A CONJUNTURA POLITICA

Simon Schwartzman

(Julho de 1985)
  1. A erosão política do regime militar
  2. As origens da Nova República
  3. A formação do novo governo.
  4. A ação governamental.
  5. As dificuldades emergentes
  6. Conclusão



A atual conjuntura política brasileira se caracteriza por um curioso paradoxo. Por um lado, este é um dos governos com menos oposição de que se tem noticia na história do país; por outro, existem sinais crescentes de tensões e dificuldades, transmitindo uma idéia de indecisão e instabilidade. Esta discussão tem por objetivo tratar de entender melhor este paradoxo.

1. A erosão política do regime militar

A ausência de oposição ao atual governo se explica, basicamente, pela forma em que ele foi constituído, por oposição ao regime militar anterior. Aquele regime, por sua vez, foi se desgastando exatamente pela erosão progressiva de sua base de sustentação política. Mais especificamente, esta erosão consistiu em:

a — perda da continuidade no processo de desenvolvimento econômico que durante vários anos conseguiu manter o interesse, se não o apoio, do empresariado e de setores significativos da classe média, principalmente aquela dependente do setor público (estatais, funcionalismo, etc.). Esta perda se explica. basicamente, pelo fracasso dos grandes projetos de desenvolvimento da década de 70 e da crise gerada pelo descontrole das dividas interna e externa.

b — estreitamento contínuo das bases de sustentação político-partidária do governo. Esta sustentação se dava, basicamente, pela distribuição de favores clientelísticos às oligarquias políticas regionais. Com a abertura do processo eleitoral, e particularmente com as eleições de 1982, ela viu-se reduzida praticamente ao Nordeste. A candidatura Paulo Maluf, também baseada na distribuição de favores e serviços pessoais, mostrou-se muito mais eficaz do que o próprio governo neste processo, terminando por destruir a pouca sustentação que o regime ainda contava em certas regiões.

c — A crescente desorganização e paralização administrativa do regime, fazendo que ele perdesse apoio dentro de suas próprias bases tradicionais de sustentação na área empresarial, militar, etc. Esta paralização se explica, em parte, pelo fracasso dos grandes projetos desenvolvimentistas. A partir de certo momento o governo deixou de ter um projeto próprio. e isto permitiu que a política passasse a ser feita em termos de preferências, simpatias e favores pessoais, o que acentuava muito a ineficiência do regime em confrontar seus problemas políticos e econômicos crescentes.

d — a tudo isto énecessário acrescentar-se que os regimes militares sempre contaram com forte oposição de setores importantes do operariado, vítimas do arrocho salarial: das classes médias e educadas. em sua maior parte sem possibilidades de participação na vida pública e, a partir de certo momento, vitimas também de políticas recessivas; e os grandes setores da população excluídos do processo de desenvolvimento dos anos 70, e aglomerados ao redor das grandes cidades do centro-sul.  

Dado este quadro, era natural que a oposição ao governo, expressa nas campanhas das diretas de 1984, ganhassem o apoio integral da opinião pública nacional e internacional, e que o governo dela resultante surgisse com grande sustentação nesta opinião pública. O que talvez não se esperasse era que a unanimidade fosse tão grande. 

2. As origens da Nova República

A aliança política que deu base à Nova República sempre oscilou entre duas alternativas ou possibilidades, que em certo momento podiam ser representadas pelas personalidades de Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, e poderiam ser interpretadas como mais ou menos à esquerda do espectro político.

O PMDB de Ulisses Guimarães simbolizava, basicamente, a oposição tradicional ao regime militar, situada nas grandes cidades do centro-sul, nas universidades, nos jornalistas, nos sindicatos, etc. Foi esta oposição. acima de tudo, a que retirou do antigo governo sua legitimidade ante a opinião pública, e contribuiu para as derrotas eleitorais de 1982. O PMDB de Tancredo Neves, no entanto, era bem diferente. Sua base de sustentação e métodos de trabalho não eram a mobilização política e ideológica dos grandes centros, mas a política mais tradicional de distribuição de favores e alianças clientelísticas do núcleo principal da política tradicional brasileira.,que é Minas Gerais. Vindo da escola getulista, Tancredo Neves sabia utilizar a linguagem nacionalista e de apelo popular, que lhe permitia subir com Ulisses Guimarães aos mesmos palanques. Sua origem no antigo PSD, no entanto, lhe dava também condições de penetrar nas bases tradicionais de sustentação do regime militar, em processo acelerado de deterioro, por onde Ulisses Guimarães não transitaria. A campanha pelas eleições diretas, detida pelo Congresso, foi uma Vitória de Pirro de Ulisses, que contou com a adesão constrangida de Tancredo; a vitória no Colégio Eleitoral foi uma vitória de Tancredo, e o constrangimento evidente foi de Ulisses.

