
A SITUAÇÃO
ATUAL NA AMÉRICA LATINA: OS PROBLEMAS CHAVES DA DEMOCRATIZAÇÃO Simon
Schwartzman
Palestra preparada para o "Seminário Acadêmico" para
ex-bolsistas do KAAD (Katholisher Akedemischer Ausländer-Dienst) na América
Latina, Belo Horizonte, 26/7/1988. Publicado em Sergio Corvalán, editor,
Iglesia, Estado y Democracia en América Latina, Santiago de Chile,
KAAD, 129-144, 1990.
O problema que nos preocupa hoje poderia ser resumida de forma bastante
simples: tratar-se-ia de examinar as dificuldades que os países da américa
Latina que saíram mais ou menos recentemente de regimes militares -- Argentina,
Bolívia, Brasil, Uruguai, Peru, -- estão encontrando para estabilizar uma
ordem política democrática. Mas trata- se, além disto, de discutir as perspectivas
de manutenção de tradições democráticas já consolidadas em países como Colômbia,
Costa Rica ou Venezuela; os prospectos de criação de uma ordem política
democrática em outros que vivem há muito mais tempo dentro de uma tradição
política autoritária ou caudilhesca como Chile, Guatemala, Haiti, México,
Panamá, Paraguai, República Dominicana; e, finalmente, dos problemas de
criação de uma ordem política democrática em países latino-americanos de
orientação socialista e revolucionária, Cuba e Nicarágua.
O que parecia simples surge agora como quase impossível. O enunciado do
problema é suficiente para deixar claro uma de suas principais dificuldades,
que é a grande heterogeneidade dos países latino-americanos. Que haveria
de comum, de fato, entre países como Peru ou Bolívia, por um lado - formado
por grandes populações autóctones submetidas há séculos a uma elite colonizadora
hispânica e seus descendentes - e outros como Argentina e Uruguai, formados
por imigrantes europeus? Como compará-los com o Haiti, um país de ex- escravos
africanos? Como examinar da mesma forma os problemas da implantação da democracia
em países como o Chile e o México, ambos com grande tradição de participação
e mobilização política, com ditaduras históricas como a do Paraguai ou da
República Dominicana? Como juntar países tão distintos em tamanho e desenvolvimento
econômico como o Brasil e Equador? A expressão "América Latina", sabemos
hoje, significa em si mesma muito pouco, ou quase nada. A segunda dificuldade
do problema é o próprio conceito de democracia, que necessita de um melhor
esclarecimento para sabermos de que, afinal, estamos falando. Acredito que.
ao tratar de definir com melhor clareza estes dois termos, teremos condições
de, aos poucos, irmos nos aproximando do problema que nos interessa.
Não é por acaso no entanto que, apesar das grandes diferenças que guardam
entre si, os Países da América Latina costumam ser vistos como um todo quando
olhados desde um ponto de vista mais remoto, da Europa ou dos Estados Unidos.
Á primeira coisa que estes países compartem é, naturalmente, a herança cultural
ibérica; a segunda são os níveis precários de desenvolvimento econômico
e social -- aos quais se soma a estagnação econômica generalizada dos anos
80 -- apesar das grandes diferenças que existem entre regiões e países;
o terceiro, finalmente, é a dificuldade que encontram de implantar e manter
uma ordem política democrática. A coexistência destes três fatores leva,
naturalmente, à idéia de que eles talvez estejam interligados. Haverá algo
na tradição ibérica que explique o subdesenvolvimento econômico e social,
e a falta de democracia política? Será que o problema político se explica
pela tradição ibérica, ou, ao contrário, é uma função direta do subdesenvolvimento
econômico e social?
Conceito de democracia
Não teríamos como examinar estas questões sem uma definição, por mais preliminar
que seja, do que entendemos por democracia. O sentido etimológico da palavra
-- o governo do "demos", do povo, da maioria -- só nos ajuda em parte. O
termo 'democracia' se refere, de fato, a "governo", e nos ajuda a lembrar
que 'democracia' é um conceito eminentemente político, e não social ou econômico.
Expressões como "democracia social", ou "democracia cristã", surgiram na
busca de associar um conteúdo social, distributivo ou ético a uma ordem
política democrática. É possível haver democracia com injustiça social,
e justiça social sem democracia. É necessário que saibamos como distinguir
estas coisas, para podermos, depois, e examinar em que condições elas se
juntam.
