
A abertura
política e a dignificação do função pública Simon
Schwartzman
(publicado na Revista do Serviço Público (Brasília),
Ano 41, vol. 112, nº 2, Abr/Jun 1984, 43-58)
Sumário
Política e racionalidade na administração pública
Primeiro equívoco: a "administração científica"
Segundo equívoco: a racionalidade burocrática (ou a má leitura
de Max Weber)
Algumas dificuldades da racionalidade burocrática
A busca de modelos alternativos
A privatização do serviço público
Em busca de uma solução
Referências bibliográficas
Notas
Política e racionalidade na administração pública
A reativação da vida político-partidária no Brasil nos últimos anos tem
afetado o exercício da função pública em pelo menos duas formas essenciais.
Primeiro, através de um ataque generalizado aos chamados "tecnocratas",
ou seja, aos funcionários públicos que tratam de fazer valer seus critérios
próprios ou técnicos de decisão sobre os mais variados temas, da política
social à política econômica, sem submetê-los às injunções político-partidárias
do momento. Segundo, pela utilização bastante ampla do emprego público como
"moeda" política, ou seja, como um recurso utilizado não para o cumprimento
de uma função pública qualquer, mas como um bem - um emprego - que se dá
em troca de um apoio político específico, ou de um certo número de votos.
Quando há troca de partidos no poder, um grande número de funcionários ligados
à administração anterior e substituído por outras pessoas que tenham demonstrado
sua lealdade ao vencedor. O predomínio de critérios políticos para a designação
de servidores, tanto quanto para o condicionamento de suas ações, faz com
que os mecanismos mais clássicos de admissão e promoção no serviço público
- concursos públicos, mérito pessoal, qualificação técnica, etc. - tendam
a ser postos de lado, substituídos por critérios de conveniência ou lealdade
pessoal.
Seria um grave equívoco atribuir esta situação, simplesmente, a um amoralismo
supostamente inerente à atividade político-partidária, que não hesitaria
em renunciar aos valores de eficiência e probidade no serviço público em
benefício de vantagens particularistas e de curto prazo. Ainda que esta
atitude certamente exista, ela se soma a um fenômeno mais profundo, que
e a grande descrença que hoje existe em todo o país quanto ao poder real
que têm os princípios de racionalidade, mérito e competência técnica para
produzir os benefícios econômicos e sociais que todos almejam. Em amplos
setores da sociedade, na oposição como no governo, parece ter-se generalizado
a idéia de que "os técnicos" já tiveram sua oportunidade e a desperdiçaram
- por se isolarem nas torres de marfim de seus gabinetes refrigerados, e
por cuidarem sobretudo de seus interesses pessoais e corporativos, antes
que dos nacionais. Seria agora chegada a hora dos políticos, que conheceriam
melhor a realidade do país, de seu povo, e que por isto poderiam, quando
necessário, dizer aos "técnicos" o que fazer.
Esta desqualificação da função pública pela política está ligada, aparentemente,
ao fato de que haveria, no Brasil, uma curiosa correlação entre regimes
fortes e esforços de racionalizar, reorganizar e valorizar o serviço público,
por uma parte; e regimes abertos e o aviltamento da função pública por outra.
Por exemplo, existe a idéia de que o Departamento Administrativo do Serviço
Público - o DASP, criado em 1938, foi a primeira tentativa realmente seria
de dar ao serviço público brasileiro uma organização racional baseada no
mérito e competência, em um período de grande concentração de poder no governo
federal. A abertura democrática de 1945 teria introduzido, pouco a pouco,
elementos de clientela e empreguismo na administração pública federal, diminuindo
a capacidade de ação do DASP e colocando em segundo plano todos os seus
princípios de racionalização e eficiência. O processo de submissão do serviço
público ao jogo político mais imediatista teria atingido seu auge na presidência
de João Goulart, o que teria sido uma das causas mais importantes de sua
queda(1).
O sistema administrativo brasileiro e reorganizado novamente em 1967, através
do decreto-lei 200, que introduz novos princípios e aumenta, mais uma vez,
a eficiência do serviço público, ate a crise que hoje, parece existir novamente.
Se esta interpretação dos fatos fosse correta, ela nos confrontaria com
um dilema, que colocaria de um lado a administração racional e técnica,
associada aos regimes fortes e autoritários, e de outro a administração
politizada, deficiente e desmoralizada, que pareceria ser um atributo da
democracia e da participação social. No entanto, basta olharmos para os
exemplos das democracias pluri-partidárias européias para nos assegurarmos
que isto não tem por que ser assim. Na realidade, não existe nenhuma incompatibilidade,
em principio, entre sistemas políticos abertos e intensamente disputados
e serviços públicos competentes, respeitados e dignificados em suas funções.
Mais ainda, os serviços públicos dos países democráticos e pluri-partidários
são possivelmente os mais qualificados e competentes do mundo, quando vistos
em comparação com as administrações públicas de outros regimes.
Podemos suspeitar, assim, que estamos diante de um falso dilema, baseado
em premissas equivocadas. E possível que, tratando de esclarecer estes equívocos,
possamos pensar melhor em como manter e fortalecer a competência e dignidade
do serviço público brasileiro, no regime político aberto e de ampla participação
social que todos queremos construir.
Primeiro equívoco: a "administração científica"
O primeiro equivoco a esclarecer é o de que existiria algo que poderia ser
denominado "administração científica", e que o sistema administrativo implantado
no pais através do DASP, em 1938, corresponderia a este modelo.
Na realidade, a idéia de que a administração pública e uma atividade eminentemente
técnica, sujeita a leis científicas bem estabelecidas, fazia parte da justificação
da criação do DASP durante o Estado Novo, e foi sempre utilizada pelos que
criticaram e ainda criticam a intervenção da política na administração da
coisa pública. Na sua versão extrema, que ate hoje encontra muitos adeptos,
existiria um abismo profundo e insuperável entre o jogo das conveniências
e dos interesses, que e o da política, e a administração racional e técnica.
