Gustavo Capanema e a Educação Brasileira

Simon Schwartzman

Texto preparado para o Seminário "Gustavo Capanema: Política, Educação e Cultura", organizado pela Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, com o apoio do Ministério da Educação e do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, e 8 de agosto de 2000.

O ano 2000 foi antecipado de grandes expectativas sobre comemorações: além do novo milênio que se aproximava, o Brasil também faria quinhentos anos, e, dentro do mesmo clima, Minas Gerais comemoraria o centenário de Gustavo Capanema. É possivel que a festa do milênio tenha correspondido às expectativas, com a profusão de fogos e as multidões vestidas de branco nas praias do Rio de Janeiro. As comemorações dos quinhentos anos, no entanto, foram no mínimo um anti-clímax, e isto nos leva a refletir um pouco melhor sobre o sentido que pode ter esta outra comemoração da qual participamos hoje, relacionada com a política, a educação, a cultura, e a personalidade de Gustavo Capanema, em Minas Gerais.

Existem pelo menos duas maneiras de fazermos uma comemoração. A primeira, mais tradicional, é parecida com as homenagens que são prestadas nos velórios e nos obituários. Nestas ocasiões, enaltecemos as qualidades do falecido, ignorando seus defeitos ou debilidades, e tratamos de tirar, de sua biografia e de sua lembrança, aquilo que mais valorize sua memória para os que com ele conviveram, e que sirva de exemplo e modelo para as gerações futuras. Foi o que se tentou fazer na comemoração dos quinhentos anos, e não poderia dar certo: comemorar a descoberta, as caravelas, as raças da nacionalidade, porquê me ufano do Brasil. Não poderia dar certo, porque o Brasil continua vivo, com suas contradições, qualidades e defeitos, e um presente e futuro que está marcado não só pelas qualidades, mas também pelos problemas e pela maneira peculiar que foi sua história, que não precisa ser enaltecida, e sim entendida e interpretada.

Esta é outra forma de comemoração, que creio ser adequada para este centenário de Capanema. Do ponto de vista pessoal, de seus familiares e descendentes, cabe sem dúvida uma homenagem póstuma para alguém que já não está entre nós, e cuja lembrança merece ser enaltecida. Os temas da cultura, da educação e da política, no entanto, estão bem vivos, não são temas do passado, mas do presente e do futuro. Precisamos olhar o passado para entender como chegamos até aqui, que possibilidades temos pela frente, e é nesta perspectiva que a comemoração de um centenário poder fazer sentido.

Aonde estamos hoje, em temos de educação? Só agora, na virada do milênio, mais de meio século após a saída de Capanema do Ministério da Educação, é que o país pode dizer que tem lugar em escolas para todas as crianças, mas ainda não pode dizer que escolas são estas, e o que estas crianças aprendem. A educação básica foi ampliada de quatro para oito anos, mas temos sérias dúvidas se, nestes oito anos, as crianças aprendem de fato o dobro do que deviam aprender no antigo primário. A educação secundária se expande rapidamente, mas de forma preocupante. Quase todos os cursos são noturnos, metade dos alunos são adultos, a maioria trabalha enquanto estuda, e ninguém sabe se o que se ensina nas escolas tem algum vínculo significativo com a vida real. Muitos destes alunos abandonam o curso pelo meio; uns poucos se formam, e entram em cursos superiores de algum tipo. Não existe, praticamente, ensino profissional, nem em nível médio, nem em nível pós-secundário, em quantidade e qualidade suficientes para a grande maioria de estudantes que precisariam dele. O ensino superior continua restrito a uma parcela pequena da população, menos de 10% dos jovens. Uma pequena parte deste ensino é pública, de boa qualidade, e ainda por cima gratuito, mas de difícil acesso a quem não teve uma educação secundária de elite. A maior parte é privada, de qualidade duvidosa, e custa caro. Algumas universidades e faculdades públicas dão cursos de pós-graduação bastante razoáveis, e a pesquisa científica de alguns centros tem nível e qualidade internacionais.

É possível descrever tudo isto em uma simples frase: o Brasil tem um sistema de educação de elite financiado com recursos públicos pelo Estado. No passado, era fácil ver isto, quando o antigo Ginásio Mineiro, ou Colégio Estadual de Minas Gerais, ou o Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, ofereciam educação de qualidade para os filhos das elites, as faculdades de direito, engenharia e medicina lhes davam os títulos e bacharel e de doutor, e a grande maioria da população permanecia analfabeta. Hoje a cobertura é maior, o analfabetismo está desaparecendo, e, mesmo nas universidades públicas uma parte significativa dos estudantes vêm de famílias mais pobres, com pouca ou nenhuma tradição de cultura e educação. O elitismo se mantém, no entanto, em dois aspectos fundamentais. Primeiro, na persistência um modelo educacional que parte de normas e conteúdos estabelecidos centralmente, que só são de fato acessíveis para uma pequena parcela da população, e que depois são reproduzidos, de forma cada vez mais imperfeita e vazia de conteúdos, para os demais. E, segundo, por um sistema de subsídios que beneficia as classes médias e altas, sobretudo no ensino superior, em detrimento das populações menos favorecidas.

