Dezembro, 1996

Legitimidade, Controvérsias e Traduções em Estatísticas Públicas

Simon Schwartzman

Versão revista de trabalho apresentado na reunião conjunta da Sociedade de Estudos Sociais da Ciência e Associação Européia para o Estudo de Ciência e Tecnologia, Bielefeld, Alemanha, 10-13 de Outubro, 1996, sessão sobre "A Sociologia das Estatísticas Públicas", organizada pelo Comitê de Pesquisa sobre a Sociologia da Ciência e Tecnologia da Associação Sociológica Internacional. Publicado em Teoria & Sociedade (Revista dos Departamento des Ciência Política e de Sociologia e Antropologia, Universidade Federal de Minas Gerais), vol. 2, dezembro 1997, 9-38. Publicado em inglês em Science, Technology & Society 1999, 4, 1, Jan-June, 1-34


Sumário:

Estatísticas Públicas

Fontes de Legitimação e Credibilidade

Um estudo de caso: o IBGE no Brasil

Traduções e Controvérsias
Tradução I - Da pesquisa empírica aos direitos legais

Tradução II - Das preocupações sociais para a pesquisa estatística
Conclusão: a sociologia da ciência e o futuro das estatísticas públicas

Referências Bibliográficas

Notas



Estatísticas Públicas

"Estatística pública", ou "estatística oficial", refere-se à informação estatística produzida pelas agências estatísticas do governo – órgãos de recenseamento, departamentos de estatística e instituições semelhantes. Elas são de especial interesse para o sociólogo de ciência porque elas são produzidas em instituições que são, simultaneamente, centros de pesquisa, envolvendo, portanto, valores científicos e tecnológicos, além de perspectivas e abordagens típicas dos seus campos de investigação – e instituições públicas ou oficiais sujeitas às regras, valores e restrições do serviço público. Os seus produtos – números relativos a população, renda, produto nacional, urbanização, emprego, natalidade, e muitos outros – são publicados na imprensa, utilizados para apoiar políticas governamentais e avaliar os seus resultados, e podem criar ou limitar direitos e benefícios legais e financeiras para grupos, instituições e pessoas específicas. Essa pluralidade de papéis, contextos e perspectivas associadas às estatísticas públicas está na própria origem deste campo.

Alain Desrosières, que escreveu extensamente sobre o assunto, mostra como as estatísticas modernas emergiram de pelo menos duas grandes tradições, uma originária da Alemanha e a outra da Inglaterra. A tradição alemã é essencialmente descritiva, taxionômica e preocupada em prover o governo com a informação necessária para administrar seu Estado. A associação entre estes dois termos, "Estado" e "Estatística", não é fortuita. O nascimento da estatística alemã é assim resumido por Desrosières:
Ela apresenta ao príncipe ou ao funcionário responsável um quadro para a organização das informações multiformes disponíveis sobre um Estado, ou seja, uma nomenclatura dotada de uma lógica de inspiração aristotélica. Essa forma foi codificada, por volta de 1660, por Cornring (1606 - 1681). Ela foi transmitida mais tarde, ao longo de todo o século XVIII, pela Universidade de Gottingen e sua "escola estatística", notadamente por Achenwall (1719-1772), reconhecido como o criador da palavra "estatística", e depois por seu sucessor na cadeira de estatística, Schlözer (1735-1809). Este último, autor de um "Tratado de Estatística" traduzido para o francês em 1804 por Donnant (que tornará conhecido esse modo de pensar alemão dentro da França no início do século XIX), foi o primeiro dessa corrente a recomendar a utilização de números precisos em vez de indicações expressas em termos literários, sem no entanto o fazer com freqüência ele próprio. Uma formulação de Schlözer é significativa da tendência predominantemente estruturalista e sincrônica da estatística alemã: "A estatística é a história imóvel, a história é a estatística em marcha" (Desrosières, 1993, p. 30).
Desrosières liga a tradição britânica, conhecida no passado como "aritmética, política", ao papel relativamente pequeno do Estado naquele país, em comparação a outros grupos sociais e instituições. Estes grupos e instituições necessitavam de indicadores precisos para objetivos específicos, e desenvolveram métodos de mensuração por amostragens e estimativas indiretas, aproximando a estatística da matemática. Os estatísticos ingleses, diz ele,
"Não são teóricos universitários que edificam uma descrição global e lógica do Estado em geral, mas sim pessoas de origens diversas que forjam saberes práticos dentro de suas atividades e que as propõem ao "governo". {...} Assim se esboça um papel social novo: o do especialista de competência específica que propõe técnicas aos governantes, procurando convencê-los de que, para realizar seus desígnios, eles devem recorrer a ele. Eles oferecem uma linguagem precisamente articulada, enquanto que os estatísticos alemães, identificando-se ao Estado, propõem uma linguagem geral abrangente." (P.30).
Esta breve referência ao nascimento da estatística é suficiente para mostrar as ligações que existiam entre métodos e abordagens estatísticas e as condições sociais de seu surgimento. Como muitos outros campos do conhecimento, a estatística pública tinha que obter legitimidade aos olhos de seus patrocinadores, e para isso tinha que se estabelecer como uma disciplina científica confiável e como um empreendimento prático. Um dos insights mais interessantes da sociologia da ciência é que o que é comumente conhecido e entendido como "ciência" e "tecnologia" não passam de segmentos de redes muito mais amplas de pessoas, instituições, instrumentos, equipamentos e da própria natureza. Um computador pessoal (um dos exemplos desenvolvidos por Latour, 1987), liga acadêmicos, físicos e matemáticos, engenheiros, fabricantes de hardware e software, escritórios de patentes, comitês de normas, agências de marketing, lojas, redes de assistência técnica e usuários de todos os tipos; e depende das propriedades físicas e da disponibilidade de semicondutores e de uma ampla gama de matérias-primas. As pessoas localizadas em uma das extremidades desta cadeia geralmente não entendem o que as outras pessoas estão fazendo na outra extremidade, o que significa que existe um trabalho constante de tradução acontecendo entre atores adjacentes. Fabricantes de aplicativos têm que entender as possibilidades e limitações dos sistemas operacionais que dependem de hardware, que por sua vez depende das propriedades físicas dos materiais que podem ser produzidos pela indústria. Na direção oposta, os usuários têm que entender a linguagem dos programadores (os quais, por sua vez, se esforçam por traduzir os seus dispositivos em termos de linguagens naturais ), e os vendedores têm que antecipar as necessidades dos compradores. Uma vez no lugar, essas cadeias afetam a maneira pela qual o trabalho é organizado em escritórios e empresas, influenciam os currículos das escolas, e introduzem mudanças no mercado de trabalho. Essas cadeias nunca são criadas linearmente, seja de cima para baixo (uma teoria conceptual levando a um modelo experimental, que leva a um produto testado, que leva a um desenvolvimento posterior e à sua comercialização no mercado, e daí por diante) ou de baixo para cima (a demanda do consumidor levando a um produto, que leva a pesquisa, que leva a novos conceitos e teoria). A inovação pode ter lugar em qualquer dos elos, a qualquer momento, sendo comuns impasses e fracassos brilhantes ao longo de toda a cadeia (David, 1992; Latour, 1993; Gibbons e outros, 1994). Ao final, para parafrasear Bruno Latour, não é necessariamente o melhor produto, teoria ou tecnologia que se estabelece; ao invés disso, é o produto, teoria ou tecnologia que se estabelece que se torna o melhor, não apenas porque é o "vencedor", mas porque ele irá se beneficiar de investimentos crescentes de todas as partes envolvidas. Uma das mais extraordinárias características da sociedade moderna é o estabelecimento de tais redes, o que não é necessariamente um procedimento pacífico e inofensivo, como se pode ver na expansão da ciência e tecnologia ocidental para o resto do mundo. No entanto, uma vez estabelecidas, essas redes geram benefícios crescentes para todos os participantes, forjando alianças que parecem crescer sem limites ou barreiras.