A intromissão da política na administração, nesta perspectiva, poderia ser
ate tolerada, em nome dos princípios mais altos da democracia, mas seria
sempre um óbice para a boa execução da função pública.
Para os organizadores do DASP, a necessidade de uma administração pública
racional e científica era uma decorrência natural do aumento da responsabilidade
do poder executivo nos tempos modernos, particularmente para a direção da
atividade econômica. "o direcionismo econômico tornou-se função primacial
do Estado moderno", asseguravam. Não havia dúvida quanto à necessidade crescente
da intervenção do poder público em todos os setores da atividade nacional,
e para isto a racionalização administrativa era indispensável:
"Tal fenômeno (da necessidade de intervenção) traduzia o aumento constante
da significação política do poder executivo, obrigado a agir cada vez com
maior energia e presteza. Se, antes dessa expansão da esfera da atividade
do Estado, a eficiência administrativa era a garantia do bom governo, agora,
mais do que nunca, com o aumento da responsabilidade do Estado, ela se tornou
o elemento indispensável da ação. Explica-se, destarte, porque o problema
da organização do aparelho estatal, no mundo inteiro, passou a ser encarado
em toda a sua plenitude, principalmente de 1930 para cá, isto e, quase imediatamente
depois da grande depressão econômica mundial iniciada dramaticamente com
o crack da bolsa de Nova Iorque. Os governos tiveram que valer-se,
também, do concurso indispensável da ciência e da técnica, para a montagem
e funcionamento da má- quina administrativa(2)".
A realidade, no entanto, e que e no mínimo duvidosa a existência de uma
ciência ou técnica específica que sirva de base para a "montagem e funcionamento
da máquina administrativa". É claro que existe uma serie de problemas e
questões administrativas que requerem um certo conhecimento técnico, nas
áreas de administração de pessoal, de material, sistemas de classificação
de cargos e salários, etc. Mas a soma destes conhecimentos não chega a constituir
o que muitos pretenderam que fosse uma "ciência administrativa", que permitiria
criar no país uma "máquina administrativa", concebida em termos puramente
tecnológicos, e alimentada por uma formação científica proporcionada aos
administradores em escolas especializadas. Basta examinarmos os currículos
dos cursos brasileiros em administração pública para darmo-nos conta de
que eles sempre foram, no máximo, uma junção pouco integrada de noções gerais
de ciências sociais, direito, economia, contabilidade e algumas técnicas
administrativas. Sabemos que os princípios administrativos desenvolvidos
por Taylor e Fayol, e que tanta voga tiveram em nosso meio, jamais chegaram
a funcionar efetivamente nem mesmo no interior dos sistemas industriais,
para os quais foram concebidos; e que devem ser entendidos, antes de tudo,
como ideologias empresariais e administrativas para o controle da força
de trabalho, e não como "princípios científicos" em si mesmos(3)
.
Na prática, a "ciência da administração" difundida pelos defensores da administração
científica no Brasil nunca passou de um conjunto mais ou menos bem organizado
de noções de sentido comum. Sua principal função não foi a de dar um caráter
científico à administração pública, e sim de proporcionar ao governo central
um mecanismo de controle sobre seu funcionalismo. Isto foi buscado através
da centralização extrema da administração pública, sob a égide do DASP,
e da criação de um quadro de pessoal integrado e coerente para todo o país,
sujeito a um sistema de classificação de cargos condizente com as diversas
qualificações profissionais dos titulares, e regido por mecanismos explícitos
de admissão e promoção. Havia certamente a idéia de que, por estes mecanismos,
seria possível dotar o país de um serviço público de elite. Mas sabemos
que esta tentativa começa a encontrar dificuldades ainda antes de 1945,
já que o DASP jamais esteve, na realidade, imune às conveniências políticas
do regime a que servia. Um autor que estudou o assunto, Lawrence S. Gralham,
observa que "O programa de reforma administrativa parecia ser um importante
sucesso, visto de fora; no entanto, quando examinamos os materiais deste
período, fica claro que conflitos e oposições às reformas existiam dentro
do próprio sistema administrativo. A estrutura administrativa do Estado
Novo obscurecia esta situação. Os conflitos entre os conceitos e práticas
administrativas tradicionais e os modernos foram simplesmente internalizados."(4)
O conflito que Graham observa é entre os esforços centralizadores do DASP
e os procedimentos tradicionais de contratação e promoção de funcionários
públicos por critérios de conveniência, por política de clientela. Mais
importante do que isto, no entanto, era o fato de que a centralização e
padronização que se buscava, se aumentava o poder do governo central sobre
as administrações dos ministérios, na realidade retirava do serviço público
sua eficiência técnica, o que era contornado pela criação de um sem-número
de organizações para-estatais ou autárquicas que, na prática, eram os órgãos
pelos quais a política econômica se exercia. Caixas econômicas, sociedades
e institutos mistos (Departamento Nacional do Café, Instituto do Álcool
e do Açúcar, Instituto Nacional do Mate), empresas públicas de transportes
(Estrada de Ferro Central do Brasil, Lóide Brasileiro, Administração dos
Portos do Rio de Janeiro e do Pará) e os Institutos de Previdência Social
são todas instituições anteriores a 1945, e que já caracterizavam a tendência
da administração pública brasileira de criar mecanismos extraordinários
e paralelos à administração direta sempre que resultados mais imediatos
fossem realmente desejados. (5)
Em sua análise do período posterior a 1945, Lawrence Graham fala da existência,
no Brasil, de duas ordens distintas dentro do serviço público brasileiro:
uma legal, definida pelas normas centralizadoras e padronizadoras do DASP;
e outra "funcional", ou seja, adaptada às necessidades da política de clientela
dos partidos políticos dominantes. O resultado da interação destas duas
ordens, diz ele, "foi um sistema administrativo que se tornou crescentemente
formalístico, no qual a divergência entre as normas prescritas e o comportamento
humano aumentava progressivamente"(6) A estas duas ordens haveria que acrescentar uma terceira,
formada pelas autarquias, empresas estatais, grupos-tarefa, grupos executivos
e outras formas não convencionais de organização do serviço público que
eram as que os governos realmente utilizavam para a consecução de seus fins
mais importantes.
