratuitos de propaganda eleitoral. O segundo tipo de candidato
vem votado foi o que tinha uma base institucional bem estruturada: a polícia
civil, um grupo religioso organizado. Alguns candidatos conseguiram boa
votação ao se identificar com um ou dois pontos de grande apelo ideológico
para a classe média, como os "candidatos da pena de morte" do Rio de Janeiro
e São Paulo. Acima de tudo, no entanto, foram eleitos candidatos que, pela
posição atual ou passada na máquina administrativa de seu estado ou município,
conseguiram construir no passado redes de lealdades pessoais que agora se
pagam, ou se renovam na esperança da continuidade. Para o eleitor que não
fosse ligado aos meios de comunicação de massas, não fosse beneficiário
de uma rede de favores públicos, não tivesse um tema que o identificasse
fortemente com um candidato e nem tivesse um parente ou amigo concorrendo,
as eleições majoritárias não chegaram a fazer muito sentido, o que explica
o grande número de votos em branco. As eleições de 1986 significaram não
só a derrota eleitoral dos candidatos ideológicos e programáticos, que tentaram
basear sua campanha na problemática da Assembléia Constituinte, como também
dos partidos que pretenderam a uma definição ideológica mais clara - o Partido
Socialista, o Partido dos Trabalhadores e os partidos comunistas.
O que esta análise suscinta revela é que a "maturidade do povo", tanto quanto
sua hipotética sabedoria e bondade naturais, estão longe de proporcionar
uma base sólida para a constituição de uma nova ordem democrática. Na realidade,
o exemplo de outros países que lograram um sistema político-eleitoral estável
revela que a questão fundamental não é a da "maturidade" do povo, mas a
da natureza das instituições sociais, governamentais e partidárias existentes.
Se estas instituições são bem constituídas e autônomas, elas conseguem traduzir
as preferências eleitorais em mandatos políticos legítimos e regimes políticos
responsáveis. O problema principal com os estados de base neo-patrimonial
não é que eles mantém o povo em situação dependente e alienada, mas, principalmente,
que todas as formas de organização social que eles geram tendem a ser dependentes
do poder público e orientadas para a obtenção de seus favores. O simples
transbordamento das estruturas de dominação mais tradicionais, e a criação
de novas formas de organização política e social, não garante que este padrão
de comportamento não vá se reproduzir.
Interação entre política e economia.
Raciocínio similar pode ser feito em relação à interação entre política
e economia. uma visão histórica adequada das interações entre a política
e a economia no Brasil deve ser suficiente para afastar duas nações igualmente
parciais e simplistas: a primeira, tradicionalmente formulada à esquerda
do espectro ideológico, é a de que o Estado brasileiro é, sempre, o grande
agente dos interesses econômicos mais poderosos, que consegue inclusive
manipular os processos eleitorais em seu proveito. A segunda, ouvida cada
vez com mais freqüência em ambientes mais conservadores, é que o Estado
e a política são os grandes responsáveis pela situação em que nos encontramos,
pela sua irracionalidade, pelos seus gastos excessivos, pela sua indecisão,
e pela facilidade com que é capturado pelos grupos de interesse mais organizados.
O fato de a política não poder ser entendida de forma plena pela lógica
dos interesses econômicos não significa que o jogo político seja angelical
e desinteressado. A verdade é que o Estado brasileiro, pelo poder de distribuir
e atribuir autoridade, e pela capacidade de extrair e distribuir recursos
de que dispõe, sempre foi cobiçado e buscado por aqueles cujas ambições
de poder, prestígio e riqueza não podiam ser atendidos pela atividade econômica
e empresarial enquanto tal. Ganhar uma eleição requer uma capacidade empresarial
distinta da que vigora no ambiente da indústria e do comércio. Os benefícios
advindos do cargo político incluem o prestígio e a honra, a possibilidade
de atender os interesses econômicos e sociais dos eleitores, a capacidade
de distribuir empregos e cargos, e vão até à participação em negócios que
se dão através do Estado, na contratação de serviços, na concessão de licenças,
na obtenção de privilégios. Grande parte destes benefícios são econômicos,
no sentido de que eles implicam no acesso e na aquisição de bens e de riqueza;
mas não derivam da atividade econômica enquanto atividade produtiva, e sim
das posições ocupadas na máquina do Estado.