O que é insuficiente, na palavra 'democracia', é a idéia do governo da maioria,
a chamada regra majoritária, A existência de mecanismos eleitorais que assegurem
a expressão da vontade política da maioria é um dos "mitos fundantes" dos
sistemas políticos democráticos, mar não é. de nenhuma forma, sua característica
principal. Dizemos que é um mito em dois sentidos principais.
O primeiro é que não existem, mesmo na melhor das democracias, mecanismos
efetivos que assegurem a tradução do agregado das preferências individuais
em uma preferência política coletiva: os eleitores votam com pouquíssima
informação, são chamados a escolher entre nomes ou partidos que lhe são
apresentados por grandes organizações político-eleitorais sobre as quais
não têm muita influência e não existem mecanismos que permitam o controle
efetivo da ação dos eleitos por parte dos eleitores, Todos estes problemas
podem ser minorados por mecanismos que assegurem maior informação e participação
do eleitorado no processo de escolha e seleção de candidatos. Não é possível,
no entanto - e seguramente não seria desejável - chegarmos a sistemas de
democracia direta que tirassem dos governantes qualquer possibilidade de
decisão e ação independente a médio e longo prazo, e transformassem a ordem
política em um processo interminável de negociações e consultas dos dirigentes
políticos com suas bases, que presumivelmente teriam um conhecimento adequado
e articulado de tudo que lhes convém. A segundo sentido em que a regra majoritária
é um mito é que a história está cheia de exemplos de regimes anti-democráticos
formados ou legitimados a partir de grandes manifestações eleitorais majoritárias,
de Napoleão Terceiro na França a Adolph Hitler na Alemanha, de Juan Domingos
Perón na Argentina ao Partido Revolucionário Institucional no México. É
ingênuo supor que as vitórias eleitorais dos partidos únicos e dos ditadores
populistas são obtidas sempre pela fraude ou pela manipulação das vontades.
Manipulação sempre existe, tanto no 'empacotamento' dos candidatos presidenciais
nos Estados Unidos quanto no populismo de um Perón; a diferença, no entanto,
é que o regime democrático norte-americano tem conseguido sobreviver até
hoje a esta manipulação, enquanto que os latino-americanos parecem muito
mais frágeis.
O que caracteriza uma ordem política democrática não é, pois, a simples
existência da regra majoritária, mas sua combinação com pelo menos dois
outros ingredientes fundamentais: o respeito ao direito das minorias e a
garantia e preservação dos direitos individuais. A democracia requer, conseqüentemente,
uma ordem jurídica bem estabelecida e estável que defina com clareza as
'regras do jogo' em todas as áreas mais significativas da atividade humana.
Não basta que estas regras existam, mas elas devem colocar e assegurar limites
claros e amplos ao poder dos governos, e das maiorias, de impor seus desejos
e preferências sobre indivíduos isolados ou grupos sociais minoritários.
Estes direitos das minorias inclui o direito à disputa efetiva do poder
político. Um regime democrático, assim, repousa necessariamente em uma ordem
jurídica e institucional bem estabelecida, capaz de se impor inclusive contra
a vontade da maioria ou do poder constituído, em nome de princípios de justiça
e eqüidade mais amplos; e deve incluir também, necessariamente, mecanismos
político-eleitorais que permitam a efetiva alternância do poder, em processos
de escolha que respeitem e se aproximem do mito da regra majoritária. Esta
concepção de democracia coloca muito mais ênfase nas instituições democráticas
-- o poder judiciário, o parlamento, a organização da burocracia pública,
as características dos partidos políticos -- do que, propriamente, no processo
político do exercício da democracia, que é por definição o processo eleitoral.
Esta relativização necessária da regra majoritária não deve ser entendida,
no entanto, como significando que ela seja dispensável. Nenhum regime democrático
contemporâneo pode justificar a exclusão de grupos significativos dos processos
político-eleitorais, por critérios de raça. religião, sexo, renda ou qualquer
outro. Além deste princípio de justiça, que faz parte da cultura política
democrática contemporânea, o respeito ao princípio majoritário é fundamental
para manter os sistemas políticos abertos, e impedir seu enquistamento na
forma de privilégios setoriais, sem o que o conceito de democracia perde
seu significado.