Na medida em que este processo ia se acentuando, o funcionalismo público,
submetido às normas administrativas gerais e centralizadas, ia sofrendo
um processo gradual de desmoralização, com os salários corroídos progressivamente
pela inflação, e com os funcionários admitidos pelo sistema de clientela
destruindo, pela sua simples presença, o que restava de um sistema de mérito
que havia sido tentado no passado. O sistema administrativo centralizado
tinha ainda uma grande desvantagem, que era a de inibir quase totalmente
a ação da administração pública em tudo o que fosse alem das atividades
meramente rotineiras. Em contraste, as unidades descentralizadas tinham
autonomia financeira, podiam fixar salários por valores competitivos com
o mercado privado, e ter a sensação de que desempenhavam uma função socialmente
útil.
É claro que este processo foi se dando de forma desigual, e com muitas idas
e vindas. Autarquias formadas, a principio, de forma descentralizada e com
bastante autonomia, terminaram revertendo aos controles rígidos e formalistas
da administração direta. Outros setores do governo foram capazes de manter
sua qualidade e competência, ao lado de um forte sentimento de lealdade
dos funcionários às suas instituições. É notória, por exemplo, a competência
do Ministério das Relações Exteriores em preservar os mecanismos de seleção
e promoção de seu pessoal, a partir de uma escola própria que proporciona
a seus funcionários uma base de conhecimentos e valores comuns. O Instituto
de Aposentadoria e Pensão dos Industriários é também um exemplo, talvez
menos conhecido, de um setor da administração que foi preservado do clientelismo
que imperou na maior parte do sistema previdenciário, e deu origem a uma
elite administrativa que teve grande impacto em todo o desenvolvimento do
sistema previdenciário do país. (7)
As forças armadas brasileiras, desde os anos 30 evoluíram progressivamente
no sentido da criação de um forte espírito corporativo e da afirmação do
princípio de profissionalização do militar. (8)
O Banco do Brasil e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico são outros
exemplos bastante citados.
Mas o fato de não existir, na realidade, uma "Ciência da Administração"
com maiúsculas, não é suficiente para explicar as razões das dificuldades
do serviço público brasileiro. Se a "administração científica" não funciona
como um corpo formado de conhecimentos, ela pode, no entanto, funcionar
como uma ideologia de legitimação de uma administração pública que extrai
sua competência de outras fontes. Assim parece ter ocorrido, por exemplo,
nos Estados Unidos, de onde as teorias da "administração científica" nos
vieram. Para esclarecer melhor a questão, é inevitável que discutamos um
pouco as idéias de um autor que é por muitos considerado como um dos principais
teóricos da administração racional no passado: Max Weber.
Segundo equívoco: a racionalidade burocrática (ou a má
leitura de Max Weber).
Autor de imensa obra, especialmente no campo da história social da religião,
da economia e do direito, Max Weber é conhecido entre nós principalmente
como o proponente de um modelo de burocracia racional. Weber tem um texto
famoso, em que dá uma lista bastante grande das características desta burocracia:
separação entre pessoa e cargo, regras escritas para todos os atos públicos,
neutralidade dos funcionários em relação ao conteúdo de seus atos, profissionalização,
etc.(9) A palavra "burocracia", neste contexto, não tem o sentido
negativo que ela veio a adquirir mais tarde. Ao contrário, a burocracia
para Weber representaria a forma mais eficiente e racional de exercício
do governo, se vista em comparação com outras formas de administração (como,
por exemplo, a de tipo patrimonial).
A má leitura de Weber consiste em considerar que seu "modelo" de burocracia
é uma receita para a organização da máquina burocrática; uma receita que,
bem aplicada, geraria a administração científica e técnica que tantos buscam(10).
Na realidade, o que Weber faz é dar as características "ideais" de uma administração
pública que existiria em um contexto social e político bem determinado;
ela não é, de nenhuma maneira, a forma mais eficiente e racional de organização
social para a realização de terminados fins; e, mais importante, ela não
pode existir no vazio, mas requer uma serie de condições externas bastante
específicas. Examinemos em primeiro lugar estas condições externas, para
depois voltarmos à questão da eficiência.
A burocracia moderna, para Weber, é a forma de organização do Estado própria
dos regimes que ele denomina de "dominação racional-legal", por contraste
a outras formas de dominação política (carismática e patrimonial). A dominação
carismática se carateriza por uma liderança pessoal extremamente forte,
e uma máquina administrativa dotada de intensa lealdade e dedicação de seus
membros. Neste sentido, é uma forma organizativa das mais eficientes. No
entanto, ela tem dificuldades em se organizar e se manter ao longo do tempo,
e de incorporar os procedimentos técnicos normais das grandes organizações.
Na dominação carismática, o que importa são sempre os fins, e nunca os meios
ou as formas de chegar até eles; a não ser quando as próprias formas e procedimentos
adquirem, elas mesmas, características ritualizadas e sagradas.
A dominação patrimonial (que é uma variante da chamada "dominação tradicional")
já permite a criação de grandes estruturas administrativas, procedimentos
bastante complexos de controle e prestação de contas, etc. Suas principais
características são, por um lado, a não separação entre o que é público
e o que é privado; e, segundo, o exercício de funções públicas por particulares.
