Gustavo Capanema e a educação brasileira: uma interpretação

Simon Schwartzman

Publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 66 (153), 165-72, maio/ago 1985


Resumo
Gustavo Capanema, Ministro da Educação de 1937 a 1945, foi responsável por uma série de projetos importantes de reorganização do ensino no país, assim como pela organização do Ministério da Educação em moldes semelhantes ao que ainda é hoje. O apoio dado por Capanema a grupos intelectuais e, mais especialmente, a arquitetos e artistas plásticos de orientação moderna, contribuiu para cercar sua gestão de uma imagem de modernização na esfera educacional que ainda não havia sido examinada em mais detalhe. Este artigo, baseado em evidências constantes de livro recentemente publicado, mostra como a característica principal de sua gestão, na área educacional, foi sua vinculação com os setores mais conservadores da Igreja Católica no Brasil. Em conseqüência desta vinculação a Igreja cessou, durante o Estado Novo, seu ataque tradicional à interferência do Estado nas atividades educacionais, e o Estado, por sua vez, tratou de adotar os preceitos doutrinários e educacionais da Igreja no ensino publico que ora se implantava. O artigo examina esta aliança e suas conseqüências.




A denominação “Edifício Gustavo Capanema” dada à antiga sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, expressa bem a identidade que se estabeleceu, ao longo dos anos, entre o antigo Ministério da Educação e Saúde do Estado Novo e o modernismo que a arquitetura daquele prédio pretende simbolizar. Esta associação, que corresponde a uma faceta significativa da longa passagem de Capanema pela Ministério, tem no entanto dificultado uma visão mais clara dos aspectos mais importantes de sua atuação na área educacional. A documentação reunida pana a elaboração de livro sobre a época, recentemente publicado (Schwartzman, Bomeny, e Costa 1984), permite que se tente uma interpretação preliminar deste período, que é aqui sugerida.

A faceta talvez mais significativa da gestão de Capanema no Ministério da Educação, hoje freqüentemente esquecida, foi sua intima associação com os setores mais militantes e conservadores da Igreja Católica naqueles anos, representada por Alceu Amoroso Lima, Padre Leonel Franca e, como figura central, o Cardeal Leme, do Rio de Janeiro. Não se tratava de mera afinidade filosófica ou ideológica. Em 1934, quando Capanema chega ao Ministério da Educação, firmou-se o pacto político entre Getúlio Vargas, de origem castilhista e positivista, e a Igreja. Segundo este acordo, a Igreja daria ao governo apoio político e receberia em troca a aprovação das chamadas “emendas religiosas” na Constituinte de 1934, que incluía, entre outras coisas, a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas. Mais do que isto, o pacto levou a que o Ministério da Educação fosse entregue a pessoa de confiança da Igreja. que trabalharia em consulta constante com Alceu Amoroso Lima.

A primeira conseqüência deste acordo político foi que a Igreja passou a aceitar uma presença muito mais ativa do Estado na educação do que normalmente o faria, O Brasil respirava, naqueles anos, o debate da educação pública vs. educação privada que, oriundo da Europa, marcava a oposição entre os defensores do ensino leigo, universal e público e a Igreja, defensora do ensino privado e confessional. Na Europa, e na França mais particularmente, este debate se dava no contexto de uma separação estrita entre a Igreja e o Estado, que também prevaleceu no Brasil entre a Proclamação da República e o pacto de 1934. Com este pacto, a Igreja cessou seus ataques à interferência do Estado na Educação, passando a trabalhar para que esta educação tivesse a forma e os conteúdos que ela considerava adequados. Ela continuaria, sem dúvida a desenvolver sua rede de escolas religiosas de nível secundário e, no final da década de 30, trataria de dar forma a seu projeto universitário independente. Mas a presença do Estado na Educação deixa de ser, entre nós, o anátema que era na Europa.  