Um quadro semelhante de redes, traduções e alianças pode ser utilizado para descrever um procedimento estatístico já bem estabelecido, seguido por uma agência pública de estatística. Tomemos como exemplo os índices de custo de vida, quase universalmente utilizados para medir inflação, para estabelecer políticas de renda e para avaliar as perspectivas de uma dada economia. Para o economista, os preços estão ligados a uma série de conceitos tais como investimento, consumo, padrões de poupança, taxas de câmbio, produtividade, taxas de juros, etc. Vários desses conceitos são utilizados pelos governos nos seus esforços de controlar e dirigir a economia, e para servir de base a tomadas de decisão por atores privados com relação a investimentos, consumo e emprego. Sindicatos utilizam os índices de custo de vida para estabelecer metas para suas negociações, e partidos políticos os usam para organizar campanhas em favor ou contra governos. Para a imprensa, os índices de custo de vida podem ser um assunto "quente" para seus leitores, especialmente se eles puderem ser facilmente interpretados em termos de suas expectativas pessoais e da imagem do desempenho de autoridades públicas.

Indo na direção oposta da cadeia, os conceitos do economista são traduzidos por estatísticos em uma série de procedimentos para medir variações no índice. Eles incluem a identificação de itens e setores que deverão ser monitorados (bens de consumo, bens duráveis, bens de capital, serviços), o seu peso relativo, baseado nos padrões de consumo de grupos específicos (trabalhadores, classe média, segmentos mais pobres da população), e sua distribuição no espaço geográfico. Amostras de informantes, regiões e produtos devem ser estabelecidas, limites aceitáveis de erro são definidos, e são criados mecanismos permanentes para a coleta e processamento de dados. Estas duas últimas tarefas vão além do escopo de trabalho do estatístico, e incluem outros atores no processo. Os dados podem ser coletados por firmas especializadas, trabalhadores temporários ou staff permanente, que estabelecem suas próprias rotinas para ir a campo e trazer os dados. O processamento de informação é realizado por especialistas em computação, que tomam decisões acerca do equipamento a ser utilizado, o software adequado, os prazos e os formatos para o processamento e disponibilização das informações

Descrições semelhantes podem ser feitas a respeito de outros tipos de indicadores tais como emprego, níveis de pobreza, previsões de safras, produção industrial, comércio internacional, padrões de migração, crescimento populacional, renda nacional e distribuição de renda.(1) Para manter a analogia com o computador pessoal, todos os atores teriam problemas se eles tivessem que lidar com produtos diferentes e incompatíveis – PCs da IBM, Machintosh e Amiga – ou três diferentes índices de emprego e inflação e dois diferentes valores de renda per capita. Sempre que uma cadeia tecnológica atinge a escala de mercados de consumo de massa, a tendência é de um produto ou padrão industrial prevalecer, enquanto que os outros ou desaparecem ou encontram nichos especiais de usuários e aplicações.

Fontes de legitimação e credibilidade

Esta lógica de padronização explica a inquietude criada sempre que números ou informações conflitantes são apresentados para descrever ou quantificar "realidades" presumivelmente idênticas. Instituições estatísticas internacionais, tais como a Comissão de Estatística das Nações Unidas, Eurostat e outros órgãos regionais, dedicam a maior parte de seus esforços à busca de padrões para unificar e tornar compatíveis os dados produzidos por diferentes países. As agências estatísticas nacionais querem que seus dados sejam aceitos dentro de seus próprios países e pela comunidade internacional, e reagem sempre que números ou indicadores discordantes são apresentados por outras instituições nacionais ou organizações internacionais. Os jornais reclamam e falam de "confusão" sempre que diferentes números aparecem. Os governos, naturalmente, não ficam satisfeitos quando os números que utilizam para estabelecer suas metas e avaliar seus resultados são confrontados com informação divergente. A padronização conceptual e empírica é sempre um processo muito complicado, caro e incerto. A ironia disso é que, no final das contas, todas as partes envolvidas estão comprometidas com a noção de que eles estão falando sobre a mesma "realidade" que já estava lá desde o começo, fazendo com que fique muito difícil explicar porque então custa tanto chegar até ela.

Seria de se esperar desta confluência de interesses que as estatísticas públicas fossem naturalmente evoluir na direção de uma unificação em termos de padrões bem estabelecidos, deixando pouco espaço para controvérsias e disputas. Isso não é assim tão simples, no entanto, uma vez que sempre que uma agenda de pesquisa é definida e uma seqüência de procedimentos é estabelecida, outros são rejeitados, e alguns interessados ficam insatisfeitos. A agenda de órgãos públicos de estatística é estabelecida a partir de uma combinação de requisições do governo, demandas sociais, conceitos desenvolvidos por economistas, demógrafos e cientistas sociais, e metodologias desenvolvidas e testadas por estatísticos. Agencias internacionais, tais como os órgãos estatísticos regionais e especializados das Nações Unidas, o Eurostat, o Banco Mundial, a Organização Internacional do Trabalho e instituições semelhantes, desempenham um papel muito importante no estabelecimento desta agenda, definindo padrões de comparação e suprindo os órgãos de estatística no mundo inteiro de treinamento técnico. Apesar dessa constante pressão na direção à padronização, um exame das práticas atuais irá mostrar uma ampla gama de variações no modo como os órgãos de estatística respondem às demandas de seus diferentes clientes e comunidades profissionais.(2)

Existem muitas razões para se resistir à padronização. Na sua forma mais simples, a questão envolvida é a de quem irá obter os recursos ou os contratos para realizar o trabalho. Se os números produzidos por uma instituição são adotados por todos, essa instituição irá conseguir os recursos e o apoio para continuar seu trabalho, enquanto outras irão se eclipsar. Mas as conseqüências podem ser muito mais extensas, uma vez que, por exemplo, diferentes estimativas de distribuição de renda poderiam levar a diferentes políticas de investimento e de alocação de recursos por parte dos governos. As razões pelas quais tais conflitos não permanecem irresolvidos para sempre são as mesmas que explicam porque outros conflitos sociais no final acabam sendo superados: a longo prazo, os ganhos coletivos de sistemas estabilizados tendem a ser maiores do que os benefícios privados obtidos através de conflitos alimentados por longo tempo. Conceitos estatísticos e dispositivos técnicos desempenham importantes papéis no processo de estabilização da interação social, um "papel moral" que não é imediatamente visível a partir de seus aspectos técnicos, enganosamente simples.(3)

Como se poderia esperar, os órgãos de estatística se esforçam por manter suas informações estáveis, incontroversas e tecnicamente bem fundamentadas. Um expediente simples é a utilização de números. Na sociedade moderna, se você pode se expressar em números, sua credibilidade aumenta (Porter, 1995). O problema é quando os números são instáveis ou conflitantes. Ivan Fellegi, Estatístico-Chefe do Canadá e uma personalidade dominante no seu campo, insiste, em um artigo recente, que "os valores centrais dos sistemas estatísticos eficazes são a legitimidade e a credibilidade" (Fellegi, 1996). Governos autoritários podem definir quais devam ser os números oficiais, mas a questão é se alguém irá acreditar neles (isso nos lembra os 99% de votos sempre conseguidos por candidatos oficiais em eleições na ex-União Soviética). A credibilidade, assim, é um componente essencial para a aceitação e adoção de padrões e procedimentos uniformes. Mas quais são as origens da credibilidade; de onde ela vem?

A informação confiável é, desde logo, aquela que vem de uma instituição confiável, que não esteja identificada como a serviço de um grupo de interesse ou ideologia específica (Fellegi se refere, no artigo mencionado acima, à "objetividade não-política"). A credibilidade das instituições públicas depende muito da cultura política de cada país. Por exemplo, instituições públicas na Alemanha ou França são tidas como confiáveis, enquanto instituições semelhantes nos Estados Unidos (4) ou no Brasil nunca podem contar com sua credibilidade como coisa garantida.