São coisas parecidas, mas não idênticas. No primeiro caso, as pessoas governam,
cobram impostos, desempenham funções jurídicas, etc., em interesse próprio:
o coletor de impostos é sócio do governo, o prefeito explora as terras de
municipalidade e fica com parte dos lucros, os funcionários são "donos"
dos cargos que exercem, e estes cargos podem ser comprados, cedidos pelo
governo como parte de prêmios e honrarias, e mesmo transmitidos hereditariamente.
No segundo caso, são os nobres que armam seus camponeses para as guerras,
e que passam períodos regulares na corte a serviço dos reis.
A dominação racional-legal, ou burocrática, não é, para Weber, uma forma
de administração governamental "mais desenvolvida" ou "mais moderna" que
as outras, mas algo completamente distinto, baseado em premissas também
diferentes.
A mais importante destas premissas, de tipo político, é a subordinação do
sistema governamental e administrativo a um sistema de poder externo a ele.
De fato, o princípio fundamental da burocracia racional weberiana, enquanto
"tipo ideal", é que ele deva responder da maneira mais eficiente possível
ao governo, que por sua vez responde a um parlamento ou a um sistema político
partidário. Quando este princípio está em vigor, então fica claro que os
administradores não podem ter " interesses próprios" em suas ações. Eles
devem agir em função de mandatos políticos específicos, que tendem, em geral,
a adquirir forma de leis e regras escritas. São os corpos da ação dos administradores.
Hoje sabemos, pela experiência universal, que este aspecto legalista da
burocracia de tipo weberiano pode significar, muitas vezes, perda de eficiência,
formalismo, e a reversão para aqueles aspectos que deram má fama ao termo
" burocracia". No entanto, ele é inseparável do conceito original, como
característica central de uma administração realmente a serviço de uma ordem
política que define seus objetivos autonomamente.
Uma vez lançada esta premissa inicial, coloca-se a seguinte pergunta: como
conseguir que existam pessoas que se dediquem a esta atividade administrativa
e burocrática de forma intensa, honesta, competente e profissional? Na dominação
tradicional o burocrata se locupletava; na dominação carismática, ele depositava
sua Fé no líder. E agora?
A resposta e que a moderna burocracia consegue lealdade e dedicação da mesma
forma que as diversas profissões modernas o fazem: através do desenvolvimento
de uma ética profissional específica, vinculada a um sistema satisfatório
de gratificações materiais, e conduzindo a um reconhecimento social significativo.
Nesta perspectiva o administrador seria um profissional equivalente ao medico,
ou ao advogado: ele passaria por escolas próprias, seria membro de uma coletividade
relativamente restrita onde todos compartem a mesma cultura, teria um código
de ética e valores desenvolvido no seio desta coletividade e seu sucesso
profissional - sua promoção, suas responsabilidades, seu prestígio - dependeriam
de sua adesão a este código, combinado com um segundo elemento chave: a
competência. Pois, da mesma maneira que os outros profissionais, os administradores
deveriam ser capazes de dominar um conjunto bastante amplo de conhecimentos
úteis à tarefa administrativa, que tenderiam finalmente a se organizar como
uma "ciência administrativa" própria.
Este breve resumo das noções weberianas já permite entender uma questão
fundamental: não é a existência de uma ciência administrativa que permite
o surgimento de um serviço público digno e competente; ao contrário, é a
existência de condições políticas e sócio-culturais necessárias à dignificação
do serviço público que pode, inclusive, conduzir a tentativas de organização
de algo que poderia aproximar-se a uma "ciência administrativa". Entender
este ponto é fundamental para ver, com toda a clareza, como a simples introdução
de princípios de racionalidade no serviço público brasileiro, tentada anos
atrás através do DASP, jamais poderia levar aos resultados que se esperavam.
Algumas dificuldades da racionalidade burocrática
Na sua forma ideal, a burocracia weberiana nunca chegou a existir. Na realidade,
ela parece ser um modelo dotado de grande instabilidade, com várias dificuldades
que lhe são inerentes. A primeira foi prevista pelo próprio Weber, ou seja,
a tendência das burocracias em desenvolverem seus interesses próprios como
corporação, e assim deixarem de ser porta-vozes e agentes tão eficazes dos
governos. É claro que o desenvolvimento de uma etica corporativa própria
é fundamental para qualquer grupo social que pretenda manter altos seus
padrões de qualidade, desempenho e etica de trabalho. Ao mesmo tempo, no
entanto, isto pode levar a um excesso de poder por parte deste grupo, pela
criação de um sem número de regras e procedimentos administrativos que na
realidade só interessam a ele próprio. O exemplo mais típico disto são as
normas de sigilo que envolvem um grande número de atos administrativos,
e cuja principal função é proteger os administradores de uma avaliação mais
eficaz por parte dos partidos políticos e da opinião pública. A segunda
é a apatia, que transforma a ação formal e legal do administrador em comportamento
ritualista e desinteressado, e por isto ineficiente.
Esta dificuldade é acrescida de uma terceira, talvez ainda mais séria. A
complexidade crescente dos Estados modernos, e o aumento das funções que
este Estado desempenha, faz com que seja impossível continuar mantendo a
estrita separação que Weber supunha entre a elaboração das leis e sua execução.
Este princípio ainda hoje está presente na totalidade, ou quase, dos regimes
políticos democráticos. No entanto, é bastante claro que agências governamentais
responsáveis por uma serie de atos, da política social à política ambiental
e econômica, têm que tomar decisões pormenorizadas quase diárias, que trazem
um conteúdo político bastante óbvio, na medida em que beneficiam determinados
interesses em detrimento de outros. Enquanto isto, os órgãos políticos -
os partidos, os legislativos, etc. - dificilmente desenvolvem a competência
técnica específica para tomar as decisões políticas que muitas vezes são
deles esperados. Pela própria complexidade crescente do processo político,
eles tendem a se especializar nas questões mais diretamente político-partidárias,
ou seja, aquelas que têm repercussões mais diretas e visíveis sobre a distribuição
do poder na sociedade. Em outras palavras, a distinção entre o que é técnico,
formal ou administrativo de um lado, e o que é político e substantivo, por
outro, é hoje bastante obscura, e não há indicações de que tenderá a se
clarificar no futuro. Isto faz com que a burocracia acrescente à sua tendência
natural de defender seus interesses corporativos uma segunda característica:
a tendência a querer subtrair dos órgãos políticos a própria competência
decisória, em nome de sua maior capacitação técnica.