Esta acomodação entre a Igreja e o Estado fez com que perdesse muito de sua nitidez o confronto entre a Igreja e os defensores do ensino público e leigo, que ficaram conhecidos como os “pioneiros da educação nova”. Ao forte conflito ideológico que contrapunha, por exemplo, Anísio Teixeira a Alceu Amoroso Lima, não correspondia oposição total, já que ambos defendiam, ainda que por caminhos distintos, um papel crescente do Estado no estimulo e controle da educação nacional. As divergências se colocavam freqüentemente em termos filosóficos e pedagógicos, mas, ainda aí, faltava a ambos os lados concepções pedagógicas mais elaboradas que caracterizassem suas respectivas posições. Isto explica porque outras pessoas também identificadas com o escolanovismo, mas menos marcadas ideologicamente, passaram a se definir essencialmente como “técnicos em educação” e, desta forma, conseguiram ocupar lugares importantes do Ministério. O exemplo mais marcante talvez tenha sido o de Lourenço Filho, responsável pela organização do INEP.   

O papel crescente do governo federal na educação teve também como conseqüência o arrefecimento dos esforços educacionais dos estados, que haviam começado a se esboçar com maior vigor em várias regiões do pais ao longo da década de 20 e inicio dos  anos 30. Este não foi, evidentemente, um efeito exclusivo da política do Ministério da  Educação, mas parte de um processo muito mais amplo de concentração do poder no  Rio de Janeiro e esvaziamento dos estados. Como o ensino primário continuou sendo  atribuição dos governos estaduais e o Ministério se preocupava basicamente com o nível secundário e superior. o ensino primário ficou cada vez mais relegado a segundo  plano, e o pais jamais conseguiu organizar um sistema nacional realmente abrangente de  educação básica, apesar dos avanços havidos principalmente em São Paulo e no Distrito Federal. A principal atuação do Estado Novo na área do ensino primário foi, na realidade, repressiva, ao tratar de impedir que os filhos de imigrantes japoneses. italianos e  alemães fossem alfabetizados em suas línguas maternas. E só nos últimos anos do governo Vargas, com o processo de democratização do pais já iniciado, que as iniciativas  educacionais a nível estadual começam a ser retornadas.  

Um dos principais resultados da colaboração entre a Igreja e o Ministério da Educação foi a grande ênfase dada ao ensino humanista na escola secundária. em detrimento da formação científica e técnica. O latim ocupava lugar central, e até o grego chegou a   ser cogitado como matéria regular, enquanto que a atemmática. a biologia e a física  ficavam em segundo plano. Esta preferência pelas humanidades correspondia a uma concepção segundo a qual seriam estas as disciplinas verdadeiramente formativas, restando às matérias de cunho técnico e empírico importância meramente instrumental. Era uma concepção que coincidia, infelizmente, com a própria realidade do país, com muito mais condições de formar professores de línguas, história, geografia e filosofia tomista do que de física, química e biologia, pela própria inexistência de uma universidade moderna. Assim, a opção governamental reforçou as deficiências existentes.

A ênfase no ensino clássico e humanista para o nível secundário se explica pela idéia, então existente, de que caberia à escola secundária a formação das elites condutoras do país, enquanto que as grandes massas seriam atendidas pelo ensino primário ou por escolas profissionais menos prestigiadas - comercial, agrícola, industrial, etc. O ensino superior permanecia muito restrito e seu acesso, por muito tempo, esteve limitado aos alunos que passassem pelas escolas secundárias. O ensino secundário adquiriu, desta forma, um prestígio especial entre as famílias que podiam proporcionar educação a seus filhos, que só eram destinados a outras modalidades de ensino médio se não tivessem alternativa Aqui, novamente, houve coincidência e reforço mútuo entre a prioridade dada pelo Ministério da Educação ao ensino secundário e a tendência da própria sociedade em desvalorizar a educação profissional e técnica, como destinada a cidadãos de segunda classe. Desta forma, o ensino médio profissional nunca chegou a ter os recursos, a atenção e o envolvimento de pessoas motivadas e qualificadas para dar-lhe um mínimo de qualidade, apesar das honrosas exceções de sempre.

