
O Bom Capitalismo
Simon Schwartzman
Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de
novembro de 1980, p. 13
O padrão de vida atingido pelos países da Europa Ocidental
e América do Norte parece justificar a idéia de que o capitalismo não tem somente
a cara selvagem e exploradora dos tempos heróicos da revolução industrial, ou
seus eventuais arremedos nos países subdesenvolvidos, mas pode vir a ter, efetivamente,
uma cara realmente humana. Na sua forma mais simples, esta idéia consiste em afirmar
que bastaria dar ao capitalismo total liberdade de ação, que estes resultados
seriam obtidos. No entanto, as coisas são na realidade muito mais complexas.
Para entender isto, é necessário lembrar que o capitalismo ocidental não
chegou aonde está pela liberdade de ação e não intervenção do Estado e da
Política, tal como quer-nos fazer crer a ideologia do liberalismo econômico.
Ao contrário, foram dois tipos de intervenção muito importantes que permitiram
este desenvolvimento. Em primeiro lugar, a criação de um "mercado livre"
foi feita a partir de um pacto colonial que estabeleceu a paz na Europa
e dividiu o mundo entre os principais países capitalistas. A internacionalização
do capitalismo foi feita por meio da criação deliberada de uma rede bancária
e financeira internacional, garantindo a conversibilidade das moedas, a
estabilidade do fluxo de mercadorias e as regras do jogo capitalistas.
Este processo político e militar de consolidação do capitalismo ocorreu
simultaneamente a um outro, no interior dos países capitalistas, que foi
o da progressiva organização e mobilização do operariado. Apesar da oposição
dos capitalistas, que tratavam de impedir a associação dos operários em
nome da liberdade de escolha dos indivíduos, o fato foi que a redução das
horas de trabalho, a restrição ao trabalho do menor, a melhoria de salários
e uma série de outras conquistas foram feitas na arena política, e não na
arena do jogo econômico enquanto tal. Pressionados no interior de seus próprios
países, e com o resto do mundo conquistado o e controlado manu militari,
o capitalismo europeu pode transferir para outros países parte de seus custos.
(É um equivoco, no entanto, pensar que a melhoria de padrão de vida dos
países capitalistas avançados se explica simplesmente pela exploração dos
demais. Se a Inglaterra, de fato, dependeu sempre em grande parte do comércio
internacional, isto não é verdade, no entanto, para os Estados Unidos.)
Se este processo político ocorreu nos países capitalistas centrais, ele
foi ainda mais intenso, ainda que distinto, nos países que chegaram mais
tarde ao mundo capitalista. Nestes, o desenvolvimento capitalista não foi
parte de uma revolução social libertadora e modernizadora, como ocorreu
na Europa, mas se deu em geral em associação com sistemas políticos e econômicos
mais tradicionais, que trataram de se modernizar ou pelo menos se adaptar
aos novos tempos sem perder suas posições. Em países europeus de desenvolvimento
capitalista mais recente, como na Alemanha e Rússia, o desenvolvimento industrial
se deu em intima associação e comando do Estado. Na Alemanha, o capitalismo
se desenvolve conjuntamente com a própria formação do Estado alemão sob
Bismarck, com a participação ativa da nobreza rural representada pelos junkers.
Na Rússia, é o Czar que promove a atividade capitalista industrial, concedendo
e retirando privilégios, criando monopólios e franquias, e assegurando o
trabalho operário em regime de semi-servidão. No Japão, a introdução do
capitalismo é concomitante à restauração do poder central imperial, e ao
início da presença internacional do Japão como potência imperialista de
primeira grandeza.
Este processo de introdução tardia do capitalismo tem sido caracterizado
pelos historiadores como um processo de "modernização conservadora",
e ele também se aplica aos países que chegaram mais tarde ainda ao capitalismo
moderno, ocupando a posição de' "subdesenvolvidos" e nunca chegando
a disputar uma posição de liderança no mundo contemporâneo. Ainda que a
custo de simplificar uma questão complexa, é possível dizer que a "modernização
conservadora" tem duas características principais. A primeira é que
ela se da à sombra e sob o patrocínio de um Estado de base mercantilista,
militar ou oligárquico rural, que incorpora os procedimentos mais técnicos
do capitalismo industrial sem alterar sua base de poder ou alterando-a só
muito lentamente. Segundo, ela impede que a revolução capitalista chegue
ao campo. A modernização que eventualmente se dá na agricultura não implica
a criação de uma burguesia de base rural, nem de um campesinato organizado
em moldes do operariado urbano (a concomitância destas duas coisas faz com
que muitos identifiquem o Estado nestes países com a própria aristocracia
rural, o que não é sempre o caso).
O que ocorre nestes países de capitalismo tardio, conseqüentemente, é que
eles não podem repetir as mesmas condições políticas que garantiram aos
países mais avançados seus atuais padrões de desenvolvimento. O mercado
internacional já está previamente definido, segundo a conveniência dos países
mais avançados. Internamente, a sobrevivência de estruturas políticas e
sociais não-capitalistas impede que a organização operária atinja a força
de suas congêneres européias. Fica, assim, uma situação de equilíbrio: um
capitalismo subdesenvolvido que participa como parceiro modesto do capitalismo
internacional e uma força de trabalho barata que garante, de alguma forma,
algumas vantagens comparadas para este capitalismo. Eventualmente, como
parece ter ocorrido no caso da Argentina, este equilíbrio é rompido por
uma organização extraordinária do movimento operário, apoiada em um regime
político populista e que teve condições, neste caso, de se aproveitar dos
benefícios trazidos por uma economia de exportação agrícola extremamente
bem-sucedida. A longo prazo porém, faltaram condições para que o capitalismo
argentino se adaptasse ao padrão de vida conquistado pelos seus trabalhadores.
A conseqüência é que, hoje, o revigoramento do capitalismo argentino está
sendo feito às custas de sua cara humana e do nível de vida de seus trabalhadores.
A moral de toda esta história é a seguinte: as grandes promessas de criação
de uma sociedade mais livre, mais democrática e mais rica, que acompanharam
o desenvolvimento do capitalismo moderno, se explicam basicamente pelo fato
de que o capitalismo surgiu nos países centrais dentro de um profundo processo
de transformação social e mobilização de novos grupos, processo este que
teve continuidade e extravasou os limites que os próprios capitalistas trataram
de estabelecer. Ainda que a revolução que Marx previra para aos países capitalistas
avançados não tenha ocorrido, o fato é que todos eles foram profundamente
transformados por este processo. Não há nada, porém, na atividade empresarial
capitalista, enquanto tal, que garanta que este processo social e político
se repita quando o capitalismo se implanta em outras sociedades, em diversas
combinações com suas organizações políticas, com seu sistema de estratificação
e sua estrutura de propriedade fundiária.
Em si mesmo, o capitalismo é cego e tende ao crescimento descontrolado,
pela exploração do trabalho, pelo uso progressivo da técnica e pela contínua
recriação da necessidade de seus produtos. Seu extraordinário sucesso em
levar ao máximo a capacidade de racionalização da produção e a demonstração
que permitiu da eficácia de mecanismos de auto-regulação da atividade humana,
em determinadas circunstâncias, ao lado das dificuldades cada vez mais evidentes
dos esforços de planificação econômica centralizada, fazem com que não nos
possamos desfazer dele com muita facilidade. Mas, para que ele tenha cara
humana, é necessário, antes de mais nada, colocá-lo clara e explicitamente
a serviço não de si mesmo, mas dos homens.
<