A busca de modelos alternativos
Já vimos que a resposta brasileira às dificuldades de organização do serviço
público tem sido, tradicionalmente, a criação de agências governamentais
insuladas e protegidas das regras e dos vícios do serviço público mais geral,
sejam os do formalismo daspiano, sejam os do clientelismo. Um total de 250
agências deste tipo foram criadas entre 1930 e 1977 pelo governo federal,
sendo 56 no período 1930-63 (com maiores concentrações nos períodos do Estado
Novo e de João Goulart) e 194 no período 1964 a 1977 (com maiores concentrações
no governo Geisel)(11).
A desconfiança que esta tendência revela de nossos governantes em relação
ao sistema administrativo centralizado é, assim, endêmica e independe de
regimes e ideologias políticas. No entanto, ela em geral não se explicita,
não surge como uma proposta de organização administrativa de tipo alternativo,
e por isto debilita ainda mais o serviço público tradicional, sem criar
normas adequadas para a administração e o controle deste sistema descentralizado
e crescente.
Existe, no entanto, um momento importante na história administrativa do
Brasil em que esta crítica é formulada com todas as letras e assume forma
de lei, ou seja, o decreto-lei 200, de 25.02.1977, na gestão de Hélio Beltrão
no Ministério do Planejamento. Existe uma palestra de 1965 do Ministro Hélio
Beltrão, publicada sob o título de "A Reforma Administrativa Federal", que
sintetiza bastante bem a crítica ao sistema anterior e as novas concepções
que seriam incorporadas na legislação.
Para Beltrão, as dificuldades do serviço público brasileiro provinham, basicamente,
da tendência à centralização e da idéia de que caberia à União a execução
direta de todos os atos administrativos importantes. A concentração dos
poderes nas mãos da União no lugar dos estados e municípios, a tendência
às leis e regulamentações minuciosas, a deterioração progressiva do sistema
de mérito eram vistos como outros fatores negativos a exigir solução. A
reforma proposta era, basicamente, no sentido de delegar ao máximo o poder
de decisão para os órgãos de linha, e preferir sempre a contratação de setores
e companhias privadas para a execução de suas políticas. Segundo este modelo,
os órgãos administrativos deveriam se limitar a funções quase que exclusivamente
normativas e de supervisão, enquanto que o setor privado passaria a ter
um papel cada vez maior em todas as ações realmente executivas do governo.
As duas premissas implícitas no projeto são, primeiro, a de que o Estado
é sempre um executor incompetente, e que o setor privado pode fazer o mesmo
que ele de forma mais eficaz e barata; e, segundo, que é impossível legislar
em detalhe a atuação dos órgãos de linha da administração pública. São premissas
que têm implicações importantes, e merecem discussão aprofundada.
A privatização do serviço público
Por que o setor privado seria mais eficiente do que o serviço público? A
resposta tradicional é que o setor privado está sujeito às pressões do mercado
competitivo, enquanto que o serviço público não sofre este tipo de restrições.
Albert Hirschman, em trabalho que se tornou clássico, mostra como existe
um mecanismo alternativo ao de mercado para aumentar a eficiência das instituições,
que é a voz e o protesto do público diretamente interessado em seu desempenho;
e mostra também como situações de monopólio podem produzir no setor privado
os mesmos problemas que parecem ser crônicos e típicos da administração
governamental(12). A crença na superioridade da administração
privada foi, certamente, um dos fatores que inspiraram o decreto-lei 200;
o outro foi o conhecimento das dificuldades quase insuperáveis de agir com
eficiência dentro do emaranhado de normas e formalismos que hoje existem
no serviço público brasileiro. Neste sentido, há algo de comum entre a orientação
privatizante deste decreto e a proliferação de empresas e fundações estatais
que ocorreram no Brasil nos anos seguintes.
Não que o decreto-lei 200 tivesse como intenção o crescimento do setor estatal,
muito pelo contrário. Mas, como o setor privado freqüentemente não tinha
a organização e a competência para a execução das tarefas mais técnicas
que o governo pretendia lhe atribuir, as únicas alternativas eram o recurso
a empresas privadas estrangeiras ou a criação de empresas nos moldes privados
mas com capital e controle públicos, e que pudessem agir sob a orientação
de um órgão normativo superior. Esta combinação de órgãos normativos superiores,
da administração direta, e órgãos executivos subordinados, organizados como
fundações ou empresas estatais, passou a ser adotada em muitos setores da
administração pública. Uma conseqüência inesperada foi que, na maioria das
vezes, as empresas executoras passaram a concentrar a maior parte da competência
técnica e dos recursos financeiros, esvaziando assim, na prática, as funções
de seus órgãos normativos, ou entrando em conflito com eles.
Um outro fenômeno que ocorreu foi o surgimento de um grande número de empresas
privadas que foram organizadas com a função quase que exclusiva de atender
aos contratos do setor público. Estas empresas tinham, em relação ao serviço
público, a vantagem da simplicidade operacional e da informalidade; por
outro lado, não participavam, realmente, de um mercado competitivo. O exemplo
mais importante talvez seja, aqui, o das grandes empreiteiras privadas,
criadas para a realização de grandes obras de engenharia. Com o tempo, elas
se transformaram em clientes dificilmente saciáveis de contratos públicos,
exigindo que novas obras fossem constantemente contratadas não tanto pelos
seus resultados, mas para manter ativo e empregado seu pessoal e seu equipamento.