Como chegamos até aqui? Que papel teve Gustavo Capanema na montagem deste sistema educacional?

A tradição brasileira, desde o Império, sempre foi a de que o governo central se preocupava com a educação superior e a ciência, deixando para a Igreja, para as províncias, e principalmente para ninguém, a educação da população. Ao final do século XIX, quando muitos países da Europa haviam conseguido universalizar a educação básica, o Brasil criava novas faculdades de engenharia e medicina, o Instituto Maninhos adquiria prestígio internacional, mas a população continuava analfabeta.

Quando Capanema assume o Ministério da Educação em 1934 o Brasil continuava um país de analfabetos, mas o tema da educação pública já começava a preocupar. O Ministério da Educação havia sido criado em 1931, e em março de 1932 foi divulgado o "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", redigido por Fernando de Azevedo, que fazia referência ao "movimento de reconstrução educacional, com que, reagindo contra o empirismo dominante, pretendeu um grupo de educadores, nestes últimos doze anos, transferir do terreno administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares." O Manifesto argumentava que o Brasil estava avançando economicamente, mas que a educação estava ficando para trás. Defendia uma "educação nova que, certamente pragmática, se propõe ao fim de servir não aos interesses de classes, mas aos interesses do indivíduo, e que se funda sobre o princípio da vinculação da escola com o meio social, tem o seu ideal condicionado pela vida social atual, mas profundamente humano, de solidariedade, de serviço social e cooperação." E afirmava que "a laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co-educação são outros tantos princípios em que assenta a escola unificada e que decorrem tanto da subordinação à finalidade biológica da educação de todos os fins particulares e parciais (de classes, grupos ou crenças), como do reconhecimento do direito biológico que cada ser humano tem à educação." O Manifesto defendia a criação de um fundo público para a educação que financiasse as escolas em todo o país, de forma descentralizada, mas atendendo a um núcleo comum de conhecimentos para a educação até os 15 anos, com forte diferenciação profissional a partir daí, e uma universidade onde o ensino e a pesquisa ocorressem de forma inseparável.

Não há dúvida que é o Manifesto dos Pioneiros, e a atuação de seus signatários, que vão marcar a evolução da educação brasileira nas décadas seguintes. É o Manifesto também que define o conjunto de idéias que serão utilizadas ou rechaçadas por Capanema ao longo de seus onze anos de Ministério. A contribuição principal de Capanema na área de educação talvez tenha sido a de manter esta agenda presente no governo federal ao longo dos anos subsequentes. No entanto, não é possível dizer, antes pelo contrário, que Capanema tenha sido um adepto fiel das idéias e propostas dos pioneiros.

O Manifesto não revela isto, mas sabemos que os movimentos educacionais dos anos 20 e 30 foram marcados por profundos conflitos ideológicos, onde a Igreja Católica e seus representantes leigos jogaram um papel fundamental. Tradicionalmente, em todas partes, a aprendizagem das primeiras letras sempre esteve associada ao ensino da religião, e não é por acaso que judeus e protestantes, para os quais a leitura da Bíblia é obrigatória, não conheçam o analfabetismo. A Igreja Católica também sempre se preocupou muito com a educação, sobretudo para garantir o conteúdo da formação ética, humanista e religiosa das elites dirigentes dos países aonde está presente. Na França, o Estado assumiu para si a função educativa, das massas e das elites, e estabeleceu-se um grande conflito entre os ideais da educação leiga e da educação religiosa, que se traduziu em termos de educação pública, dirigida e supervisionada pelo Estado, e educação privada, de responsabilidade das famílias e sob influência da Igreja.

No Brasil dos anos de Capanema, o conflito não era entre a educação pública e a privada, mas sim entre a educação leiga, proposta pelo Manifesto dos Pioneiros, e uma educação com conteúdo e orientação religiosos. Para a Igreja Católica da época, a terminologia sociológica do Manifesto, que dizia que a educação era uma ciência, que propunha uma "escola socializada", pragmática e vinculada à vida do trabalho, que substituísse a estrutura tradicional de classes por uma sociedade meritocrática, e que fosse pública, leiga, universal e co-educacional, soava como puro bolchevismo. Anísio Teixeira, formado em um país protestante, os Estados Unidos, sob a influência do pragmatismo pedagógico de John Dewey, era o mais perigoso entre todos. A co-educação, juntando meninos e meninas e ameaçando o papel tradicional da mulher na família, era inaceitável.

