
Nota sobre
a Expansão do Ensino Superior Privado Simon Schwartzman
inédito, 1997
O governo necessita definir uma política em relação à demanda acumulada
de criação de milhares de novos cursos superiores privados, assim como da
autorização para a criação de dezenas de novas universidades privadas, a
partir de federações de estabelecimentos privados existentes. A demanda
pela criação de universidades privadas se explica sobretudo pela autonomia
que a legislação concede às universidades para a criação de novos cursos.
A criação de novos cursos superiores se explica pela demanda reprimida pela
educação superior, não atendida pelo setor público, e pela expectativa de
lucro que esta atividade pode proporcionar. Existe hoje um mercado crescente
de "produtos educacionais" que esta oferta de cursos procura atender.
Podem existir também, neste conjunto, iniciativas de tipo filantrópico e
comunitário, sem fins lucrativos.
O Ministério da Educação, preocupado com o problema da qualidade, entre
outros, tem procurado manter esta expansão sob controle. O objetivo desta
nota é defender a tese de que o governo deveria assumir uma posição mais
liberal em relação a estas demandas. São discutidas, abaixo, algumas das
teses que existem a respeito desta expansão, e examinadas as possíveis conseqüências
de uma política mais liberal.
"A maioria destas propostas são de cursos de qualidade inaceitável,
e é obrigação do governo impedir o estelionato educacional".
Esta tese se baseia em três suposições discutíveis. Primeiro, não há evidência
sistemática de a qualidade do ensino privado seja tão inferior à do público;
segundo, há muitas evidências de que o Ministério da Educação não tem, nem
terá no futuro próximo, instrumentos adequados para controlar a qualidade
dos cursos privados que autoriza, ou dos cursos criados de forma autônoma
pelas universidades públicas ou privadas. Terceiro, por detrás da questão
da "qualidade" existe, muitas vezes, preconceitos contra formas
não acadêmicas e não tradicionais de ensino, que podem atender e adicionar
competências e conhecimentos a pessoas que não teriam acesso ao ensino superior
convencional.
O Ministério da Educação deveria continuar a exigir uma série de requisitos
mínimos para a criação de novos cursos (equipamentos, instalações, qualificação
do corpo docente, etc), mas esta poderia ser uma atividade rotineira, para
eliminar os casos de abuso mais evidentes. Além deste mínimo, o Ministério
deveria instituir ou estimular a criação de mecanismos permanentes de avaliação
e "rating" das instituições de ensino, de tal forma que os "compradores"
de serviços educacionais saibam o produto que vão encontrar. Como o próprio
sistema privado, através de suas organizações, tem manifestado preocupação
com a expansão da concorrência, é de se supor que ele terá interesse em
criar estes mecanismos, que podem ser múltiplos, e coexistir com sistemas
de avaliação desenvolvidos pelo próprio MEC ou Secretarias Estaduais de
Educação. O Ministério deveria ter também mecanismos de cassação de autorizações
para cursos e instituições que caírem abaixo de certos padrões mínimos de
qualidade.
"O mercado de trabalho para graduados do ensino superior está saturado,
e estes novos cursos estarão, simplesmente, vendendo ilusões"
A evidência é que os diferenciais de renda proporcionados pela educação
superior são ainda muito altos, o que significa que o mercado de trabalho
não está saturado, de uma maneira geral. O que está saturado é o mercado
das "profissões liberais" tradicionais, com seus níveis extremamente
altos de renda. A grande maioria dos novos cursos propostos está na área
das profissões administrativas, de conteúdo bastante genérico, para as quais
o mercado de trabalho parece continuar a se expandir. Uma oferta maior de
pessoas portadoras de títulos universitários poderá reduzir os diferenciais
de renda produzidos pela simples posse de um "canudo", o que é
um resultado positivo, em termos de eqüidade social. Outra conseqüência
seria a importância cada vez maior da competição dos cursos superiores por
qualidade, eliminando os menos capazes.