A Igreja também colaborou na tentativa de dar à sociedade brasileira uma organização corporativa, que teve reflexos importantes na área educacional. À menção do termo “corporativismo” surge logo a imagem da organização simétrica dos sindicatos patronais e de empregados sob supervisão ministerial, implantada pelo Estado Novo e praticamente inalterada até os dias de hoje. Na área educacional, o ideal corporativo levou à tentativa de estabelecer uma estrita correspondência entre o sistema de ensino e o mercado de trabalho, segundo a qual as profissões seriam definidas por lei, organizadas por guildas ou associações profissionais, a cada profissão correspondendo um curso e vice-versa. Isto fez com que a educação geral ficasse limitada à escola secundária, enquanto que as universidades se organizavam para a formação de profissionais liberais que deveriam passar por currículos mínimos idênticos e fixados por lei, que dariam direito a diplomas para o exercício profissional, Esta vinculação forçada entre os cursos superiores e o mercado de trabalho fez com que, na prática, as universidades brasileiras jamais chegassem a ter real autonomia didática, situação que até hoje perdura.  

Esta maneira de entender a relação entre educação e trabalho supõe, naturalmente, que o mercado de trabalho seja organizado em profissões perfeitamente delimitadas e fixas e que seja possível proporcionar, através do ensino formal, as qualificações requeridas pelas diversas profissões, sejam elas de nível médio, sejam elas ditas “liberais”, de nível superior. Ambas suposições são altamente duvidosas, pois hoje é sabido que a educação formal funciona, em grande parte, como mecanismo de controle de acesso e credenciamento para o exercício privilegiado de certas profissões que são monopolizadas pelos detentores destas credenciais. A uniformização dos currículos, a desvalorização da educação geral e científica nas universidades, o formalismo e o conseqüente esvaziamento do conteúdo de muito de nosso sistema educacional podem ser explicados por esta situação, Seria, no entanto, injusto dizer que o credencialismo e seus problemas resultam somente do corporativismo de inspiração católica conservadora. Aqui, como em outros casos, ela simplesmente reforçou uma tendência preexistente em nosso sistema educacional, que nem é exclusiva da experiência brasileira.

A Igreja contribuiu, finalmente, para a seleção ideológica de funcionários ministeriais e professores, particularmente os da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Além da profusão de vetos e indicações de nomes que aparecem na correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Capanema (e de muitos mais, seguramente, que não aparecem), houve uma influência direta da Igreja no fechamento da Universidade do Distrito Federal, criada por Anísio Teixeira e entregue mais tarde, por um breve período, à direção de Amoroso Lima. A Faculdade Nacional de Filosofia, organizada a seguir, também estava destinada a Amoroso Lima, que acaba, no entanto, não assumindo o posto, deixando-o para San Tiago Dantas, figura proeminente do movimento integralista dos anos 30. A seleção ideológica dos professores da Faculdade Nacional de Filosofia se fez principalmente para as disciplinas de conteúdo social e filosófico, mas esteve presente inclusive na escolha dos professores franceses convidados para o Rio, nos moldes da experiência paulista de 1934, A Universidade de São Paulo, no entanto, não esteve sujeita a um controle ideológico deste tipo, sendo talvez esta uma das razões pela qual tenha conseguido. na média, um corpo de professores de melhor qualidade e uma presença muito mais significativa na vida cultural do país.