A doença e morte de Tancredo Neves, com a transmissão de cargo para José Sarney, só contribuíram para acentuar ainda mais fortemente o sentido da vitória de Tancredo sobre Ulisses. Apesar de formalmente filiado ao PMDB, José Sarney vem das próprias bases mais tradicionais de sustentação do antigo regime, que se transferiram de armas e bagagens para o atual.

Deste pacto político poucos ficaram de fora. Do antigo regime sobrou pouco que pudesse se constituir em oposição. O deputado Paulo Maluf não parece ter condições de manter indefinidamente uma liderança política construída pela distribuição de favores pessoais a colégios eleitorais restritos. Setores identificados com o liberalismo econômico, que se alinharam com a candidatura Maluf (por exemplo o Senador Roberto Campos) mantêm seu apoio em certos setores do empresariado, mas não chegam a se constituir em força política organizada. O apoio do PMDB ao atual governo tirou muito da força da oposição à esquerda. A gravidade da conjuntura econômica deixa isolados os setores sindicais mais militantes, que sofreram grandes desgastes com as greves que iniciaram. O populismo à esquerda, representado por Leonel Brizola, consegue ocupar algum espaço, mas não parece encontrar eco para uma oposição mais forte, que pudesse por exemplo forçar a antecipação das eleições presidenciais para 1986. 

3. A formação do novo governo.

A estratégia de ação de Tancredo Neves parecia clara. O problema principal do país era o da inflação que, uma vez contida, permitiria o equacionamento da divida externa, Para controlar a inflação ele necessitaria de um Ministro da Fazenda forte, que controlasse os dispêndios de governo, os investimentos das estatais, etc. A impopularidade desta política poderia ser contida por dois mecanismos. Primeiro, pela utilização extensa de técnicas clientelísticas através da distribuição estratégica de cargos e vantagens políticas, que garantissem o apoio do Congresso, dos governos estaduais e das lideranças políticas potencialmente mais militantes. Segundo, pela utilização de uma linguagem popular, democrática e nacionalista, que pudesse garantir seu apoio junto à opinião pública. Esta linguagem popular e democrática deveria ser fortalecida por uma série de medidas liberalizantes no nível político, incluindo a instauração de um processo político eleitoral que mantivesse cativa a atenção da opinião pública e os debates da imprensa.

A constituição do gabinete Tancredo Neves espelha com clareza esta estratégia. O Ministério da Fazenda foi entregue a pessoa de sua confiança pessoal, e o Banco Central a uma equipe de orientação econômica ortodoxa, O poderoso Ministério do Interior também ficou em mãos de pessoa de sua confiança. O outro ministério econômico, o do Planejamento, ficou com a oposição: é um ministério que faz planos e orçamentos, mas não controla a caixa. Os demais foram distribuídos por critérios políticos, sondo que os ministérios mais significativos ficaram preferencialmente com políticos mais conservadores — Minas e Energia para Aureliano Chaves, Indústria e Comércio para Roberto Gusmão, Relações Exteriores com Olavo Setúbal. Ao PMDB coube Ciência e Tecnologia, Cultura, Previdência Social, Agricultura, Justiça, trabalho e outros menos votados. Em todos estes casos, ministérios potencialmente sensíveis politicamente, fontes de tensão melhor controladas pela antiga oposição (o Ministério da Educação, que também é politicamente sensível, ficou com um dos "presidenciáveis" do PFL, Marco Maciel, que escapa bastante da figura do político nordestino tradicional). 

4. A ação governamental.

A enfermidade e morte de Tancredo Neves não permitiram que sua estratégia fosse tentada da forma em que estava planejada. O governo Sarney se diferencia do que seria de se esperar de Tancredo Neves em alguns pontos fundamentais. Em outros aspectos, é bastante semelhante. Itens:

a — do ponto de vista político, o governo Sarney tem muito menos legitimidade junto à antiga oposição ao antigo regime. Tancredo Neves conseguiu fortalecer muito sua imagem durante o processo eleitoral, e a doença teria aumentado ainda esta força, não fosse seu desenlace trágico. Esta pouca legitimidade do governo Sarney faz dele um governo tímido, hesitante, que não consegue tomar decisões controvertidas e políticas impopulares, venha de onde venham as resistências. 

b — do ponto de vista econômico e doutrinário o governo Sarney é possivelmente mais aberto e sofisticado do que seria o de Tancredo Neves. Sua política econômica em relação à divida externa, à política salarial, aos investimentos públicos, etc., é mais flexível, e abre mais espaço à orientação da Secretaria de Planejamento, enfraquecendo o Ministério da Fazenda. É difícil dizer, no entanto, quanto desta política econômica resulta de uma maneira verdadeiramente distinta de conceber a política econômica ou da opção por uma linha de conduta evidentemente mais popular, a curto prazo. do que a ortodoxa.

c - do ponto de vista político, o governo Sarney não se diferencia significativamente do que seria de se esperar do governo Tancredo. Os calendários eleitorais  estão  sendo mantidos,  medidas de democratização política  estão  sendo tomadas, as técnicas clientelísticas continuam da mesma forma, e a sustentação política do governo tem sido até aqui bastante bem preservada.