Neste conflito, Capanema pendia para o lado da Igreja conservadora, seja por convicção, seja por fidelidade ao pacto que havia sido estabelecido pouco antes entre a Igreja e o Estado Novo, inspirado por Francisco Campos, que teve seu apogeu com a inauguração da estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro,e cujo elemento mais visível, na área da educação, foi a introdução do ensino religioso nas escolas públicas, rompendo décadas de separação entre a Igreja e o Estado. A maior parte do trabalho do Ministério Capanema na área da educação se dá nos níveis médio e superior. Para o ensino médio, que naqueles anos começava com o antigo ginásio, que recebia crianças a partir de 10 anos, o Ministério busca na Itália o modelo para um currículo enciclopedista, centralizado e convencional, baseado na aprendizagem formal e abstrata das ciências e das letras, que consolidava a natureza elitista e classista da educação, e uma pedagogia "de fora para dentro", e não a partir da vivência do mundo do trabalho e da vida em comunidade, que o Manifesto dos Pioneiros havia tão bem criticado. No ensino superior, a principal atividade do Ministério parece se concentrar nas negociações e projetos para a construção dos prédios da cidade universitária do Rio de Janeiro, e na elaboração detalhada e minuciosa dos currículos dos diferentes cursos e carreiras a serem proporcionados pela Universidade do Brasil, que deveria ser imposta como modelo e forma para as demais instituições de ensino superior, incluindo a Universidade de São Paulo, que havia se estabelecido de forma independente em 1934, com a participação ativa de Fernando de Azevedo. A partir de 1935, o autoritarismo do regime Vargas se acentua, e Capanema toma a iniciativa de fechar a Universidade do Distrito Federal, liderada por Anísio Teixeira, assim como de sufocar as tentativas dos imigrantes do Sul em manter suas próprias escolas e educar seus filhos na língua materna. É nesta época também que Capanema prepara, sob a influência de Alceu Amoroso Lima, o projeto de um "Estatuto da Família" extremamente retrógrado, que pretendia proibir o trabalho feminino, restringir a co-educação, e exercer forte censura sobre todos os meios de comunicação, para impedir que idéias e informações que pudessem ameaçar o papel tradicional da mulher na família, e sua função reprodutiva, circulassem no Brasil.

Ainda que nem sempre lembradas, estas divergências ideológicas do Ministério Capanema com o Manifesto dos Pioneiros são mais conhecidas do que outras, mais sutis, mas de conseqüências e impactos possivelmente muito mais duradouros. Um dos objetivos centrais dos pioneiros era retirar a educação da rotina administrativa quotidiana dos governos, e fazer dela uma atividade autônoma e descentralizada - " transferir do terreno administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares", como consta do trecho já citado. O principal argumento, que hoje parece excessivamente em causa própria, era que a educação era uma ciência, e que por isto as instituições educacionais deveriam ser dirigidas pelos especialistas em educação. Mas havia, também, certa familiaridade com a experiência americana, aonde as escolas mantinham fortes raízes comunitárias e locais, assim como com as noções de autonomia acadêmica e liberdade de pesquisa que eram típicos das principais universidades em todo o mundo.

Nada disto fazia sentido para Vargas e seus Ministros, voltados todos para a preservação e fortalecimento do poder e da autoridade do governo central. Ao invés de um sistema educacional aberto, descentralizado e plural, evoluímos para um sistema cada vez mais uniforme, centralizado, rígido e pouco criativo. É certo que o governo federal nunca chegou a assumir a administração direta da educação básica, que ficou sempre nas mãos dos Estados. Mas o governo federal manteve sempre a pretensão de cuidar dos conteúdos do que era ensinado em todo o país, e os Estados, na mesma tradição centralista, criaram enormes burocracias públicas para administrar suas escolas, impedindo que os ideais de uma escola realmente comunitária, vinculada ao mundo da vida e do trabalho das crianças de dos jovens, pudesse vicejar.

Hoje temos consciência desta situação, e a nossa principal lei educacional, a Lei de Diretrizes e Bases, abre espaço para iniciativas e experimentos que antes eram impensáveis, da mesma forma em que as reformas administrativas abrem espaço para novos formatos organizacionais e institucionais. O maior obstáculo para a melhoria da educação brasileira hoje, além das limitações conhecidas da falta de recursos, não são mais as leis, mas os mau hábitos adquiridos ao longo de tantos anos, e que custarão a desaparecer.

Chamar a atenção para estas questões, reabrir a discussão sobre os grandes dilemas da educação brasileira, tratar de entender suas origens, esta me parece ser a melhor homenagem que podemos prestar hoje à memória de Gustavo Capanema. Independente das decisões e opções que ele tenha feito em algum momento, por razões próprias da época e das influências sobre as quais viveu, Capanema tinha um interesse e um envolvimento sincero com as questões da educação e da cultura, e nada o alegraria mais, estou seguro, do que saber que a documentação tão rica que nos legou pode estar ajudando a compreender melhor nossa herança, e levar a educação brasileira a um novo patamar de qualidade e desempenho. <