Outra fonte de credibilidade é a técnica e científica. A informação é aceita como confiável se ela é fornecida por pessoas ou instituições com um forte perfil científico e técnico. Isso é um paradoxo curioso, uma vez que as ciências empíricas são dominadas por controvérsias e descobertas provisórias, experimentais, probabilísticas e mesmo contraditórias, ao invés de o ser por uma lógica sólida, evidências e demonstrações, como muitas vezes se propala. A coisa se torna ainda mais complicada pelo fato de que a produção de estatísticas públicas não é limitada a uma única disciplina, ou seja àquela do estatístico. As equipes dos órgãos de estatística são compostas por economistas, cientistas sociais, analistas de programas, estatísticos e matemáticos, cada um com sua própria cultura profissional, inclinações e preferências. Além de suas diferenças de origem, esses diferentes grupos mantêm ligações com suas comunidades profissionais, e disputas por espaço e precedência profissional tendem a ocorrer. Ajuda quando se pode argumentar que uma disciplina é central, e responsável por manter a coerência e a integridade do todo. A introdução de contas nacionais e a elaboração de matrizes de input-output na maior parte dos institutos de estatística deu aos economistas um papel proeminente, pareceu oferecer uma lógica para o sistema como um todo e o ligou a outra imagem importante, aquela do planejamento econômico (Fourquet, 1980). À medida que a força da imagística do planejamento diminuía, esse argumento perdeu muito de sua força, sendo substituído pela busca de outro referencial disciplinar, aquele da própria estatística como uma disciplina abrangente que tudo cobre.

Uma outra fonte de credibilidade é a estabilidade e a consistência. Números produzidos sempre de acordo com os mesmos procedimentos são mais facilmente aceitos do que aqueles que variam dependendo de diferentes metodologias, conceitos e procedimentos.(5) Instituições organizadas para defender os interesses de grupos específicos são menos confiáveis do que aquelas tidas como independentes, pelo menos para os outros setores da sociedade. Um centro de pesquisa financiado pela indústria do cigarro terá dificuldades em ganhar aceitação para resultados que mostrem que o fumo passivo é inofensivo. As instituições de pesquisa associadas a organizações de classe terão muita dificuldade em convencer os outros de que seus números para desemprego e custo de vida são os melhores. Para ganhar credibilidade, elas devem tentar se desvincular dos setores que as apoiam, e elevar suas credenciais científicas e técnicas.

Outros fatores, relacionados mais especificamente à natureza dos dados, podem influenciar a credibilidade de estatísticas públicas. Sempre que os dados afetam interesses específicos (como os índices de preço ao consumidor, quando utilizados para corrigir salários ou pensões pela inflação, ou números relativos à população e que afetem a distribuição de receitas derivadas de impostos, subsídios ou rateios eleitorais), eles tendem a ser questionados; se o setor afetado é limitado, o qüestionamento é provavelmente menos ameaçador do que quando toda a sociedade é afetada. Pesquisas avulsas tendem a ser questionadas com mais freqüência que os resultados de práticas estatísticas permanentes e continuadas; dados a respeito de práticas ilegais ou "ocultas", tais como evasão fiscal, jogos de apostas e transações econômicas "informais" também tendem a ser desacreditadas. Às vezes, a desconfiança se volta contra quem fornece a informação, outras vezes é a independência do órgão estatístico que é questionada, e algumas vezes sua competência técnica.(6)

Dada a pluralidade de atores e interesses que participam ou que podem ser afetados pelo trabalho dos órgãos de estatística, alianças estáveis têm que ser construídas para apoiar este tipo de trabalho. Michel Callon trata desta questão em termos bem amplos, sugerindo o seguinte esquema para a constituição do que ele chama de "sociologia de tradução", mas que poderia ser melhor denominada "sociologia de alianças" (Callon, 1986, 196-233). O primeiro passo no seu esquema é a "problematização, ou como tornar-se indispensável". Um elemento essencial neste primeiro estágio é a "definição de pontos de passagem obrigatórios". Se eu quero desenvolver uma nova pesquisa sobre inovação tecnológica, por exemplo, todas as partes interessadas devem ser convencidas de que, se eles querem incorporar tecnologia moderna em suas atividades, eles terão que obter os dados adequados para medi-la e avaliá-la, e minha instituição e grupo de pesquisa são os melhores para fazer este tipo de trabalho. O segundo passo é "interressement": um processo muito complicado e imprevisível de se convencer a todos os atores potenciais de que eles têm um interesse comum, a ser suprido desta maneira específica. Para usar as palavras de Callon, "para todos os grupos envolvidos, o 'interessement' ajuda a pressionar as entidades a serem alistadas. Além disso, ele tenta impedir a formação de possíveis associações concorrentes, e construir um sistema de alianças. Estruturas sociais, envolvendo tanto entidades sociais como naturais, são formadas e consolidadas" (Callon, 1986, p.211). O terceiro passo é o "enrollment", ou seja, o recrutamento, conseguir que todos os atores se comportem de maneira compatível e coerente. No nosso exemplo, eu preciso convencer as empresas a responder aos questionários, preciso convencer o governo a fornecer os recursos necessários, e os definidores das políticas a tomar estas informações em conta em suas decisões futuras quanto a investimentos. O quarto passo é a "mobilização de aliados". Todos os atores têm que estar de acordo que o instituto de pesquisa é o seu porta-voz, e que os dados produzidos expressam os interesses e as realidades comuns de todas as partes envolvidas.

Um estudo de caso: o IBGE no Brasil

O caso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ilustra bem as diferentes percepções e dilemas, negociações e redes que fazem parte dos processos de institucionalização e funcionamento de um órgão nacional de estatísticas. O IBGE foi criado nos anos 30 como um dos elementos de uma tentativa ambiciosa de se organizar um Estado moderno e autoritário, que poderia conhecer e governar um vasto e desconhecido território, e sua população dispersa. As ideologias da época pressupunham que o governo central devesse derivar sua força dos cantões do país, os municípios, passando ao largo das oligarquias tradicionais dos Estados. No início, o objetivo era coordenar o trabalho estatístico executado pelos municípios em todo o país, e a inspiração alemã foi explicitamente reconhecida pelo seu fundador, José Bulhões de Carvalho. Um Conselho Nacional de Estatística foi formalmente estabelecido em 1936, sendo seguido por um Conselho Nacional de Geografia em 1937. Em 1942, quando o Brasil se juntava aos aliados na Segunda Guerra Mundial, um sistema muito rígido de centralização econômica e administrativa foi estabelecido, sob a inspiração dos EUA, e as instituições estatísticas e geográficas seguiram o exemplo. As entidades geográficas e estatísticas locais foram abolidas e absorvidas em uma burocracia nacional que permaneceu pelas décadas seguintes.(7)

A geografia era provavelmente mais importante, nos primeiros anos, que a própria estatística, para o cumprimento desta tarefa. A influência mais direta vinha dos geógrafos franceses, que tiveram também uma forte presença no estabelecimento, àquela época, das primeiras universidades brasileiras, mas, novamente, o pensamento geopolítico derivado de autores alemães era forte.(8) O volume introdutório do censo de 1940, o primeiro realizado pelo Instituto, foi um volumoso e ambicioso livro chamado A Cultura Brasileira, escrito por Fernando de Azevedo, um sociólogo da educação que participou da criação da Universidade de São Paulo, e que editou, alguns anos depois, o primeiro quadro abrangente das tradições, grupos e instituições científicas do Brasil (Azevedo, 1971 e 1955). Era tarefa do geógrafo descrever a terra, definir suas fronteiras e identificar os recursos disponíveis para a construção de uma poderosa nação-estado; era tarefa do sociólogo e educador identificar os elementos culturais que estavam transformando o país em uma sociedade moderna, nos moldes ocidentais.