É assim que a simplificação burocrática e a preferência pelo executor privado
acabou por gerar, como que pela porta dos fundos, um novo tipo de clientelismo,
talvez mais caro e potencialmente mais danoso que o anterior, que é o clientelismo
dos interesses particulares desenvolvidos à sombra do serviço público. Este
problema está ligado a um outro princípio básico da reforma de 1967, que
o da descentralização das decisões.
A questão é bastante complexa, na realidade. Por uma parte, toda a experiência
brasileira e internacional mostra que nenhum governo é capaz de manter centralizadas
as decisões, principalmente na área de política social e econômica, sem
cair no formalismo, na rigidez e na ineficiência. Por outra, a delegação
da autoridade decisória para os níveis inferiores da burocracia pode significar,
na prática, uma renúncia à capacidade de ação política dos governos. Idealmente
- no modelo weberiano - só haveria delegação da execução, nunca das decisões
enquanto tais, que seriam privativas dos órgãos políticos do governo. Na
prática, muitas vezes os órgãos políticos não têm a capacidade operacional
e técnica de tomar as decisões, e por isto as delegam para os órgãos executivos.
No Brasil, isto significa, de fato, passar muitas decisões aos órgãos normativos,
e destes aos órgãos executivos, organizados freqüentemente como empresas
públicas, e até mesmo como empresas privadas. Uma discussão bastante critica
desta política de descentralização das decisões nos Estados Unidos, que
teve grande repercussão anos atrás, levou à proposta de uma nova centralização
da administração pública daquele país. (13)
No Brasil, vários críticos já têm chamado a atenção para a coalizão de interesses
que se estabelece entre órgãos descentralizados da burocracia e grupos privados,
que terminam por serem totalmente impermeáveis a tentativas de mudança de
política vindas de cima. (14)
Um último aspecto da privatização do serviço público a ser mencionado é
o insulamento das empresas estatais em relação ao mercado. Como vimos anteriormente,
a tendência histórica no Brasil tem sido a de insular certos setores da
administração dos problemas do formalismo e clientelismo próprios da administração
direta, e uma das formas disto tem sido a criação de empresas estatais que
teriam a vantagem de participar competitivamente do setor privado. Os níveis
de salário destas empresas, por exemplo, deveriam ser competitivos com os
do mercado, e isto explicaria os altos salários de seus executivos, e os
bons níveis de remuneração dos técnicos. Estas empresas também deveriam
visar o lucro, que seria um dos principais parâmetros de seu desempenho.
Se a expansão da economia no início dos anos 70 permitiu o florescimento
deste tipo de empresas, os anos 80 mostram que elas tenderam a se insular
cada vez mais do setor privado, e a buscar um status especial dentro
do setor público. As vantagens que elas ofereciam a seus funcionários nos
anos de expansão - bons salários, estabilidade, benefícios secundários de
vários tipos - passaram a se constituir em privilégios em uma economia em
estagnação ou recesso. A lucratividade empresarial raramente é utilizada
como critério efetivo de avaliação, já que existem sempre razões políticas
e sociais que ditam as decisões de investimento, custos, etc. E, finalmente,
concessões especiais de credito, monopólios e isenções fiscais fazem dos
custos e da lucratividade destas empresas algo bastante fictício de um ponto
de vista de mercado. Agora, estas empresas que haviam sido criadas fora
do serviço público centralizado para proporcionar ao Estado maior agilidade,
eficiência e economia passaram a ser apontadas como as principais responsáveis
pelos grandes gastos, pela ineficiência e pelos privilégios indevidos da
burocracia governamental.
Em busca de uma solução
Na perspectiva de hoje, pareceria que todas as soluções foram tentadas,
e que nenhuma realmente funcionou, no sentido da criação de uma administração
pública mais eficiente, competente e dignificada. Na realidade, existe hoje
um obstáculo óbvio para qualquer tentativa que se faça para a melhoria do
serviço público brasileiro, que é ser ele um grande empregador e contratador
de serviços, que não pode ser reduzido sem levar a problemas sociais de
curto prazo bastante graves. Mais do que um expediente político, o empreguismo
no setor público é hoje, no Brasil, um fator de atenuação do impacto mais
imediato da crise econômica sobre um grupo de interesse relativamente bem
articulado e politicamente ativo, que são os funcionários e os empregados
das empresas estatais.
Isto, entretanto, não bastaria. Não é suficiente eliminar do serviço público
os mais incompetentes ou seus setores mais ineficientes e caros. É bastante
provável - faltam dados a este respeito, que seria importante conseguir
- que uma boa parte destas pessoas sejam ou tenham se tornado obsoletas
do ponto de vista profissional, pelo tempo passado sem um trabalho tecnicamente
competente, pelo isolamento, pela própria idade. Qualquer programa de diminuição
do peso da máquina administrativa governamental deveria ser combinado com
um trabalho intenso de avaliação e reciclagem das pessoas com potencialidade
para se transferirem para o setor privado, e com mecanismos adequados de
apoio aos que já não podem fazer esta passagem.
Mas o ideal conservador norte-americano, de uma administração pública a
mais econômica e reduzida possível, que pudesse dar apoio a um setor privado
cada vez mais pujante e independente, parece afastar-se cada vez mais da
realidade nos próprios Estados Unidos, e não ter muito a ver com sociedades
como a nossa, que têm uma longa tradição de participação do Estado em amplos
setores da vida social. Basta pensarmos em dois setores de grande importância,
a educação e a previdência social, para darmo-nos conta disto.
