POR UMA NOVA POLÍTICA PARA O ENSINO SUPERIOR NO BRASIL, relatório final da "Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior", Brasília, Ministério da Educação, 1985.

Simon Schwartzman, "Última chance para as Universidades", Publicado na Folha de São Paulo, 19 de outubro, 1986; Dois Pontos, publicação da Secretaria de Ensino Superior do MEC, nº 33, dezembro de 1986; e em Estudos e Debates, 13, 159-164, 1987.


A reação histérica que se observa ao ante-projeto de reorganização das universidades federais, divulgado recentemente pelo Ministério da Educação, ameaça liquidar o que pode ser a última chance de as universidades brasileiras atingirem um novo patamar de autonomia, competência, relevância social e, em última análise, recursos.

Quem conseguir ignorar a gritaria e ler o texto vai notar que se trata de um excelente ante-projeto, ainda que com limitações e sujeito a aperfeiçoamentos. Basicamente, ele tira a universidade de sua condição de repartição pública subordinada às formalidades do DASP, e cria um ente jurídico novo, a "universidade", dotado de um estatuto legal próprio e adequado a instituições acadêmicas. Depois, dá às universidades real autonomia financeira, com dotações globais (e não mais especificadas por ítens: pessoal, custeio, etc.) baseada em orçamentos pluri-anuais. Em relação ao pessoal, estabelece um plano único de carreira para professores e funcionários para todo o país, uma antiga reivindicação de associações docentes e de funcionários, deixando, ao mesmo tempo, que cada universidade acrescente incentivos salariais específicos conforme suas condições, e estabelecendo vinculação estrita entre carreiras docentes e mérito. Termina com a farsa das "40 horas", criando duas categorias de professores, os de dedicação exclusiva, e os de tempo parcial; e estabelece um sistema de governo universitário autônomo, com a indicação dos reitores pelo poder público a partir de listas tríplices elaboradas por colegiados formados primordialmente por docentes, mas com a participação de representantes de alunos e funcionários. A autonomia que se concede à universidade vem associada à implantação de um sistema de acompanhamento do desempenho das universidades e instituições isoladas de ensino, de âmbito nacional e com a participação ativa da comunidade. Além do ante-projeto já divulgado existe um outro, anunciado em sua introdução, que reformula profundamente o Conselho Federal de Educação, transformando-o em órgão consultivo e sem as funções de controle cartorial e burocrático das instituições de ensino, projeto este que, espera-se, deve ser divulgado proximamente pelo Ministro Jorge Bornhauser.

Este projeto representa os primeiros resultados de um longo processo de discussão sobre a questão universitária brasileira iniciado com a Comissão de Alto Nível criada pelo Presidente José Sarney em 1985, e continuada pelo Grupo Executivo criado dentro do Ministério da Educação para este fim. Ninguém em sã consciência poderia acusar este Grupo, formado pessoas da melhor reputação no meio universitário brasileiro - Antônio Octávio Cintra, da Universidade Federal de Minas Gerais, Paulo Elpidio Menezes Neto, ex-reitor da Universidade do Ceará, Sérgio Costa Ribeiro, da Universidade Católica do Rio de Janeiro, e Edson Machado, Diretor da CAPES e profundamente envolvido com os problemas do ensino superior brasileiro por muitos anos - de "autoritário" ou "tecnocrático". É claro que o projeto deve ser discutido e aperfeiçoado, e deverá, ainda, passar pelo escrutínio do Congresso. O que não se pode aceitar é que a discussão seja abafada no grito das assembléias lideradas por grupos que ainda não entenderam, ou não querem entender, no que consiste realmente o regime democrático.

Não é verdade que se trata de um projeto anti-democrático, como afirmam alguns grupos mais vocais. A eleição direta para reitores e a participação de funcionários e alunos em colegiados acadêmicos são processos longe de ser aceitos por setores importantes e de credenciais democráticas absolutamente irretocáveis de nossa comunidade universitária, particularmente naquelas instituições e departamentos onde os valores da competência e da seriedade intelectual são mais cultivados. Em minha opinião pessoal, esta questão não deveria constar do projeto, ficando a critério e sob a responsabilidade de cada universidade, que deveria experimentar na própria carne, se quisesse, as delicias do populismo acadêmico. Acredito mesmo que este seja um item facilmente alterável no projeto, já que ele não é, na realidade, parte essencial da proposta.

Também não é verdade que se trata de um projeto privatizante. Ele afirma que "a União assegurará às universidades federais patrimônio e receita necessários à realização de seus objetivos", obriga a liberação dos orçamentos por duodécimos, etc. A idéia de que as Universidades possam, além de seus recursos orçamentários, fazer acordos e obter financiamentos para pesquisas e projetos de outras agências governamentais e empresas públicas e privadas tem sido uma reivindicação antiga, e o projeto, na realidade, avança pouco neste sentido. É pura paranóia achar que a possibilidade de fazer convênios deste tipo entregaria as universidades às "multinacionais". Como se houvessem muitas multinacionais interessadas em fazer convênios e associações com as universidades brasileiras...

O que explica realmente a grita são duas outras coisas das quais pouco se fala, estas sim essenciais ao projeto, e das quais é importante não abrir mão. A primeira é a transferência efetiva para o interior das universidades da responsabilidade pela gestão de seus recursos e pelo resultado de seus trabalhos. A segunda é a criação de um sistema externo, de âmbito nacional, de avaliação continua de seu desempenho.