Nos anos 60 e 70 a economia passou a ter precedência sobre a geografia. O Instituto foi colocado sob uma nova Secretaria ou Ministério do Planejamento, que incluía também o Conselho Nacional de Pesquisa e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, teve seu papel redefinido, e passou a ser o fornecedor de informações para os planos de desenvolvimento econômico do país (Fishlow, sem data). Além do mapeamento e das informações demográficas usuais, o Instituto tornou-se responsável pela organização das contas nacionais, e a sua peça central passou a ser uma ambiciosa matriz de insumo-produto (input-output) que permitiria a identificação de gargalos no sistema e a avaliação do impacto potencial dos investimentos em energia, transporte, produção de aço, petroquímicos e outros insumos na economia do país. A França, de novo, pode ter fornecido o modelo intelectual e organizacional – não mais os geógrafos, mas os economistas do Institute National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE), o órgão de estatística central da França, em combinação com a assistência técnica vinda dos Estados Unidos. Toda uma nova geração de economistas foi recrutada e incumbida de redesenhar a estratégia do Instituto, partindo do pressuposto de que todas as informações deveriam se encaixar em um modelo econômico abrangente.

Escrevendo em 1972 o então presidente do IBGE, Isaac Kerstenetzky, apresentou sua visão de como o sistema de planejamento do país deveria ser organizado, e o papel que o órgão de estatística deveria desempenhar neste grande esquema (Kerstenetzky, 1972) :
A teoria da política implícita no modelo sinóptico ou de decisão segue uma seqüência que é o inverso daquela usada na análise econômica convencional. Primeiro, identificamos algumas metas que consideramos desejáveis; em segundo lugar, procuramos definir o que deveria ser feito de maneira a manipular os instrumentos que temos à nossa disposição para atingir nossas metas. (9)
E mais adiante:
O conjunto de atividades no campo da estatística e pesquisa sócio-econômica iria reunir e organizar dados e conduzir estudos necessários para construir modelos com os aspectos mais relevantes da estrutura sócio-econômica do país. Tais modelos permitiriam a identificação de trajetórias alternativas de desenvolvimento. O setor político, baseado numa avaliação dos principais objetivos sociais, estabeleceria um plano de acordo com a trajetória escolhida (sublinhados no original). (10)
A associação entre geografia, estatística e planejamento econômico não era difícil de justificar, pelo menos em princípio(11): o planejamento não deveria ser feito pela simples manipulação de variáveis macroeconômicas, mas pela direta intervenção na paisagem física e econômica do país. Mas não era tão fácil ligar esse projeto totalizante à consciência de que a modernização do Brasil estava deixando uma grande parte de sua população à margem e afetando a sociedade de modos imprevisíveis. Nem a geografia nem a economia forneciam boas respostas para estas questões, e um grupo de antropólogos sociais foi convidado a desenvolver um sistema de indicadores sociais que deveriam, assim se esperava, ser integrados com o modelo global de planejamento econômico, tornando-o mais humanitário e consciente socialmente.(12)

Na prática, a economia brasileira nunca foi dirigida a partir do Ministério do Planejamento (13), e é duvidoso que os dados produzidos pelo Instituto de Estatística tenham jamais sido utilizados sistematicamente pelos governos para seu planejamento de longo prazo, exceto em termos muito gerais. Mas a imagística do planejamento teve profundas conseqüências para a organização interna do Instituto. Agora cada linha de pesquisa poderia ser considerada como tendo um lugar definido dentro de um quadro coerente, e não poderia ser facilmente questionada ou modificada. Enquanto a imagística do planejamento mantivesse seu apelo, a legitimidade do órgão permaneceria intacta. Quando, anos mais tarde, o órgão passou por um período difícil de falta de recursos e perda de prestígio, a interpretação usual para a crise entre seus técnicos era de que ela era uma conseqüência da perda da capacidade de planejamento por parte do governo. Hoje, sua organização e agenda de pesquisa são ainda muito semelhantes às daqueles tempos, e é difícil reconciliá-las com o atual ceticismo a respeito do planejamento centralizado e das políticas intervencionistas de governo.

A própria estatística, no entanto, como uma disciplina, não parece ter sido jamais um componente intelectual central da constituição profissional e técnica do Instituto.(14) Em uma tentativa de seguir a tradição francesa das "grandes écoles" controladas pelo governo, o IBGE criou a sua própria Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE), que deveria se tornar a sua principal fonte de recrutamento profissional. Embora a escola ainda exista, ela nunca preencheu tal papel, por várias razões. O instituto nunca teve sucesso no seu esforço de assegurar emprego para profissionais formados pela ENCE(15); como um estabelecimento isolado, ele não foi capaz de se manter a par dos desenvolvimentos científicos e intelectuais do seu campo, e perdeu lugar para outros cursos e programas em universidades; e, acima de tudo, os estatísticos não pareciam dominar o conhecimento e as técnicas associadas com a imagística de planejamento então prevalecente.

Seria interessante examinar até onde essa experiência brasileira foi singular ou semelhante ao que aconteceu em outros países. À medida que outros assuntos são incluídos nas agenda dos departamentos de estatística - questões como emprego, educação, saúde, agricultura, condições ambientais, participação social e política, raça, linguagem, discriminação social –, o perfil profissional das instituições de estatística também se modifica. Outras identidades profissionais – a dos economistas, naturalmente, mas também a dos sociólogos, educadores, especialistas em ambiente e saúde – podem ser mais fortes, em muitas agências estatísticas, do que a do próprio estatístico. É possível argumentar que estas outras profissões são, sobretudo, usuárias de informações, enquanto que são os estatísticos que detêm os conhecimentos, o treinamento e a cultura profissional desenvolvida para as atividades de amostragem, coleta, processamento e validação de dados, típicas do trabalho diário das agências de estatística. Mas na prática, hoje, a estatística, enquanto matéria acadêmica, é essencialmente um ramo especializado da matemática, enquanto que as técnicas estatísticas são um componente cada vez mais presente da formação profissional em todos os campos relacionados com o social e o econômico, e grandemente simplificada por software prontos para a utilização. Em muitos países, essas especialidades separadas estão associadas com a multiplicação de instituições estatísticas – os Estados Unidos são provavelmente o extremo, com várias dezenas de instituições nacionais de estatística funcionando de forma separada - mas não o único caso. Quando os departamentos de estatísticas são unificados – como no Brasil ou no México, que incluem também geografia – a conseqüência pode ser o desenvolvimento de culturas técnicas internamente diferenciadas, muitas vezes mais relacionadas com as áreas acadêmicas respectivas do que com outros setores de dentro da instituição.

À fragmentação de disciplinas acadêmicas deve-se acrescentar a tendência generalizada das instituições e centros de pesquisa a se tornarem muito mais pragmáticos e orientados por metas do que no passado. Existe crescente ceticismo a respeito de sistemas abrangentes de análise e interpretação social, ceticismo este associado ao abandono do planejamento abrangente como ferramenta de política de governo e com a expansão da pesquisa aplicada orientada por metas e produtos. Um importante elemento dessa mudança é a queda das barreiras disciplinárias e o desenvolvimento de todos os tipos de cooperação e de redes interdisciplinares e interinstitucionais, em todos os campos do conhecimento (Gibbons e outros, 1994). Essas tendências estão relacionadas, por sua vez, às crescentes pressões sobre as universidades e institutos de pesquisa, no sentido de que estabeleçam elos mais íntimos com a indústria e se relacionem com outros grupos sociais além dos estudantes convencionais – que deixem a torre de marfim e respondam mais pragmaticamente às demandas de curto prazo. Para os institutos de estatística, essa tendência leva a um movimento no sentido de substituir os grandes sistemas abrangentes de informações estatísticas por um trabalho mais orientado para produtos, temas e serviços específicos, que afetam não só as formas pelas quais os dados são distribuídos e divulgados, mas também as maneiras pelas quais eles devam ser coletados e analisados.