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Dentro do espírito do Estado Novo, o Ministério Capanema tratou de centralizar, tanto quando possível, a educação nacional (é de justiça assinalar que o centralismo não se originou com Capanema, estando também presente na legislação promulgada por Francisco Campos, em 1931, com raízes muito anteriores). Esta centralização foi, sobretudo, normativa. O Estado se sentia na necessidade de fixar, em lei, todos os detalhes da atividade educacional, dos conteúdos dos currículos aos horários de aula, passando pelas taxas cobradas aos alunos. O ideal, uma vez expresso, era repetir no Brasil o orgulho que diziam ter sido de Napoleão, ou seja, o de poder, em seu gabinete, saber a cada momento o que estava ensinando cada professor em qualquer parte do território nacional. A idéia de que as universidades, pelo menos, pudessem ter autonomia, era aceita em princípio desde a legislação promulgada em 1931 por Francisco Campos, mas desde então também cerceada pela noção, hoje tão conhecida, de que elas “ainda não estavam preparadas” para isto. O conteúdo do ensino deveria ser fixado por lei e sua manifestação concreta fixada em instituções-modelo - o Colégio Pedro II e a Universidade do Brasil - que todos deveriam copiar. As instituições de ensino não poderiam crescer aos poucos e ir definindo seus objetivos ao longo do tempo. Mais inaceitável ainda seria a idéia de que elas pudessem evoluir segundo formatos, modelos e conteúdos distintos, Não havia lugar para incrementalismo e muito menos para pluralismo. 

Os corolários inevitáveis da centralização foram a burocratização, o controle prévio e a ineficiência. O Conselho Nacional de Educação, antecessor do atual Conselho Federal, assumiu uma série de funções não só normativas, mas também processuais e decisórias, que até hoje marcam seu funcionamento, e o próprio Ministério constituiu um corpo de inspetores para supervisionar a estrita observância de suas normas e diretrizes. O controle prévio supõe que os estabelecimentos de ensino devam demonstrar, por antecipação, que estão aptos a cumprir com as exigências e normas do governo federal, que não eram poucas. Idéia aparentemente inatacável, mas que na prática impedia a iniciativa e a criatividade, submetendo todo o sistema educacional a rituais formalistas, cujo sentido freqüentemente se perdia no longo caminho entre a intenção do legislador e sua interpretação quotidiana. A ineficiência aumentava porque toda esta arquitetura que se tentou monta para a educação brasileira supunha uma definição prévia, clama e minuciosa de objetivos, prioridades e procedimentos a serem seguidos em todo o país. O Ministério da Educação despendia muito tempo e energia no processamento de centenas de propostas detalhadas sobre todos os assuntos, secretadas por um grande número de comissões, das quais deveria surgir a legislação educacional do país. E, ao mesmo tempo, tinha que disputar constantemente sua área de poder e influência com outros setores do governo. A conseqüência era que freqüentemente as decisões eram paralisadas, à espera de definições que não vinham, e estas paralisações, pela falta de autonomia, afetavam a todos.

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A luta por espaço, desenvolvida por Capanema ao longo de seus onze anos de Ministério. deve ser entendida no contexto das vicissitudes do pacto entre a Igreja e o Estado naqueles anos. Um dos formuladores mais ativos deste pacto havia sido Francisco Campos, primeiro Ministro da Educação, que ambicionava transformar a Igreja em grande instrumento de mobilização popular para a sustentação de um regime autoritário. Campos termina marginalizado no processo de conciliação política que resultou na Constituinte de 1934 e tem o desprazer de ver seu antigo discípulo, Capanema, ocupando o posto e o lugar que havia preparado para si. Nos anos seguintes, Campos se articula com os setores mais militantes da direita católica e do integralismo e volta a ter atuação importante nos anos que se seguem à insurreição comunista de 1935, quando participa da conspiração que leva ao golpe de estado de 1937. O Estado Novo, cuja Carta Constitucional redige e do qual seria Ministro da Justiça, deveria ter em Plínio Salgado seu Ministro da Educação, e o próprio Campos no comando de uma ambiciosa Organização Nacional da Juventude, de cunho paramilitar, Com estes elementos, o projeto de mobilização fascista planejado pana o inicio da década chegaria, finalmente, à fruição.