Não seria correto pensar, pelo dito acima, que a atividade política no Brasil
é simplesmente parasítica em relação à atividade econômica. Pela sua capacidade
de mobilizar interesses e reunir recursos, pelo poder de coletar impostos
e investir, pelas iniciativas que muitas vezes assume, o Estado é freqüentemente
o grande promotor de empreendimentos econômicos rentáveis, seja diretamente,
pelas empresas estatais que cria, seja através do espaço que abre para grupos
privados que encontram, graças à iniciativa do Estado, condiçoes de crescer
e de prosperar. É o Estado ainda a única instituição que consegue, efetivamente,
redistribuir de algum modo a riqueza dentro da sociedade, tanto de forma
condenável - pela sustentação de elites parasíticas que só conseguem se
manter às custas do repasse de recursos públicos - quanto de forma moralmente
mais legítima, através da educação, da previdência social, e dos empreendimentos
urbanos e da política social.
Uma conseqüência deste papel freqüentemente dinâmico e empreendedor que
o Estado Brasileiro tantas vezes assumiu foi que o empresariado brasileiro
sempre viveu, em boa parte, à sombra do Estado, para facilitar e financiar
suas operações, comprar seus produtos, garantir seus preços, controlar as
demandas salariais dos empregados. Esta relação tem sido descrita como uma
forma de "neo-mercantilismo", que tem como conseqüência uma elite empresarial
politicamente debilitada e desacostumada a pensar em termos de eficiência
e racionalização no uso de recursos e na escolha de produtos e fatores de
produção dentro de uma situação de mercado.
As críticas que hoje se avolumam em relação ao Estado Brasileiro, assim
como em relação à própria natureza do processo político e eleitoral, retomados
com ímpeto, com todos os seus defeitos e qualidades, com a Nova República,
tendem a deixar de lado estas dimensões positivas, e na realidade indispensáveis,
do Estado moderno. Pelo tom das críticas, pareceria que nosso principal
problema é o do excesso de Estado, excesso de governo, e que estaríamos
no melhor dos mundos se o Estado e os políticos, amanhã, desaparecessem.
A ineficiência, o desperdício, o descontrole, a indecisão, a mesquinharia
dos interesses menores que se sobrepõem aos interesses gerais, são demasiado
óbvias no quadro político brasileiro para serem negadas, ou tratadas como
problemas menores e sem importância. A crise atual do Estado brasileiro,
no entanto, não deriva da existência destes fenômenos, que sempre estiveram
presentes, mas sim o de sua progressiva incapacidade de atender de forma
minimamente satisfatória às demandas que lhe são feitas, ou aos interesses
dos grupos que dele participam ou a eles se associam. O Estado brasileiro
apresenta hoje um quadro de ingovernabilidade que é tanto
mais grave quanto se choca com a urgência cada vez mais premente de decisões
que implicam contrariar interesses estabelecidos e pressões de curto prazo,
e de eventual impacto político-eleitoral.
Os anos de regime militar serviram para mostrar que a ingovernabilidade
afeta com freqüência os regimes fortes, fechados e imunes aos controles
da imprensa, da opinião pública e dos partidos políticos. O que a democratização
mostra é que ela não basta para que a governabilidade seja instaurada. A
experiência dos poucos anos da Nova República já mostra como algumas decisões
e ações são certamente mais fáceis do que outras. Decisões grandiosas e
de grande impacto, quando possíveis, são sempre as preferidas (veja o plano
cruzado). Políticas setoriais e de longo prazo, no outro extremo, são quase
impossíveis, pela paralização provocada pelo trabalho continuado de interesses
contrariados (reforma agrária, eliminação dos subsídios agrícolas, reforma
administrativa, os próprios ajustes do plano cruzado). Ações aparentemente
"técnicas", de pouca visibilidade pública, são em princípio mais fáceis
de serem conduzidas. Mas, freqüentemente, seu caráter técnico significa
também que estas ações se subtraem facilmente ao controle político, e são
suscetíveis à influência de grupos de interesse especializados (decisões
sobre mercado financeiro, políticas de exportação, subsídios, política nuclear,
incentivos fiscais, etc.)