Traduções e controvérsias

Argumentamos até aqui que existem fortes estímulos, no campo das estatísticas públicas, para procurar números unificados e consistentes e conceitos que sejam aceitos por uma ampla gama de atores, incluindo os cientistas sociais de diferentes disciplinas, estatísticos profissionais, burocratas de órgãos de estatística, governos, legisladores, grupos de interesse, a imprensa, partidos políticos e organizações internacionais. Para cada ator, a vantagem de conceitos e números unificados é que eles podem sempre argumentar que não estão apenas defendendo seu próprio interesse, mas fazendo uso de dados "objetivos" e "científicos" acima de qualquer discussão. Ao mesmo tempo, eles prefeririam trabalhar com números e conceitos que fossem mais convenientes e adequados a suas respectivas culturas profissionais e interesses. Em outras palavras a tendência para a unificação não acontece sem tensões, uma vez que está sempre em jogo quem irá estabelecer os padrões e controlar o processo de produção e avaliação de dados. Estas tensões encontram meios de expressão e campo fértil nas fissuras e inconsistências que tem lugar nos processos de tradução entre diferentes atores e ambientes em que a produção e o uso das estatísticas públicas se dão.

Michel Callon usa o conceito de "tradução" no sentido de transformação, de converter os atores em alguma outra coisa. "Traduzir é deslocar". "A tradução é o mecanismo pelo qual os mundos social e natural progressivamente tomam forma. O resultado é uma situação em que certas entidades controlam outras" (Callon, p. 223-224). Utilizo o termo aqui em um sentido mais tradicional, também adotado por Glifford Geertz (1983): traduzir é ser capaz de se comunicar, mesmo que imperfeitamente, entre culturas e linguagens que permanecem diferentes. O que é natural e apropriado na academia pode ser questionável e problemático em outros contextos (16). Uma vez publicadas, as estatísticas públicas ganham vida própria, o que normalmente não é plenamente compatível com o modo com que elas são construídas. Às vezes elas são traduzidas em decisões que envolvem obrigações legais; às vezes são recebidas pela imprensa e traduzidas para o público geral em termos simplificados. Às vezes elas são aproveitadas pelos partidos políticos e organizações não-governamentais, que as utilizam para justificar suas ações. Sempre que conceitos e expectativas de um setor são utilizados para avaliar o que acontece em outro, tensões e mal entendidos tendem a ocorrer. Ainda assim, uma vez que existe uma tendência de cada setor a procurar sua legitimação alhures, mantê-los separados é impossível. Os exemplos abaixo, tirados da experiência brasileira dos últimos vários anos, ilustram isso.

Tradução I – da pesquisa empírica a direitos legais

Salários, aluguéis e outros preços no Brasil com freqüência têm sido vinculados aos índices de custo de vida, que não podem ser definidos em termos probabilísticos. Da maneira que isso é feito, o presidente do órgão de estatística assina um ato oficial a cada mês anunciando qual é o número oficial da inflação. O que diferencia este ato de um decreto arbitrário é o pressuposto de que este número foi obtido através da utilização de procedimentos cientificamente válidos, abertos a qualquer um que os queira inspecionar e reproduzir. Na prática, as coisas são muito mais complicadas. Embora os procedimentos estatísticos gerais, técnicas de amostragens e ponderações sejam públicos, os detalhes são mantidos confidenciais para proteger a privacidade dos informantes, e para proteger o índice da manipulação externa, real ou presumida, inclusive pelo próprio governo. Limites de erro amostrais normalmente não são divulgados, e os sistemas de coleta e processamento de dados, incluindo os pesos atribuídos aos diferentes itens nas "cestas" de produtos, a partir das quais os índices são calculados, são mantidos estáveis por longos períodos, apesar das mudanças constantes nos hábitos de consumo dos diferentes grupos populacionais. Essa situação é tornada ainda mais complicada pela existência de vários índices de inflação, produzidos pelas mesmas ou diferentes instituições, que levam a resultados nem sempre convergentes. Essas diferenças não são difíceis de explicar em termos técnicos mas, especialmente em tempos de inflação alta, são quase impossíveis de explicar para o público. Para o especialista, os preços claramente não sobem e descem ao mesmo tempo no todo da economia, e a existência de diferentes instituições produzindo estimativas independentes de dados similares pode ser vista como uma característica positiva de uma sociedade aberta e democrática. O governo, no entanto, precisa de apenas um número para estabelecer sua política, e pode suscitar suspeitas quanto à sua propensão a escolher, entre vários indicadores, aquele que melhor o atende.

Outro exemplo está relacionado às estimativas populacionais. No Brasil, as projeções anuais de população dos municípios, feitas pelo IBGE, são em princípio utilizadas para distribuir parte dos recursos dos impostos federais entre os municípios (o "Fundo de Participação dos Municípios"). Por causa dessa legislação, e de regras que impediam que os municípios que se desmembrassem tivessem suas quotas reduzidas, o número de municípios no Brasil aumentou cerca de 50% em poucos anos, atingindo um valor próximo a seis mil, e em cada caso foi pedido ao IBGE que informasse a população e os limites da nova jurisdição. A qualidade dos números fornecidos, entretanto, depende da qualidade do recenseamento populacional anterior (o último realizado no Brasil foi o de 1991, antes da Contagem Populacional de 1996) e de pressupostos relativos a padrões de migração e taxas de natalidade e mortalidade derivadas de diferentes estudos. Erros estatísticos são inevitáveis, e tendem a se tornar tanto maiores quanto menor é o grupo populacional ao qual as projeções se referem, ou quanto mais distante é o ano de produção dos dados originais. Além disso, uma das principais descobertas do recenseamento brasileiro de 1991, confirmada pela Contagem de 1996, foi uma dramática redução nas taxas de natalidade, levando a uma população muito menor, e projeções muito mais baixas para os anos 90, do que o que era geralmente esperado. Milhares de reclamações e pedidos enviados por municípios, requisitando uma revisão das estimativas populacionais, inundaram o órgão de estatística. O Tribunal de Contas da União decidiu continuar a usar as estimativas populacionais dos anos 80 em vez daquelas baseadas no recenseamento de 1991, para a distribuição de recursos. Em 1996 o IBGE obteve apoio governamental para fazer uma enumeração populacional de meio-de-década para ajustar as estimativas populacionais do país. Os especialistas em população do Instituto acreditavam que isto era necessário por razões técnicas, e o pedido orçamentário obteve amplo apoio no Congresso, em grande parte devido às reclamações dos municípios. Os dados de 1996 confirmaram e em muitos casos acentuaram ainda mais as projeções anteriores de crescimento populacional decrescente. Os dados agora são tecnicamente melhores, mas a insatisfação e os qüestionamentos dos municípios que não cresceram continuam intensos.

Outros exemplos poderiam ser tirados das atividades cartográficas e geográficas. As fronteiras entre países, estados e municípios dependem de mapas detalhados e precisos mas, antes disso, de decisões legalmente válidas, baseadas em acordos, negociações, litígios e mesmo guerra. Se um conflito não pode ser decidido pela força ou negociação, quem sabe seria possível obter uma solução "técnica" para o problema, vinda do instituto geográfico do país? Se se soubesse como dividir a região marítima entre os estados do Paraná e Santa Catarina, que estão voltados um para o outro no Atlântico, se saberia também quanto cada um deveria receber de royalties sobre o petróleo que é produzido pela Petrobrás naquela área. Uma vez que não existe uma solução técnica única para o problema (linhas retas podem ser desenhadas com base em diferentes tipos de pressupostos relativos a uma linha costeira irregular), o Instituto está sob constante acusação de uma parte como estando favorável à outra, enquanto que é impossível para as partes obterem uma decisão legal da Suprema Corte.