O governo Vargas, no entanto, uma vez consolidado, começa a reduzir o poder do integralismo, chegando finalmente à confrontação direta com seus antigos aliados. Plínio Salgado vai para o exílio, Capanema permanece no Ministério e a Organização Nacional da Juventude, vetada por Eurico Dutra, termina como uma inofensiva Juventude Brasileira, no âmbito do Ministério da Educação. O pacto com a Igreja também perde importância para o regime. Campos, membro do Ministério, hostiliza quanto pode o Ministério da Educação, mas seu poder também é reduzido. E assim que lhe escapa, finalmente, o Departamento de Imprensa e Propaganda, cuja semente havia lançado no Ministério da Educação no inicio da década e que deveria fazer uso dos novos elementos de comunicação de massas, como o rádio e o cinema, que então se firmavam e dos quais tanto se esperava. Vinculado diretamente a Getúlio Vargas e dirigido por pessoa de sua confiança, Lourival Fontes, o DIP se toma muito mais do que um simples instrumento de censura. É ele que estabelece vínculos diretos com intelectuais, publica revistas de cultura e disputa, com o Ministério da Educação, o controle dos meios de comunicação. O Ministério da Educação consegue preservar algumas faixas de atuação, como por exemplo a do rádio e cinema educativos, mas não há dúvida de que é o DIP que se transforma no grande celeiro de idéias e ideologias para o novo regime.

O enfraquecimento do Ministério tem outros reflexos. O Ministro não tem autonomia financeira sequer para convidar um professor do estrangeiro e Vargas nem sempre lhe concede os recursos que solicita. O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio disputa com Capanema o controle do ensino técnico-industrial e termina prevalecendo com a criação de um sistema próprio que se desenvolve independentemente (e com maior competência) do que o iniciado pelo Ministério da Educação. O Exército faz também freqüentes incursões na área educacional, marcando sua presença na instituição do ensino pré-militar, na educação moral e cívica e na educação física. Projetos ambiciosos e ideologicamente carregados. como o do Estatuto da Família, são barrados pela assessoria presidencial e adquirem muitas vezes conotação oposta à desejada. O Ministro perde até mesmo o controle das nomeações dos professores da Universidade, exatamente um dos fatores que leva Alceu Amoroso Lima a desistir da direção da Faculdade Nacional de Filosofia.  

Capanema faz o que pode para manter seu espaço. Procura se aproximar ao máximo de Vargas, pela demonstração continua de fidelidade e pela escrita de textos laudatórios à figura do Chefe, no estilo e linguajar daqueles anos. Projeta um livro ambicioso que se transformaria em grande monumento às realizações do Estado  Novo (Schwartzman 1982) . Busca se cercar da melhor assessoria possível, dentro e fora do país, para reforçar sua imagem de homem de cultura. Trata de manter seus vínculos pessoais com a Igreja. No entanto, as diferenças de estilo, de temperamento e de valores entre o católico mineiro e o castilhista gaúcho eram demasiadas e ele nunca chega a desfrutar da simpatia do Presidente. Na medida em que passam os anos e os projetos de Capanema amadurecem, também cresce, aparentemente, seu isolamento.

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A expressão “modernização conservadora”, muitas vezes utilizada para caracterizar o regime Vargas, aplica-se com toda a propriedade a seu Ministro da Educação. A modernização se manifestava em seu desejo de criar um sistema educacional forte e abrangente e na preocupação constante com a atividade cultural e artística. O lado conservador se manifestava de muitas formas distintas: pela concentração do poder, que não permitia a organização de instituições educacionais e culturais livres e autônomas fora da tutela ministerial; pela concepção basicamente estetizante. quando não utilitária, da cultura e das artes. A musica, a poesia, a pintura. o patrimônio cultural do pais, tudo isto era, na medida do possível, apoiado e estimulado, mas basicamente como cultura ornamental, ou, alternativamente, como arte monumental capaz de mobilizar os grandes sentimentos cívicos. Este monumentalismo está presente nos grandes projetos arquitetônicos, no muralismo de Portinari, assim como nos grandes corais cívicos de Villa-Lobos. Pecadilhos ideológicos eram permitidos e tolerados entre poetas e artistas plásticos, desde que não se manifestassem com muita intensidade em suas obras. O Ministro atua, assim, como mecenas das artes, e é retribuído com gratidão, Na área do ensino, no entanto, o controle era mais estrito.