A abertura do calendário político-eleitoral já deixa evidente, no entanto, as dificuldades que este regime político   encontrará pela frente, e que não parece poderem ser controladas   facilmente com a estratégia montada por Tancredo Neves.

5. As dificuldades emergentes

Ao formar um ministério a partir de critérios político-partidários e clientelísticos, Tancredo Neves assegurou para si uma grande incapacidade de ação administrativa, que o governo Sarney herdou e não parece  estar se esforçando para corrigir. Esta incapacidade afeta praticamente a todo o executivo exceto, possivelmente, os setores de política monetária e fiscal e relações exteriores. É uma herança dos governos anteriores, relacionada entre outras coisas com o uso continuado de cargos públicos como "moeda" no jogo de alianças e distribuição de favores políticos, Por isto mesmo, seria necessário um esforço bastante grande, a custos políticos relativamente altos, para ser minorada. Além disto, seria necessário que os atuais ministros tivessem um horizonte de tempo superior aos meses que lhes faltam para as desincompatibilizações previstas para os primeiros meses de 1986, quando quase todos deverão deixar seus postos.

Os aspectos dramáticos desta incapacidade começarão a surgir com toda clareza na medida em que se acentuar a necessidade de uma política social mais ativa por parte do governo, nas áreas da previdência social. política de empregos, melhoria do sistema educacional, política urbana, etc. Não há dúvida que é por aí que se encaminhará a política econômica e social do governo, como alternativa às políticas econômicas mais ortodoxas hoje representadas pelo Ministério da Fazenda; mas é por al também que sua debilidade se tornará mais evidente.

A segunda dificuldade é a atual incapacidade do governo em lidar com os movimentos reivindicatórios de tipo coletivo, que tenderão a se acentuar. Tradicionalmente, reivindicações têm sido tratadas no Brasil por combinações diferentes de repressão e cooptação, mediante atendimentos particulares e privilegiados a setores mais bem articulados. A repressão, no atual momento político, está excluída, e a capacidade de atendimentos privilegiados parece se reduzir cada vez mais. Esta questão se agrava, entre outras coisas, pela incapacidade do sistema judiciário em dar atendimento adequado a reivindicações coletivas, e pela legislação trabalhista que dificulta a livre negociação salarial entre patrões e empregados. A opção tem sido, até aqui, de buscar a negociação mediante a intervenção governamental e pela utilização do prestigio e competência mediadora do Ministro do Trabalho. Esta via tem, no entanto, seus limites. 

As dificuldades do governo em desenvolver uma política social e trabalhista adequadas, se somadas ao eventual recrudescimento da crise econômica, motivada pelo refluxo das atuais medidas contecionistas e por dificuldades na negociação da dívida externa, poderão começar a corroer. em pouco tempo, sua base de sustentação hoje tão ampla. A perda de controle da política econômica trará, imediatamente, a oposição do empresariado; a generalização de movimentos reivindicatórios não atendidos e controlados poderá provocar inquietação nos quartéis; e a ausência de resultados socialmente significativos para as populações urbanas provocará, por um lado. o recrudescimento do poder e prestígio de políticos populistas, como Jânio Quadros ou Leonel Brizola, que se valem sobretudo do descrédito dos governos em todos os níveis para angariar seu apoio. Para os setores mais ideológicos do PMDB, representados no passado recente por Ulisses Guimarães, a aliança com o governo passará a ser um ônus cada vez maior, que se tornará mais evidente na medida em que o calendário político-eleitoral avança. A "aliança democrática" já começa a se romper para as eleições para prefeito em várias capitais — São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife — e pode ser que ela não dure até a Constituinte.

6. Conclusão

Para o país, a unanimidade política de apoio ao governo não é, evidentemente, nenhuma vantagem. A unanimidade nacional só seria benéfica em uma situação extrema, em que o governo necessitasse de muita legitimidade para alterações profundas na sociedade, que afetassem inevitavelmente interesses setoriais poderosos. José Sarney não é, no entanto, Charles de Gaulle, e o preço do consenso , em termos de paralisia governamental, parece estar se tornando bastante alto. A curto prazo, o quadro político brasileiro parece prenunciar realinhamentos e turbulências, diminuindo ainda mais a capacidade de ação do atual governo. A médio prazo, quem sabe isto não leve a decisões e definições mais claras, e, com isto, melhores resultados? <