O padrão em todos estes exemplos é semelhante. Existem interesses em conflito, e o órgão de estatística é convocado a fornecer uma solução técnica. É um pedido por arbitragem, que é normalmente melhor para as partes envolvidas do que um conflito prolongado. Mas os árbitros geralmente decidem em favor de wm dos litigantes, e portanto podem ver sua autoridade questionada pelo perdedor. Para desempenhar seu papel, o árbitro tem que convencer os litigantes que suas virtudes morais, legais e técnicas estão acima de qualquer dúvida ou crítica. Há um processo constante de tradução em andamento – conflitos de interesse sendo traduzidos em questões técnicas, e processos técnicos e científicos sendo traduzidos em decisões com peso de lei. Como em qualquer tradução, a comunicação entre diferentes linguagens e culturas é possível, mas algo é também perdido no processo.

Tradução II – das preocupações sociais para a pesquisa estatística

Os economistas e sociólogos profissionais dizem normalmente que os conceitos, categorias e procedimentos utilizados nas suas pesquisas derivam de teorias sociais e econômicas em seus campos de pesquisa. Na prática, a sociedade coloca demandas sobre os institutos de estatística que não apenas não derivam de modelos teóricos e conceituais existentes, mas que são com freqüência extremamente difíceis de conceituar e medir de maneiras tecnicamente aceitáveis. Três exemplos que se destacam são raça, pobreza e emprego.

Deveriam as estatísticas brasileiras incluir números sobre raça? O Brasil é um país multirracial (índios nativos, colonizadores portugueses e holandeses, escravos negros africanos, colonos alemães e italianos, imigrantes da Europa Central, judeus, além de imigrantes árabes e japoneses neste século) com uma grande população miscigenada. A discriminação racial é crime, mas existe evidência de que a raça (ou a cor da pele) está fortemente relacionada a todos os indicadores de mobilidade e bem-estar social. A discriminação social, mesmo quando não explícita, é comum. Diferentemente dos Estados Unidos, no entanto, a linha que divide brancos e negros é pouco precisa. Nos Estados Unidos alguém é "negro" se um de seus pais (ou mesmo avós) é negro; no Brasil diferentes tons de negritude trazem diferentes definições sociais, e é muito fácil "passar" de uma raça para outra se se consegue associar um tom de pele mais claro com alguma educação e uma renda razoável. A interpretação dominante é que no Brasil não existe uma "questão racial" central, mas uma ampla questão social, e uma alta correlação entre pobreza e a cor da pele, explicada pela história ainda relativamente recente da escravidão negra. Por algum tempo, a raça foi mantida fora dos recenseamentos e das estatísticas oficiais. Primeiro, por que seria impossível fazer uma classificação racial "objetiva" da população, dados os altos níveis de miscigenação; e em segundo lugar; por que o levantamento de números sobre raça poderia levar ao desenvolvimento de clivagens raciais que antes não existiam.

Quando a questão sobre raça foi finalmente introduzida no questionário de recenseamento de 1980, ela foi colocada em termos de "cor da pele", e as respostas eram classificadas em negro, branco, pardo e amarelo, a última combinando descendentes de japoneses e chineses com índios nativos.(17) Uma vez que se tratava de uma auto-classificação, a resposta poderia apenas ser interpretada culturalmente. Os dados confirmaram que a raça ou cor da pele tinha um efeito independente sobre condições sociais, mas não questionavam a visão dominante de que a raça (ou cor) não era critério a ser utilizado para política social. Mais recentemente, no entanto, tem havido uma demanda de grupos de militantes negros no sentido de se introduzir políticas de ação afirmativa semelhantes àquelas adotadas nos Estados Unidos, demanda essa que inclui a introdução de questões raciais em todos os tipos de documentos públicos, incluindo o registro de nascimento, casamento e morte. A expectativa é que, através disso, uma classificação racial seja introduzida na sociedade brasileira, criando direitos a benefícios sociais e econômicos. O argumento é que essa classificação já existe, e apenas não é bem retratada pelas estatísticas existentes; a visão oposta é que a coleta desses dados iria acentuar e deslocar as atuais questões sociais para outras arenas, convertendo as auto-classificações raciais atuais, que são flexíveis, em categorias estanques. A longo prazo, as pessoas poderiam fixar suas identidades de acordo com a classificação oficialmente definida, e a identificação racial poderia ser requerida em carteiras de identidade e mesmo em faixas no braço,; clivagens raciais acentuadas e intimidantes, que não existem hoje, poderiam se materializar, em um tipo amedrontador de profecia auto-cumprida.

A pobreza e o emprego, ou desemprego, são conceitos semelhantes na percepção popular, mas questões muito diferentes tanto do ponto de vista histórico como do ponto de vista das estatísticas oficiais. Desrosières associa os primeiros estudos estatísticos sobre a pobreza com a Inglaterra do século XIX, e a emergência das estatísticas de desemprego com o New Deal quase um século mais tarde (Desrosières, 1993). A pobreza tem sido uma presença constante na história do homem, mas o seu significado tem se modificado através do tempo (Castel, 1995). A maior parte das pessoas em sociedades tradicionais eram pobres, e isso era aceito como natural e inevitável. O pauperismo se torna uma questão pública quando os pobres são deslocados de seu ambiente e padrões de vida usuais, e levados para fora de suas regiões à procura de comida, abrigo ou trabalho. A pobreza foi uma fonte constante de preocupação e debate na Inglaterra desde o início da revolução industrial, sendo que a maior parte da discussão se voltava para a questão de se os pobres deveriam ser tratados como vítimas, tendo portanto direito à proteção e apoio, ou como moralmente ineptos, devendo ser deixados a seu próprio destino. A segunda visão acabou por prevalecer não apenas entre economistas liberais mais radicais, mas para o próprio Marx, com seu conhecido desprezo pelo lumpenproletariat. A pobreza se torna uma questão moral, uma questão de caráter ou boa vontade, não algo relacionado à maneira com que a sociedade era organizada.

Sc você não trabalhasse, mas quisesse fazê-lo, você não era pobre, mas desempregado. Flutuações econômicas criavam desemprego, e a crise de 1929 produziu milhões de desempregados nos Estados Unidos e na Europa. Diferente da pobreza, o desemprego era entendido como um subproduto cíclico da economia industrial moderna, e mecanismos deveriam ser criados para reduzi-lo, ou compensar suas conseqüências. Todo mundo, em princípio, deveria ter um emprego estável, e alguma ação era necessária quando isso não acontecia. Políticas anti-cíclicas, de um lado, e compensação pelo desemprego, de outro, foram marcos do capitalismo do Estado do Bem-Estar Social do pós-1929. O desemprego tinha que ser medido através de estatísticas adequadas, mas não deveria ser confundido com pobreza. Estar desempregado era um atributo de trabalhadores industriais, não de pessoas fora do sistema produtivo – donas-de-casa, idosos, mendigos, o lumpenproletariat. A definição estatística padrão atual de desemprego, adotada e implementada pela Organização Internacional do Trabalho, mede exatamente isso. Desempregados são aqueles que estão sem emprego, mas que estão ativamente procurando por um, ou vivendo de benefícios de desemprego. Se você não está procurando por um trabalho, se você vive de assistência social, se você vive de doações de sua família, se você mendiga nas ruas, você não está desempregado, mas simplesmente fora da população economicamente ativa. As estatísticas de desemprego se tornaram um excelente instrumento para medir as flutuações de curto prazo da atividade econômica, e a utilização generalizada de metodologias semelhantes permitiu comparações internacionais significativas.

O pressuposto de que todos devam ter um emprego estável, no entanto, está sendo questionado nos países industrializados, e nunca realmente existiu nas sociedades subdesenfolvidas e em desenvolvimento. A preocupação com o fato de que o desenvolvimento econômico estava deixando grandes segmentos da população à sua margem levou à emergência da marginalidade, primeiro (Germani, 1973) e da pobreza, mais recentemente, enquanto objetos de pesquisa social e, gradualmente, ao estabelecimento de procedimentos estatísticos regulares em órgãos de estatística. As estatísticas sobre a pobreza e o desemprego se desenvolveram independentemente e hoje no Brasil elas estão sujeitas a duas controvérsias bastante distintas.