Ter autonomia efetiva vai significar, para a universidade, ter que decidir se prefere gastar em obras ou em laboratórios, distribuir os recursos salomonicamente ou por critérios de qualidade e desempenho, contratar burocratas ou professores, facilitar as promoções sem concurso ou dificultá-las, demitir ou não os ociosos e incompetentes, controlar ou não a vigência efetiva do sistema de dedicação exclusiva. Os que, nas universidades, estão interessados em sua melhoria. estão há anos clamando por assumir esta responsabilidade. Os que estão acomodados com a atual situação temem ter que enfrentar estes problemas, e preferem continuar a falar demagogicamente de autonomia e colocar no MEC a culpa por todos os problemas. O que existe de fato é uma grande resistência à autonomia universitária, encoberta por um palavrório pseudo-democrático e de pseudo-esquerda.

O outro ponto fundamental é o da avaliação. E claro que avaliar é difícil, e o Ministério da Educação tem se movido com muita cautela nesta direção. Os pontos fundamentais do trabalho que o Ministério vem desenvolvendo neste sentido são os seguintes. Primeiro, avaliações só podem ser feitas "inter-pares", por pessoas de reconhecida competência e reputação em suas respectivas áreas de trabalho (nas universidades, nas associações científicas, nos Conselhos Profissionais, etc.) tanto quanto possível apoiadas por dados, técnicos especializados, etc. Segundo, avaliar é necessariamente comparar, criar padrões, e por isto auto-avaliações promovidas pelas próprias instituições de ensino, sem um referencial externo, não bastam. Terceiro, qualquer avaliação deve levar em conta que instituições podem ter objetivos diferentes, responder a realidades distintas, e por isto não podem ser sempre medidas pela mesma régua, ainda que todas devam ser excelentes na realização daquilo a que se propõem. Quarto, a implantação de sistemas de avaliação requer um longo período de aprendizagem, e por isto deve ser feita gradualmente, área por área, incluindo somente instituições que se voluntariem, e sem vincular desde o inicio os resultados obtidos a decisões governamentais sobre recursos e verbas. As universidades devem acompanhar este trabalho de perto, zelando para que as comissões de especialistas que vão proceder às avaliações sejam bem selecionadas, que os resultados sejam constantemente examinados e criticados pela comunidade, e que o processo avaliativo que agora se inicia para os cursos de graduação atinja os níveis de confiabilidade e respeitabilidade já obtidos pelo sistema de pós-graduação existente na CAPES. Dizer que um projeto como este é "tecnocrático", é uma "avaliação do MEC" (como afirmou recentemente o reitor da UFRJ) é querer desmoralizar de saída todo o projeto. Os que não querem autonomia também não querem avaliação, preferindo que tudo continue como está.

Infelizmente é possível, e até mesmo provável, que fique mesmo. As associações de docentes e funcionários que estão liderando a grita têm fortes aliados nos meios mais insuspeitos. Ainda existem no Ministério da Educação e outros setores do governo pessoas que não conseguem se livrar da mentalidade daspiana, e que são contra qualquer forma de autonomia. O projeto de alteração do Conselho Federal de Educação, que ainda não veio à luz, encontra fortes resistências principalmente por parte de setores ligados ao ensino privado, que têm hoje no C.F.E. o seu baluarte. A Secretaria de Planejamento, e certamente também o Ministro Funaro, não vêm com muito entusiasmo o acréscimo de gastos públicos que a isonomia salarial embutida no projeto traz para o governo federal. Professores e pesquisadores mais qualificados, que certamente não participam da grita, preferem ficar em seu canto, quando as discussões se politizam e radicalizam, sabendo que sempre encontrarão, de uma forma ou outra, apoio para seu trabalho. Finalmente, o governo Sarney não gosta de abraçar causas aparentemente impopulares, e pode terminar por enterrar todo o projeto, assim como as esperanças nascidas quando Tancredo Neves decidiu colocar em pauta a crise de nossas universidades.

Se esta ampla coalizão prevalecer, o destino de nossas universidades será semelhante ao daquelas de Lima, Caracas, México e de tantas outras cidades latino-americanas: tudo muito democrático, muito participativo, muito "engajado". e muito frustrante e inútil. Como as universidades gritam, o governo provavelmente continuará dando dinheiro, mas sem aumentar muito. O Ministério de Ciência e Tecnologia, que hoje já custa a entender que é nas universidades que se concentra a melhor capacidade de pesquisa do país, terá toda a razão em colocar seus recursos cada vez mais longe delas. Os melhores professores e pesquisadores abandonarão as universidades, ou tratarão de criar em seu interior ilhas isoladas e protegidas - exatamente o que ocorreu nos anos 70, quando o autoritarismo, então de direita, fazia das universidades um ambiente irrespirável. As universidades privadas, finalmente, tenderão a ocupar o espaço da competência e da responsabilidade hoje ainda concentrado no setor público, e passarão a atrair para elas os melhores alunos, os melhores professores, e com o tempo uma boa parte das verbas públicas.

Afinal, somos latinoamericanos, e talvez tenha sido utópico pensar que, um dia, pudéssemos ter um ensino superior onde prevalecesse não nosso subdesenvolvimento, mas os ideais de um pais mais moderno, mais justo e mais civilizado, e que estivesse a serviço não dos grupos que ocupam suas instituições, mas das necessidades da sociedade como um todo. <