Democracia e Desenvolvimento Econômico e Social
Se aceitamos este entendimento do que seja um sistema político democrático,
a questão seguinte é a do relacionamento entre a ordem democrática e o desenvolvimento
econômico e social. Também aqui existe um mito que faz parte das justificativas
da ordem política democrática, que é o de que esta ordem é, na realidade,
a mais eficiente na produção de benefícios de tipo social e econômico. Faz
parte deste mito, também, a idéia de que a ordem política democrática interessa
principalmente aos setores sociais menos privilegiados, que seriam os que
teriam mais a ganhar com um sistema político aberto que não lhes cerceasse
as possibilidades de ascensão social.
Estas proposições tem sido testadas extensamente por pesquisadores em um
grande número de sociedades, e os resultados não são, infelizmente, muito
animadores. A experiência européia, da ampliação progressiva dos direitos
políticos, da participação política e do bem estar social, parece ter sido
um caminho multo difícil de ser emulado por outras sociedades. Regimes fortes
e autoritários são capazes tanto de manter situações de intensa exploração
e desigualdade quanto, em outros contextos, de promover programas intensos
e acelerados de distribuição de renda, desenvolvimento econômico e modernização
(fazendo, muitas vezes, as duas coisas simultaneamente); regimes democráticos,
por outro lado, têm geralmente pouca capacidade de ação e planejamento a
longo prazo, e funcionam, principalmente, como mecanismos de preservação
do statu quo econômico e social. Pesquisas de opinião pública em toda parte
confirmam que os valores associados com a ordem política democrática, tal
como o respeito às minorias, a defesa das formalidades da lei, ou a independência
do sistema judiciário, interessam muito pouco aos setores sociais menos
favorecidos, que deles dificilmente se beneficiam, e que vivem angústias
quotidianas muito mais concretas e muito mais imediatas. Eles também interessam
pouco às classes altas, que geralmente fazem valer seus privilégios independentemente
e por cima de qualquer ordem política estabelecida. São as classes médias
mais educadas, com pouca capacidade de organização sindical e sem fortuna
própria, e muito dependentes de suas profissões e de seus direitos sociais
para sobreviver com dignidade e segurança, que costumam valorizar mais os
direitos democráticos; mas elas são minoritárias.
Estes fatos levam, muitas vezes, ao qüestionamento a respeito do valor absoluto
que freqüentemente atribuímos à ordem política democrática. De que vale
uma democracia formal, quando ela não permite a solução dos problemas sociais
e econômicos mais graves, e perpetua a injustiça e a desigualdade? De que
vale a democracia formal se ela não for informada e apoiada em valores mais
profundos que a transcendam e, em última análise, dispensem suas formalidades?
Existem dois argumentos importantes em defesa da democracia, e que vão além
das simples preferências ou ansiedades das classes médias. O primeiro é
o da extraordinária capacidade de corrupção e deterioro de todos os sistemas
políticos autoritários, por mais éticos que sejam os princípios que os originam.
Os horrores do nazismo e do stalinismo, neste século, assim como os da inquisição
da Igreja, séculos atrás, se explicam menos pelo conteúdo ético dos respectivos
regimes, que em determinado momento sempre existiram, do que pelos mecanismos
de poder absoluto que geraram. Estes sistemas absolutistas e autoritários
não foram, somente, responsáveis por graves violações ao que hoje entendemos
por direitos humanos; eles também se mostraram, a longo prazo, incapazes
de fazer reverter para suas sociedades os benefícios da gigantesca capacidade
de mobilização de recursos sociais e econômicos de que dispunham.
O segundo argumento a favor da democracia política é pois uma volta paradoxal
à tese da eficiência. Se os regimes autoritários e centralizados são capazes
de mobilizar recursos e romper de maneira mais ou menos drástica com situações
de impasse e paralisia social, e confrontar interesses enquistados que se
opõem a transformações sociais e institucionais que os afetam, só a democracia,
entendida agora como uma redução drástica da participação do Estado na gestão
quotidiana da sociedade, permitiria realmente o florescimento da iniciativa
e criatividade das pessoas e da sociedade organizada em pequenos grupos.
Esta é, como sabemos, a tese liberal que ressurge hoje com força, ainda
que de diversas formas, tanto nas sociedades capitalistas mais avançadas
quanto nos países socialistas da "perestroika", Ela questiona a viabilidade
do Estado de manter o bem estar social - "welfare state" --, a capacidade
de planejar e modernizar a economia, e o poder efetivo do Estado de regular
a atividade econômica e social. Em seu lugar, ela propõe um mercado generalizado,
que englobe a economia como a educação, as artes como as ciências, a saúde
como o controle ambiental. A força persuasiva deste neo-liberalismo decorre
da progressiva falência das estruturas e instituições públicas criadas em
todo o mundo ao longo deste século, com custos cada vez maiores e resultados
cada vez mais duvidosos.