A controvérsia do desemprego se centra na existência de duas pesquisas regulares e independentes sobre desemprego no Brasil. Uma, a PME (Pesquisa Mensal de Emprego), é feita pelo IBGE, e a outra, a PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego), é realizada pelo órgão de estatística do Estado de São Paulo, a Fundação SEADE, em associação com um centro de pesquisa mantido pelos sindicatos, o DIEESE, e replicada em várias capitais. O aspecto mais evidente da controvérsia é que os números da PED são consistentemente mais altos do que aqueles da PME. Parte da diferença é bem explicada em termos técnicos: a PME é centrada no conceito de "desemprego aberto", enquanto que a PED inclui também "desemprego oculto" e situações de trabalho precário. Mas mesmo quando essa diferença é eliminada na análise e são feitas comparações para um mesmo período de referência, ainda assim surgem discrepâncias, que podem ser atribuídas à seqüência na qual as questões são apresentadas aos entrevistados durante o trabalho de campo, à duração das entrevistas e a outros detalhes técnicos. As diferenças técnicas entre duas pesquisas não parecem ser incontornáveis, embora essa afirmação por si própria possa ser controversa. Alem dos números finais, ambas as pesquisas medem diferentes tipos de desemprego (aqueles que estão procurando por empregos na última semana, ou no último mês, por exemplo). Ambas incluem informação sobre a qualidade dos empregos que se tem, distinguindo entre emprego estável (o que no Brasil requer um contrato formal e o pagamento de diversos impostos de previdência social) e diferentes tipos de trabalho precário.

O Ministério do Trabalho do Brasil, que provê fundos para a pesquisa do SEADE – DIEESE, tomou a iniciativa de reunir especialistas e as diversas instituições envolvidas, e promover a unificação destas diferentes pesquisas. A previsão é que uma pesquisa unificada passará a existir a partir de 1999, com maior cobertura territorial e temática. A razão pela qual uma solução técnica não é prontamente fornecida para reconciliar as duas pesquisas é que existem muitos outros níveis nessa controvérsia além do nível técnico. Parte da discussão é precisamente com relação a se as diferenças entre as duas pesquisas são apenas técnicas ou se têm um conteúdo subjacente ideológico ou político. A arena da controvérsia muda completamente se se aceita uma ou a outra interpretação; ou, inversamente, pode-se desejar deslocar a controvérsia para aquela arena onde se sente mais forte. O fato de que uma pesquisa é conduzida pelo Governo Federal e a outra por uma instituição associada aos sindicatos pode ser utilizado de ambos os lados como um argumento para a hipótese política. E uma pesquisa unificada tem também implicações institucionais, já que afeta a distribuição de recursos e a atribuição de responsabilidades quanto ao trabalho de campo, processamento das informações, disponibilização e publicação dos resultados.

A controvérsia sobre a pobreza se desenvolve em torno da questão de quantos pobres e indigentes existem no Brasil: os números podem variar de 8 a 64 milhões, para um população de 157 milhões. Uma controvérsia semelhantes existe a respeito do número de crianças pobres que vivem nas ruas do país, com os números variando de alguns milhares a vários milhões. Contrariamente à controvérsia do desemprego, todos os dados utilizados na controvérsia da pobreza advém de uma única fonte, o IBGE.

Esta questão tem um óbvio apelo em termos de opinião pública, e números absolutos de pobres, indigentes e crianças carentes são avidamente buscados pela imprensa brasileira e internacional. A marginalidade e a pobreza são questões moralmente carregadas, levantadas por grupos religiosos, instituições de caridade e, mais recentemente, por organizações internacionais que tendem cada vez mais a colocar o tema da pobreza no topo de suas agendas. Sociedades com altos índices de pobreza são vistas como moralmente condenáveis, requerendo, conseqüentemente, uma mudança de atitude que possa levar a um compromisso ético de não permitir que esta situação persista. Nesta perspectiva, as questões de emprego e desemprego como indicadores da atividade econômica passam necessariamente ao segundo plano. De outro ponto de vista, no entanto, parece óbvio não basta a indignação: é necessário identificar as ações que possam ter impacto significativo de redução da pobreza, o que requer, por sua vez, informação detalhada e bem diferenciada com relação às necessidades e condições de grupos específicos, para os quais políticas também específicas poderiam ser então elaboradas.

A inclusão da temática da pobreza na agenda de organizações internacionais tem levado a uma busca quase impossível por uma definição "objetiva" de pobreza, que sirva de base para comparações internacionais e medição de progresso através do tempo (Nações Unidas, 1996; Banco Mundial, 1993; Rocha, 1992; Barros e outros, 1994). Que dados utilizar? A renda declarada pela população em uma pesquisa ou recenseamento nacional é um dado obviamente inadequado, não apenas devido a declarações falseadas para menos, mas também devido a problemas incontornáveis de taxas de câmbio e dos diferentes pesos de rendimentos não monetários em diferentes regiões e culturas. Outra alternativa é medir as condições de nutrição e saúde da população, mas a informação sistemática sobre essas questões é difícil de obter e não existem definições consensuais de seu significado exceto em condições extremas. Outra possibilidade é tentar definir uma cesta mínima de produtos considerados essenciais à sobrevivência, e usar o acesso a essa cesta como uma linha divisória. Hábitos de consumo diferentes, diferente disponibilidade de produtos de primeira necessidade e, para comparações internacionais, taxas de câmbio flutuantes, tornam essas avaliações extremamente inconfiáveis e instáveis.

Essas dificuldades não significam, naturalmente, que as questões de pobreza devam ser deixadas de lado. É possível - e necessário - medir e comparar indicadores de desigualdade social, e desenvolver instrumentos para avaliar quão diferentes os grupos populacionais são em face de problemas de privação social, e as políticas alternativas que poderiam ser concebidas para prover suporte a esses grupos. Números globais significam muito pouco, por que eles variam amplamente dependendo de diferentes pressupostos, e em todo caso abrangem muitas situações e condições sociais diferentes. Da perspectiva da opinião pública, no entanto, como refletida na imprensa escrita e por grupos militantes envolvidos em questões de pobreza, números diferentes são uma demonstração inaceitável de "confusão estatística", "falta de clareza" ou ofuscação tecnocrática.

Conclusão: a sociologia da ciência e o futuro das estatísticas públicas

A sociologia da ciência pode prover à estatística pública o mesmo serviço que ela presta para a ciência e a tecnologia em geral: mostrar como a produção de conhecimento é organizada em um campo particular, os diferentes atores que tomam parte na sua produção, as traduções complexas, as mudanças de significado, interpretação e responsabilidades que têm lugar, e os conflitos e alianças cambiantes que acompanham todo esse processo. Não é propósito desse artigo tomar partido em controvérsias, ou tomar posição contra ou a favor da "ciência", mas explicitar o que é com freqüência implícito e não dito e, nesse processo, realizar um trabalho que é útil e necessário. É uma tarefa arriscada. Sempre que se faz traduções e se que busca um fundamento técnico para controvérsias e questões típicas das esferas política, legal e da opinião pública, começam-se a se revelar as incertezas que também existem na área técnica. A primeira e típica reação dos órgãos de estatística a essa invasão de seu domínio técnico é enrijecer sua posição: "este é o número correto, nós fazemos isso cientificamente, nós somos legalmente autorizados a fazê-lo, nós defendemos nossa tradição e reputação, nossos procedimentos técnicos são por demais complexos (ou confidenciais) para vocês examinarem e entenderem". Esta reação pode limitar a capacidade do órgão de aprimorar sua metodologia e permanecer aberto a críticas, inovações e novas abordagens; mas pode ser bem sucedida a curto prazo, uma vez que ela reduz a ambigüidade. A reação oposta é ser mais sincero, reconhecer as limitações e escolhas implícitas presentes em todos os tipos de procedimentos estatísticos e cartográficos, e insistir que é impossível oferecer soluções técnicas a conflitos de interesse que não podem ser acomodados. Esse tipo de reação está em sintonia com o ethos da pesquisa acadêmica e os padrões usuais de honestidade intelectual, mas corre o risco de não ser bem recebida, e pode ser interpretada simplesmente como uma indicação de que falta competência ao Instituto para prover informações adequadas e inquestionáveis sobre as realidades econômicas e as necessidades sociais.