Os países europeus viveram durante muitos anos o dilema da educação pública
vs. educação privada. A educação pública aparecia na visão de seus proponentes
como educação igualitária, universal, agnóstica e democrática; a educação
privada era, sobretudo, reivindicada pela Igreja, e baseada na idéia de
que as famílias deveriam ter o direito de dar a seus filhos a educação que
mais lhes conviesse, livres da tutela do Estado. A maioria dos países desenvolveu
um sistema educacional duplo, ou seja, com um amplo setor público e um setor
privado mais restrito, proporcionando uma educação de elite. Com o tempo,
no entanto, as escolas privadas de elite passaram a depender cada vez mais
de apoio público, e hoje é muito difícil, se olharmos por exemplo o cenário
educacional norte-americano, nos lembrarmos de que as universidades de Harvard,
Stanford e Yale são privadas, enquanto que a de Berkeley é pública. No Brasil
a questão do ensino privado têm sido não a da liberdade do ensino privado
e religioso, mas a da subvenção pública ao ensino realizado privadamente.
A discussão tem muitos pontos de semelhança com a da ação administrativa
direta ou indireta, que examinamos anteriormente: os defensores do ensino
privado argumentam que o Estado é mau professor, que custos educacionais
públicos são excessivamente altos, que seria mais econômico, eficiente e
democrático distribuir os recursos educacionais para as escolas privadas,
tanto ao nível secundário quanto ao superior.
Os argumentos contrários são bastante conhecidos. É claro, por exemplo,
que o ensino superior público é, geralmente, de muito melhor qualidade do
que o privado, no caso brasileiro. Não existem mecanismos que garantam que
a atividade empresarial na área do ensino não se transforme em simples indústria,
desinteressada do conteúdo e da qualidade do aprendizado. Os professores
do ensino privado são explorados, trabalham muito, ganham pouco, não têm
direitos de associação e participação na vida de suas instituições.
O que esta discussão revela é que não se está debatendo, na realidade, se
o Estado deve ou não participar da educação, e sim a forma desta participação.
Ela revela também que, se a execução direta da tarefa educativa pelo Estado
traz problemas, sua transferência de forma subsidiada ao setor privado não
é nenhuma garantia de melhor desempenho.
O caso dos serviços de saúde têm um certo paralelismo com o da educação.
A organização profissional dos médicos na forma de uma profissão liberal,
com liberdade de escolha por parte dos pacientes e liberdade de preços por
parte dos médicos, proporcionou durante bastante tempo um atendimento medico
privado de qualidade bastante razoável, para o público com condições de
pagá-lo. O aumento dos custos da medicina e a ampliação do atendimento medico
a amplas camadas da população com pouco poder aquisitivo levaram em um primeiro
momento à criação de um sistema de atendimento medico como parte integrante
do serviço público, que pouco depois passou a se exercer na forma de contratos
com o setor privado. Ainda aqui, os argumentos são semelhantes aos de outros
setores. A medicina pública seria desnecessariamente cara, burocratizada,
e além de tudo totalitária, por eliminar a liberdade de escolha do paciente.
A contratação dos serviços privados garantiria a manutenção da medicina
como profissão liberal, manteria os custos reduzidos e asseguraria a liberdade
dos pacientes.
Na prática, sabemos que as coisas não funcionaram desta maneira. O subsídio
indiscriminado à medicina privada permitiu uma escalada aparentemente incontrolável
dos custos médicos, sem muita possibilidade de se distinguir onde terminam
as exigências técnicas da boa prática profissional e onde começam os abusos
e a corrupção pura e simples. A medicina, tanto quanto a educação, não pode
reverter à condição de atividade privada, a não ser em um pequeno número
de casos, e para uma minoria da população. E a simples subvenção pública
à atividade privada tira dela um de seus principais elementos de controle
de qualidade, que e o cálculo de custos do usuário, que por sua vez pressiona
o provedor dos serviços para proporcionar aquilo que os clientes - ou alunos
- realmente querem.
Os exemplos da educação e da medicina também servem para lembrar que o serviço
público requer hoje uma gama extremamente variada de competências, e que
não é possível mais pensar em formar um tipo universal de "administrador
público" que pudesse ser depois distribuído pelos diversos setores da máquina
governamental.
Se isto é verdade, pareceria que a única maneira de aumentar a competência
e a dignificação do serviço público seria através de um esforço sistemático
de dotar os diversos setores especializados da administração pública de
uma formação adequada, um sentido de missão e responsabilidade pública e
de formas adequadas de remuneração que sejam especificas para cada caso,
e compatíveis com ambiente social mais geral. É claro que isto é fácil de
dizer, mas difícil de executar. No entanto, não é impossível, desde que
algumas condições mais gerais sejam buscadas:
a) Há que haver uma decisão política sobre cada uma das áreas da administração
pública a ser desenvolvida. Não basta uma decisão genérica, como tantos
projetos e leis de reformas administrativas do passado.
b) Uma vez tomada a decisão sobre a área a ser desenvolvida, ela deve ser
submetida a um processo de avaliação aprofundado, que não pode, naturalmente
ser entregue aos próprios interessados pelas formas administrativas existentes.
c) Ao atacar-se uma área por vez é possível fazer remanejamentos, transformações
organizacionais, transferências de pessoal, etc., que seriam impossíveis
de realizar em programas de reforma administrativa global.
d) Especial atenção deve ser dada aos centros de formação e treinamento
dos funcionários de cada área. Existe uma tendência de os diversos setores
da administração desenvolverem suas próprias escolas superiores, nos moldes
da Escola Rio Branco, do Itamarati. O perigo, no entanto, é que estas escolas
ministeriais se isolem do mundo universitário e acadêmico, e terminem por
proporcionar um conhecimento de segunda classe. Parece mais adequado fazer
com que os diversos setores especializados da administração pública desenvolvam
relações intensas com instituições universitárias de graduação e pós-graduação,
proporcionando elas mesmas, eventualmente, cursos mais específicos.
e) Finalmente, é necessário dar ao funcionário público um sistema de salários
adequado. Isto significa, obviamente, que seu nível de salários, possibilidades
de promoção e desenvolvimento pessoal não sejam significativamente inferiores
ao do setor privado. Ao mesmo tempo, no entanto, eles não podem ser tão
altos que coloquem o funcionário em uma situação de intangibilidade e irremovibilidade.