O argumento da "saturação do mercado" tem toda a aparência de
uma tentativa de manter o mercado de trabalho restrito para o benefício
de um grupo pequeno de profissionais, em detrimento de outros candidatos
e da população como um todo. É necessário estimular a que o mercado de fato
funcione, facilitando a produção e a circulação de informações sobre os
diferentes cursos e carreiras, e não impedir seu funcionamento através de
barreiras e regulamentações burocráticas.
"No sistema corporativo brasileiro, os diplomas de nível superior
produzem direitos profissionais específicos, que requerem a garantia de
padrões de qualidade homogêneos, que o Ministério da Educação tem a obrigação
de garantir".
A solução correta para este problema seria a separação legal entre o título
acadêmico, outorgado pelas instituições de ensino, e a habilitação profissional,
outorgada pelas corporações profissionais ou pelo governo, através de exames
de ordem. Desta forma o governo poderia se preocupar menos com o controle
formal e a uniformidade dos cursos superiores, abrindo espaço para a diversificação.
Seria muito complicado introduzir legislação neste sentido, mas efeitos
parecidos podem ser obtidos pela liberalização da criação de novos cursos
superiores.
Com efeito, a necessidade de controle de qualidade só existe, de fato, para
a medicina, odontologia e para algumas áreas extremamente especializadas,
como a engenharia de estruturas, para as quais os atuais mecanismos de controle
"a priori" de qualidade já deixaram de funcionar. Mesmo para a
medicina, existe um amplo espaço para o desenvolvimento de perfis profissionais
alternativos (como o de enfermeiras clínicas, existentes nos Estados Unidos)
que a corporação médica brasileira tem impedido até agora. Para as demais
áreas, o mercado já utiliza mecanismos próprios de avaliação, desde a simples
busca de formados por instituições de maior prestígio à aplicação de testes
seletivos próprios. Uma política mais liberal de criação de cursos deve
estimular a criação de mecanismos de avaliação por parte dos setores que
se crêem mais qualificados, mecanismos estes que podem ser apoiados e estimulados
pelo governo.
"O controle de qualidade do sistema privado poderia ser conseguido
pela introdução de critérios mais rigorosos de autorização para a criação
de universidades".
O principal problema com esta proposição é que se trata de uma tentativa
de trancar a porteira depois que os ladrões entraram. Poucas universidades
brasileiras, públicas e privadas, se enquadrariam no conceito usual de universidade,
centrado na pesquisa e na pós-graduação, e existem sérias dúvidas sobre
se este conceito é apropriado para todo um amplo setor do sistema educacional
orientado para o e ensino e a formação profissional. A idéia de que as universidades
devam ser reavaliadas periodicamente é uma boa idéia, no sentido de que
avaliações contínuas são sempre positivas; mas existem sérias dúvidas sobre
a capacidade que o governo teria de descredenciar universidades através
deste processo. Uma política mais liberal de criação de cursos reduziria
a atual pressão pela criação de novas universidades privadas.
"O Ministério da Educação deveria orientar a criação de cursos
superiores para atender de forma mais adequada às necessidades sociais"
.
A dúvida aqui é sobre a existência de critérios adequados para este tipo
de política. Fora algumas áreas específicas, ligadas a programas bem definidos
de governo, parece ser impossível prever as necessidades de formação superior
futuras, em termos quantitativos. A melhor política, aparentemente, parece
ser a de estimular a qualidade, permitir a competição e a livre iniciativa,
e deixar que o "mercado" educacional se organize.
Conclusão
Em resumo, a política em relação à criação de novos cursos superiores privados
poderia ser composta dos seguintes elementos:
- criar mecanismos rápidos de avaliação de condições básicas de funcionamento
dos cursos, e autorizar seu funcionamento;
- estimular e apoiar a criação de mecanismos de avaliação e informação sobre
qualidades e características dos diferentes cursos e carreiras, feitas pelo
Ministério, pelas corporações profissionais e pelo setor de ensino privado;
- resistr às pressões corporativistas contra a criação de novos cursos,
por parte das carreiras tradicionais;
- retirar o principal incentivo à criação de novas universidades privadas
por uma política de maior liberalidade na autorização de novos cursos.
<