Não existe retorno, no entanto, em relação a esta segunda alternativa. A divisão estanque entre produtores e usuários de conhecimento está sendo rompida em quase toda parte, não no sentido de que a "ciência" está se tornando acessível a todos (o que de fato não ocorre), mas em dois outros importantes sentidos. Primeiro, os produtores de conhecimento estão sendo avaliados mais de perto pelo valor dos produtos que oferecem, e têm que se esforçar para levar seus produtos até o consumidor. Não é suficiente produzir estatísticas complexas para serem publicadas em extensos volumes, cheios de tabelas ou interpretados em jornais esotéricos, especializados; é necessário que os produtores de conhecimento viajem através de toda a cadeia de traduções, desde a produção dos dados até a divulgação do produto, certificando-se de que as traduções são confiáveis e críveis. Em segundo lugar, graças em grande parte aos novos recursos da informática disponíveis ao usuário informado, este é muito mais capaz de rever e reorganizar a informação que recebe para seu uso pessoal do que no passado. Para responder a essa demanda, os órgãos de estatística têm que ser capazes de viajar também na direção oposta no processo de tradução, dos produtos à produção, tornando mais abertas e explícitas as escolhas técnicas e metodológicas que são parte da vida diária de qualquer instituição de pesquisa. Quando combinadas, essas duas tendências podem tornar a vida das instituições públicas de estatísticas mais difícil do que no passado, mas talvez também mais desafiadora e interessante.


Notas

1. Uma análise muito interessante do desenvolvimento de classificações profissionais nos órgãos de estatística da França, Alemanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos pode ser encontrada em Desrosières, 1990.

2. Existe uma crescente produção de literatura especializada sobre o desenvolvimento de práticas estatísticas contemporâneas, mas pouco, parece, em termos de comparações sistemáticas entre países. Referências bibliográficas extensas sobre desenvolvimentos históricos anteriores e contemporâneos são fornecidas por Alain Desrosières, nas suas publicações. Como amostra, veja Bulmer, Bales e Kish Sklar, 1991; Fourquet, 1980; INSEE, 1977 e 1987; Wagner, Wittrock e Whitley, 1991.

3. Essa observação vem de "Le fardeau moral d’un porte-clefs", em Latour, 1993b, 47-55, e outros textos correlatos naquele volume.

4. Este artigo é acompanhado por comentários feitos por Katherine K. Wallman, Estatística-Chefe do Departamento de Administração e Orçamento dos Estados Unidos, e outros. Fica claro, a partir dos comentários da senhora Wallman, que as instituições estatísticas nos Estados Unidos não desfrutam do mesmo grau de legitimidade que seus pares canadenses.

5. Existe um óbvio paralelo, aqui, com duas das fontes de legitimidade política definidas por Max Weber, racionalidade e tradição. Pode se especular a respeito do possível papel da terceira - carisma -, neste contexto.

6. "Tudo isso leva ao seguinte: a credibilidade ceteris paribus é uma função do grau de ameaça (aguda ou difusa, amplamente disseminada ou estreitamente enfocada); do elemento de surpresa (notável em pesquisas one-off); do valor de "fofoca" da estatística; e de se sua publicação tem lugar em um ambiente em rápida transformação. Esses elementos não são exaustivos, mas sim indicativos do tipo de análise que a reação pública às atividades de uma agência pública requer."( Jacob Ryten, comunicação pessoal).

7. Penha, 1993. Ver as referências bibliográficas para fontes da história do IBGE, disponíveis na Biblioteca do Instituto, no Rio de Janeiro.

8. O Brasil, junto com o México, é um dos poucos países que juntam as atividades estatísticas, cartográficas e geográficas na mesma instituição. As razões desta peculiaridade não são muito claras, mas ela é coerente com a visão alemã a respeito das funções de conhecimento integrado das localidades e regiões.

9. "A teoria da política, contida nos modelos de tipo sinóptico ou de decisão, apresenta (...) uma seqüência inversa à da análise econômica convencional. (...) Identificamos, em primeiro lugar, alguns objetivos que consideramos desejáveis e indagamos, em seguida, o que deve ser feito de modo a manipular os vários meios (instrumentos) à nossa disposição no sentido de alcançar os objetivos desejados".

10. "O conjunto de atividades da área de estatística e pesquisa sócio-econômica reuniria e sistematizaria dados e realizaria estudos capazes de permitir a construção de modelos com os aspectos mais salientes da estrutura sócio-econômica do país. Estes modelos permitiriam a identificação de trajetórias alternativas de desenvolvimento. A esfera política, em função da avaliação dos grandes objetivos sociais, estabeleceria um plano de ação segundo a trajetória escolhida".

11. Na prática, houve problemas, às vezes graves, como no início dos anos 50, quando todo o sistema estatístico organizado por Teixeira de Freitas foi colocado sob a ameaça de um novo presidente designado para o instituto, um militar associado à área da cartografia (Freitas, 1952).

12. Em anos recentes tem sido feito um esforço para incluir questões ambientais neste grande esquema. A idéia, apresentada por organizações internacionais e já sendo testada em diversos países, é desenvolver sistemas nacionais de "contas ambientais", que poderiam ser ligadas às contas nacionais, assim se espera, com medidas associadas de "bem-estar humano", ou desenvolvimento humano.

13. Ainda hoje, o Ministério do Planejamento é responsável pelo processo orçamentário, investimentos e planejamento geral de longo prazo, enquanto que o Ministério da Economia, através do Banco Central, maneja as principais variáveis econômicas, tais como as taxas de câmbio e de juros e o controle dos gastos do governo.

14. O estatístico italiano Giorgio Mortara forneceu, por muitos anos, a principal orientação intelectual e profissional do Instituto em questões de estatística (Mortara,1985).

15. No serviço público brasileiro, apenas os militares e o serviço diplomático podem garantir emprego para alunos de suas instituições educacionais.

16. René Padieu fornece a seguinte lista de contrastes entre conceitos jurídicos e estatísticos, a partir de sua experiência no INSEE, mostrando como a questão é geral: "o status jurídico de empresas versus natureza econômica ou feição organizacional; casamento oficial versus concubinato; regras fiscais para avaliação de estoques e desvalorização de equipamento versus "consumo de capital fixo" econômico, classificações de taxa e tarifa versus classificações técnicas ou econômicas; fronteira administrativa da cidade versus limite de aglomeração, etc".(René Padieu, Comunicação Pessoal). Peter Wagner sugeriu uma distinção mais sistemática entre os dois tipos de linguagem, a estatística e a jurídica: "no primeiro caso, a estatística está, por assim dizer, do lado "soft", coletando dados a partir da difusa realidade social, e é uma outra "linguagem" social, aquela da lei, que a torna "hard", criando limites reais onde antes haviam "apenas" classificações estatísticas. No segundo caso, ao contrário, o movimento é de uma observação "soft" de problemas sociais em direção à estatística como um "hardener", uma ferramenta para apreender alguma coisa fixa e identificável. Se você concorda com esta observação, poderia ser útil reverter a ordem: partir de, primeiro, o desejo de "manter as coisas juntas", que se volta para a estatística como metodologia, para (o que em alguns casos pode realmente ser um segundo passo nessa política) o caso onde classificações estatísticas são traduzidas em direitos e obrigações. E poder-se-ia pensar em exemplos onde o processo é revertido (ou ameaça ser revertido): quando direitos legais são abolidos, os números perdem o seu significado e o mundo social volta ao difuso." (Peter Wagner, Comunicação Pessoal).

17. Essa classificação deve ser comparada com a classificação usual adotada nos Estados Unidos entre "brancos anglo-saxãos", "negros", "índios americanos" e "hispânicos".


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