Mas a suposta congruência entre liberalismo econômico, liberalismo político
e bem estar social é, no mínimo, duvidosa. Na América Latina, a principal
tentativa de implantação de uma ordem econômica liberal, no Chile. tem sido
feita sob condições de autoritarismo político extremo, e a um curto social
aparentemente muito alto. Os países economicamente sais dinâmicos nos anos
80, na Ásia, combinam incentivos à iniciativa privada com um alto grau de
dirigismo econômico, como no Japão, ou autoritarismo puro e simples, como
na Coréia do Sul e Taiwan, e legislações sociais extremamente precárias.
A intensificação das políticas liberais nos Estados Unidos e Inglaterra
tem tido como resultado o aumento das desigualdades sociais e do desemprego,
e o abandono de políticas de atendimento a setores menos favorecidos da
sociedade. Outros países europeus tem sido capazes de se modernizar e manter
a vitalidade de suas economias sem desmantelar suas instituições públicas.
e sem abandonar suas políticas de bem estar social.
Esta discussão é simétrica, e leva conclusões semelhantes à que chegamos
a respeito do princípio majoritário. O mercado generalizado é também um
mito fundante, do capitalismo em primeiro lugar, mas hoje, cada vez mais,
chegando ao próprio socialismo. Assim como a ordem democrática não pode
ser fundar exclusivamente no princípio majoritário, ela tampouco pode se
basear no abandono das funções reguladoras, assistenciais e planejadoras
de instituições públicas em benefício de um mercado generalizado e absoluto.
Nem mesmo o mercado capitalista funciona sem instituições permanentes que
transcendam a lógica quotidiana do cálculo econômico, De formas diferentes,
tanto o princípio majoritário quanto o mercado só funcionam quando associados
a instituições políticas e sociais estáveis e responsáveis não somente ante
o público ou a lógica do mercado, mas ante a si mesmas e aos valores que
as informam.
Resumindo, podemos dizer que o problema da democracia, assim como o problema
do desenvolvimento econômico e do bem estar social, em sociedades modernas,
depende da criação de instituições públicas e privadas capazes de envolver
as pessoas em projetos e políticas de longo prazo, e que sejam controladas
e avaliadas por mecanismos que se aproximem dos princípios do mercado e
majoritário, sem, no entanto. depender exclusivamente dele. Uma democracia
assim constituída poderia, em princípio, ser mais eficiente no desenvolvimento
do bem estar social e econômico, e, ao mesmo tempo, mais ética e mais justa.
Caberia nos perguntar, finalmente, em que medida as tradições políticas
latino-americanas nos permitem, ou não, a criação de uma ordem política
e social com estas características.
Democracia na América Latina
Resumindo em poucas palavras uma história complexa, eu afirmaria que a tradição
política de que somos herdeiros na América Latina, tanto pelo império espanhol
quanto pelo império português, é a de um sistema de dominação política de
tipo hierárquico e autoritário que, no melhor dos casos, busca levar à prática
um ideal qualquer de bem comum, mas, na maioria dos casos, consiste na utilização
da autoridade pública para a realização de fins privados e restritos. O
termo 'patrimonialismo' - que busca caracterizar as formas de dominação
política em que as posições públicas são utilizadas como patrimônio privado
de determinados grupos sociais - tem sido utilizado, com propriedade, para
caracterizar esta situação.
Existem, é claro, grandes diferenças e variações nas formas pelas quais
este sistema tem se transformado em toda a região, em função de um sem número
de fatores, mas creio que algumas generalizações podem ser feitas. A primeira
é que, quando submetidos a pressões externas, os sistemas hierárquicos e
autoritários tendem a se expandir pela incorporação de um número cada vez
maior de grupos e setores a seus benefícios, aumentando, assim, seus custos
e a ineficiência global do sistema sócio-econômico, que recai sobre os setores
excluídos da sociedade. Nesta expansão de funções e benefícios (denominados,
geralmente, de clientelísticos), estes sistemas adquirem muitas vezes a
linguagem e os valores da ordem democrática, mas com duas distorções sérias.