O desenvolvimento de graus mais altos de governabilidade em um contexto
de legitimidade política depende, tanto quanto a construção de uma ordem
democrática estável, da constituição de uma série de instituições estáveis
e auto-referidas que intermediem entre, por um lado, a opinião pública amorfa
e manipulável e os interesses privados e setoriais capazes de mobilizá-la,
e, por outro, o Estado. Estas instituições são necessárias não somente do
lado da "sociedade civil", como os partidos políticos, os meios de comunicação
de massas, as associações profissionais e sindicais, os grupos de interesse
organizado, etc., como também do lado do Estado, através da constituição
de um funcionalismo público motivado e cioso de suas responsabilidades,
de um judiciário zeloso de sua competência e independência, e assim por
diante.
É de se esperar que estas novas formas de institucionalização surjam e se
desenvolvam não pela simples boa intenção de algumas pessoas, mas pela própria
lógica de interesses dos grupos envolvidos, na medida em que eles comecem
a sentir a precariedade de sua dependência exclusiva dos favores e privilégios
de um Estado neo-patrimonial em crise. O resultado final deste processo,
se ele for bem sucedido, não será, possivelmente, um Estado controlado pela
"sociedade civil", mas uma situação em que instituições públicas solidamente
constituídas possam colocar freios e contrapesos efetivos tanto à volatilidade
da opinião pública quanto ao abuso de poder do Estado e dos interesses privados.
A opinião pública, os grupos de interesse e o poder político do Estado serão
também essenciais, neste contexto ideal, para manter sempre em cheque as
tendências paralisadoras e conservadoras de qualquer sistema social que
se institucionaliza. Nestas condições, as fronteiras usuais entre "público",
"privado", "Estado" e "sociedade" estarão profundamente alterados, assim
como os conceitos que hoje utilizamos para seu entendimento.
Conclusão
Vislumbrar a possibilidade de um encaminhamento adequado para os problemas
políticos e institucionais do país não é o mesmo que afirmar que este caminho
será seguido, e nem mesmo que ele é o mais provável. Se este caminho vier
a ser efetivamente trilhado, existem uma série de questões e dilemas a serem
enfrentados, dois dos quais merecem uma atenção especial.
Uma questão que se coloca com intensidade é a dos mecanismos de inclusão
ou exclusão dos setores hoje marginalizados do "Brasil moderno" em relação
à sociedade futura que se pretende construir. Esta questão é por vezes colocada
em termos de uma oposição entre um modelo de desenvolvimento internacionalizado,
baseado no fluxo relativamente aberto de idéias, pessoas e mercadorias do
Brasil com o resto do mundo, e um modelo mais autárquico, fechado e, presumivelmente,
mais autêntico e nacional. O que dá argumentos à segunda posição é a constatação
de que o desenvolvimento do "Brasil moderno" tem se caracterizado pela exclusão
de grandes setores da população, afetando particularmente as regiões nordestinas,
o interior e a população de cor. No seu extremo, esta posição vem acompanhada
de um rechaço generalizado à civilização ocidental e seus valores de eficiência,
racionalidade, e individualidade, e sua substituição por valores supostamente
mais autênticos de identidade étnica e cultural, afetividade, e coletividade.
Não falta, nesta perspectiva, os que sustentam que o Brasil possui os elementos
de uma civilização superior à do racionalismo e materialismo ocidentais,
que estaria tão somente mascarada pelas manipulações das classes dominantes
e seus aliados internacionais.