Um dos fenômenos perversos, e pouco notados, de insulamento recente das
empresas públicas foi o da esterilização precoce de jovens técnicos contratados
em início de carreira por salários muito acima dos valores do mercado, e
que depois ficaram sem condições, quer de promoção e melhoria em sua empresa,
quer de recomeçar suas carreiras a partir de patamares mais baixos.
Em resumo, o serviço público, para ser realmente dignificado, têm que deixar
de ser um simples emprego, uma simples sinecura, ou a venda de um serviço,
para recuperar seu sentido de missão. Isto pode ser feito, desde que haja
uma vontade política para tal, e desde que nos livremos dos velhos conceitos
e preconceitos da "administração científica" por um lado, e da maldade inerente
ao setor público, por outro.
A questão da "decisão política" é crucial, e nos traz de volta ao tema da
relação entre a abertura política e a dignificação da função pública.
Antes de mais nada, uma "decisão política" não pode significar hoje, simplesmente,
um ato de governo, mas uma decisão tomada com a participação de amplos setores
da sociedade, através de seus órgãos representativos, sindicatos, associações
profissionais, etc. É necessário que o esforço de valorização do serviço
público não seja visto e apresentado como um simples ato técnico, mas como
algo que realmente busque atender os interesses de toda a coletividade,
e do qual ela participe e esteja informada. Segundo, a participação social
em um "ato político" desta natureza não pode se dar somente ao nível das
organizações políticas formais - os órgãos legislativos, os governos estaduais
e municipais, etc. - mas também através de grupos e instituições sociais
que tenham interesse direto no setor administrativo a ser mobilizado. O
modelo democrático clássico, pelo qual o controle político do governo se
fazia somente pelo sistema eleitoral e pelo legislativo, já não se sustenta.
Ainda que as decisões mais gerais e cruciais devam ser tomadas neste nível
mais alto, é impossível discutir e agir na área do planejamento urbano,
por exemplo, sem tomar em conta as opiniões e os interesses das associações
de moradores e dos profissionais de arquitetura e urbanismo que tenham condições
de contribuir. A administração pública hoje em dia tem que estar sujeita
ao controle social e político pelos dois extremos, e é este controle que
lhe dá, também, legitimidade para resistir aos embates inevitáveis do clientelismo
eleitoreiro.
A abertura política pode, em resumo, trazer em seu bojo os mecanismos mais
fundamentais para a real dignificação do serviço público no país, livrando-o
da pecha de "tecnocrata", evidenciando sua importância para todos os setores
da sociedade, e fazendo com que ele consiga se preservar do uso meramente
particularista e privado. Não existe, certamente, fórmula mágica para dar
ao Brasil, amanhã, o serviço público de qualidade que o país nunca chegou
a ter. Mas existem caminhos razoavelmente claros de melhoria, a serem seguidos.
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Notas
1. A intensificação do uso da administração pública como
moeda política é bem evidenciada por Wanderley Guilherme dos Santos em The
Calculus of Conflict (ver referências completas na bibliografia).
2. Extraído de "A modernização do Estado", em Estado
Novo, um Auto-Retrato, p. 48-9.
3. O aspecto predominantemente ideológico das idéias
de Taylor é analisado com profundidade no trabalho de R. Bendix, Work
and Authority in Industry. Randall Collins faz uma análise semelhante
quanto ao conteúdo dos cursos de administração de empresas nos Estados Unidos.
A importância dada a Taylor e Fayol pelos teóricos da "administração pública
científica" no Brasil é bem documentada por Lawrence Graham.
4. Civil Service Reform in Brazil, p. 186 (a tradução
é nossa). O trabalho mais abrangente sobre o tema é, possivelmente, o de
Beatriz M. de Souza Wahrlich, publicado quando este texto já estava pronto.
5. Não deixa de ser curioso observar que, apesar de o
DASP justificar sua criação pela necessidade de planejamento e racionalização
da ação econômica do Estado, é exatamente na esfera da ação econômica que
é criada a maioria das agências administrativas paralelas.
6. Graham, p. 158.
7.7Sobre a importância histórica do IAPI, veja o estudo
de James M. Malloy sobre o sistema previdenciário brasileiro, entre outros.
8. As principais análises deste processo são as de Alexandre
Barros, Edmundo Campos Coelho e José Murilo de Carvalho.
9. O texto sobre burocracia faz parte de uma antologia
de Weber publicada nos Estados Unidos em 1946 e que teve ampla difusão,
sendo inclusive traduzida no Brasil. Trata-se da antologia editada por Hans
Gerth e C. W. Mills.
10. É um erro no qual não incorreu Alberto Guerreiro
Ramos, que em 1946 publicou um excelente sumário da sociologia weberiana,
a partir da publicação da tradução espanhola de Economia e Sociedade. Para
Guerreiro Ramos, longe de ser um receituário, a sociologia weberiana deveria
se constituir em instrumento para fazer com que "a técnica da administração
adquira a consciência de suas relações estruturais com os demais departamentos
do todo político-social e, desse modo, possa intervir no processo social,
não com expedientes perturbadores, mas colaboradores e ate estimuladores
daquelas forças de cuja libertação depende a realização mesma das potencialidade
representativas de uma época" ("A Sociologia de Max Weber", p. 139).
11. Dados apresentados por Edson Nunes e Bárbara Geddes,
a partir de informações originalmente organizadas por Wanderley Guilherme
dos Santos.
12. O texto de Hirschman tem também tradução brasileira.
13. Trata-se do livro de Theodore Lowi, The End of
Liberalism.
14. Fernando Henrique Cardoso cunhou a expressão "anéis
burocráticos" para caracterizar este tipo de coalisões.
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