Primeiro, o princípio majoritário é utilizado principalmente de forma plebiscitária,
como forma de legitimação da ordem política constituída, mas sem mecanismos
realmente institucionalizados de regulação do poder central pelo sistema
eleitoral. Segundo, a propriedade e a iniciativa privadas funcionam principalmente
como formas de apropriação de privilégios governamentais (ou 'cartoriais')
sem que se submetam efetivamente às pressões e condicionamentos de mercados
competitivos. Sistemas políticos assim constituídos não conseguem nem desenvolver
políticas de bem estar social e econômico a longo prazo, nem criar mecanismos
legítimos e estáveis para definir e distribuir prioridades, custos e responsabilidades
na sociedade, sendo levados, por isto, a espasmos periódicos de autoritarismo.
Problemas chaves da democratização na América Latina
Esta análise, assim como a realidade que observamos de norte a sul da América
Latina, sugerem que não existe nenhuma garantia de que o continente esteja
evoluindo no sentido de uma democratização efetiva que tenha condições de
trazer ao continente os benefícios de políticas econômicas que produzam
riqueza, e políticas sociais que corrijam injustiças, assegurem direitos
mínimos e promovam a igualdade efetiva de oportunidades. Esta falta de garantias
não significa, porém, que nada possa ser feito, e que todas iniciativas
estejam de antemão condenadas ao fracasso. A própria crise política e econômica
em que vivemos pode levar à busca de caminhos e soluções novas, que possam
alterar este quadro pessimista. Alguns países terão melhores chances do
que outros, e os caminhos dificilmente serão os mesmos. Na linha do raciocínio
seguido até aqui, eu gostaria de concluir com uma lista de três problemas
chave de cuja solução depende, a meu ver, as possibilidades efetivas de
democratização na América Latina nas próximas décadas.
O primeiro problema chave é o da criação de instituições permanentes e auto-reguladas,
que tenham interesse e sejam capazes de investir em sua permanência e estabilidade
através do tempo. Uma das principais formas de desenvolvimento de instituições
deste tipo é através da educação, e da criação de comunidades científicas,
técnicas e profissionais. Fazem parte delas também os sindicatos, as associações
religiosas, as associações esportivas, as associações de bairro. Elas devem
existir também no setor privado, na forma de empresas e grupos econômicos
que não mantenham relações meramente predatórias com o resto da sociedades;
e dentro do próprio Estado, como setores da burocracia pública, no executivo
como no judiciário ou legislativo, que desenvolvam padrões próprios de competência
e probidade técnica, intelectual e ética. A questão principal, neste processo
associativo, é que estas instituições não se constituam, simplesmente, em
grupos de pressão ou entidades suplicantes dos favores do poder público,
ou de benesses legais de qualquer tipo. A crise econômica e política em
que vivemos torna esta orientação suplicante cada vez estéril, o que abre
as portas para alguma esperança.
O segundo problema chave é o da utilização efetiva do princípio majoritário
como mecanismo regulador do sistema político, sem cair, no entanto, na democracia
plebiscitária. Trata-se, em outras palavras, da questão da constituição
dos partidos políticos, que, para serem viáveis e efetivamente democráticos,
devem trilhar uma vereda difícil entre o clientelismo puro e simples, o
apelo populista plebiscitário e demagógico, e a pureza ideológica dos pequenos
grupos.
O terceiro problema chave é o do mercado. As virtudes do mercado - o controle
do desempenho, o estímulo à iniciativa e à criatividade - devem ser expandidas
não somente para a área econômica, como também para os demais setores da
sociedade onde os valores da competência, da iniciativa e da criatividade
sejam desejáveis. Introduzir os princípios de mercado significa reduzir
controles burocráticos e formalistas, eliminar privilégios e monopólios
de grupos e categorias sociais e expandir os mecanismos de auto-regulação
e autonomia decisória em todas as esferas de atividade humana, dentro e
fora do Estado.
É fácil perceber que cada um destes problemas chave traz em si o risco de
sua perversão, e como o risco de cada um pode ser minimizado pela existência
dos outros dois. A existência de instituições sólidas coloca limites ao
mercado predatório e à política demagógica e populista; a preservação do
princípio majoritário e de sistemas político-partidários adequados coloca
freios à corporativização e apropriação privada de direitos e privilégios
políticos e sociais e aos abusos do mercado predatório; a existência de
mercados coloca limites à oligarquização dos partidos políticos, à ossificação
das instituições, e à preservação de sinecuras cartoriais.
Um dos problemas da democratização da América Latina, ainda que não dos
mais centrais, é a pouca clareza sobre o que esta democratização na realidade,
implica. Esta discussão pode ser vista como uma pequena tentativa de esclarecer
este ponto.
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