Quem conhece algo da história do Brasil sabe, no entanto, que não possuimos
no passado um modelo de civilização próprio e mais autêntico para o qual
possamos aspirar a retornar. Desde sua criação este país tem sido um complemento
- e, freqüentemente, uma imagem retorcida - dos impérios coloniais e dos
centros mundiais cujas influências culturais e interesses econômicos até
aqui chegaram. A busca de um passado idealizado, apesar de provavelmente
irrealista e ilusória em todos os casos, pode fazer algum sentido em países
com uma história distinta, e uma cultura não ocidental identificável. Isto
não significa, evidentemente, que não existam especificidades culturais
próprias do país que não tenham valor e não possam florescer. Mas esta especificidade,
para florescer e adquirir valor universal, há de residir nas maneiras próprias
que os brasileiros construirão para se inserir no mundo moderno, e não no
retorno nostálgico a formas culturais de um passado que não chegou a existir.
Assinalar o beco sem saída do nacionalismo cultural não significa ignorar
a gravidade dos problemas de incorporação assinalados acima. O que é importante
frizar em relação a esta discussão sobre a cultura brasileira é menos a
solidez das teses nacionalistas e isolacionistas - que é quase inexistente
- do que seu potencial de criação de formas explosivas de nacionalismo populista,
em um contexto de altos níveis de exclusão social causados por uma internacionalização
da cultura e da economia caracterizada pelo uso de tecnologias complexas
e em qualificações educacionais cada vez mais elevadas.
Esta discussão traz à tona uma questão que permaneceu latente até aqui,
que é a da dependência do Brasil em relação aos centros do capitalismo internacional
contemporâneo. As chamadas "teorias da dependência", que existem de muitas
formas, partem de um fato importante e conhecido - que países como o Brasil
se constituiram, desde suas origens, como dependências de outros centros
- para chegar muitas vezes a duas conclusões pelo menos paradoxais. A primeira
é a de que o peso da dependência é tal que nada pode ser entendido em um
país como o nosso a não ser a partir de sua inserção ao contexto externo.
Em sua forma mais extremada, a teoria da dependência assume feição claramente
paranóica: países como o Brasil são uma tragédia só, e tudo isto por culpa
única e exclusiva "deles". A realidade, no entanto, é que a dependência
não exclui o fato de existir uma realidade própria, específica e interna
ao país, que não se esgota nem se exaure nas relações com os centros capitalistas
mais desenvolvidos. A outra conclusão paradoxal, que decorre da primeira,
é a de que todos os problemas poderiam ser resolvidos pela superação das
relações de dependência. Mas se, de fato, a dependência é tão constitutiva,
fica difícil imaginar de onde o país encontrará forças e recursos para superá-la.
Se, ao contrário, entendermos que a realidade de um país com a complexidade
do Brasil não se esgota nas suas relações externas, isto nos dá condições
de pensar nas coisas que podemos fazer com nossos recursos, ter uma visão
menos persecutória do mundo que nos cerca e, a partir daí, ter elementos
para buscar reverter as situações de dependência que nos pareçam inadequadas.
A conclusão geral de tudo o que foi dito até aqui é que o autoritarismo
brasileiro, cujas bases se erguem a partir da própria formação inicial do
Brasil como colônia portuguesa, e que evolui a se transforma ao longo de
nossa história, não constitui um traço congênito e insuperável de nossa
nacionalidade, mas é certamente um condicionante poderoso em relação a nosso
presente e futuro como país. A complexidade das questões envolvidas nesta
discussão deve ser suficiente para deixar claro que, na realidade, o termo
"autoritarismo" é pouco mais do que uma expressão de conveniência que utilizamos
para nos referir a uma história cheia de contradições e contra-exemplos,
onde, no entanto, um certo padrão parece predominar: o de um Estado hipertrofiado,
burocratizado e ineficiente, ligado simbioticamente a uma sociedade debilitada,
dependente, e alienada. E' da superação deste padrão histórico e suas conseqüências
que depende nosso futuro. E como o passado é contraditório e o futuro aberto
e pronto para ser construído, é possível ser otimista.
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