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Com o fim do Estado Novo o lado modernista e “culto” da atuação de Capanema vai se tornando cada vez mais destacado para os observadores, enquanto que o lado conservador vai sendo encoberto pelas brumas que passaram a envolver todo o autoritarismo estadonovista, de tão incômoda lembrança. O próprio Capanema adquire uma visão política mais liberal, e não há razões para acreditar que não tenha sido uma autêntica mudança de perspectivas. No Congresso, Capanema desempenha papel importante na sustentação política dos governos pessedistas, chegando a líder do governo Getúlio Vargas na difícil conjuntura de 1954.

Desfeito o pacto entre a Igreja e o Estado, a velha querela entre o ensino público e o privado é retomada pela Igreja e pelo lobby dos colégios privados nos debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases, que se arrastam ao longo dos anos. Como sabemos, a lei termina sendo finalmente aprovada, já no inicio dos anos 60, com um texto que atendia em boa parte aos desejos da Igreja. ou seja, afirmando a prioridade da família e o papel secundário do Estado na educação (ainda que a educação pública permanecesse como beneficiária principal das verbas do Estado). Já era, no entanto, tarde demais. A Igreja não conseguiria desfazer o sistema centralizado e estatal que ajudara a montar, assim como os governos não conseguiriam formular um projeto educacional de alcance realmente nacional, livre dos supostos e limitações construídos nos anos anteriores. Nos anos 50 e 60, a defesa da escola pública, universal e gratuita, retomada por muitos dos remanescentes do escolanovismo, surgiu basicamente como uma defesa do ensino público ante os ataques da Igreja, ou seja, exatamente como a defesa das instituições que a Igreja havia ajudado a criar no período anterior. 

Talvez seja por isto que a campanha da escola pública daqueles anos não tenha tido maior impacto, apesar da mobilização intensa de alguns setores intelectuais mais ligados às instituições escolares. Talvez não fosse totalmente equivocado sugerir que o debate educacional brasileiro. nos anos posteriores a 1945, regrediu ao período anterior a 1934. Ocupando no Congresso posição privilegiada. como representante dos governos pedessistas para todas as questões educacionais, Capanema contribuiu, seguramente, para que o sistema educacional ambíguo e contraditório que criara fosse preservado e para que o debate educacional não prosperasse.

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É provável que esta interpretação não seja correta em todos seus detalhes e que, em sua brevidade, não faça plena justiça a contribuições importantes feitas naqueles anos por Capanema e muitos de seus auxiliares de reconhecida competência e honestidade pessoal. No entanto, a história não pode ser feita somente pelo relato de ações e méritos isolados, que perdem sentido quando fora de seu contexto mais amplo, que é o que tratamos de retratar aqui. A historiografia brasileira sobre a década de 30 se desenvolveu muito nos últimos anos e isto já proporciona uma visão muito mais rica e complexa daquele período do que a memória nacional, naturalmente seletiva, até agora admitia. Na medida em que esta historiografia avance, interpretações mais aprofundadas irão surgindo, tornando-nos, assim, mais capazes de construir nosso futuro.



Referências:

Schwartzman, Simon, ed. 1982. Estado Novo, um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasília: Editora Universidade de Brasília.

Schwartzman, Simon, Helena Maria Bousquet Bomeny, e Vanda Maria Ribeiro Costa. 1984. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro, São Paulo: Paz e Terra; Editora da Universidade de São Paulo. <