Desafios e oportunidades para a Ciência no Brasil

Simon Schwartzman

Palestra realizada em Workshop da Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP, Hotel Glória, 11/12/1992

I - Introdução

Acredito que minha tarefa neste workshop seja a de tratar de discutir a questão da ciência no Brasil em uma visão de conjunto. Eu gostaria de iniciar assinalando a oportunidade que existe no Brasil para que a ciência e tecnologia se desenvolvam, e desempenhem um papel cada vez mais importante para o progresso do país e o bem-estar de sua população. Esta oportunidade existe porque, com todas as dificuldades que o país possui, ele foi capaz de produzir, ao longo da década de 70 principalmente, uma comunidade científica bastante competente e de reputação internacional, a mais significativa de toda a região latinoamericana, e que é a base sem a qual nenhum projeto na área da ciência e tecnologia pode sequer começar a existir.

Como sabemos, a década de 80 por um período de grande instabilidade institucional e financeira para esta área no Brasil, com grandes incertezas quanto à disponibilidade de recursos, e também quanto às orientações dos responsáveis pelas principais agências de apoio à pesquisa no país. Nós vimos, nestes anos, o Ministério da Ciência e Tecnologia ser criado, transformado em secretaria, recriado novamente, o FNDCT perder a maior parte dos seus recursos, e a FINEP abandonar suas linhas de apoio institucional, sem que fosse substituída por outra agência ou mecanismo.

O primeiro desafio que temos que enfrentar é o de reconstituir a base de apoio financeiro para a Comunidade científica nacional a níveis pelo menos próximos aos da década de 70, que era de aproximadamente 3 bilhões de dólares ao ano, sendo um bilhão administrado diretamente pela Secretaria de Ciência e Tecnologia e pelo Ministério da Educação, e 600 milhões aplicados diretamente pelo setor produtivo. Acredito que, superada a atual crise orçamentária do governo federal, possa haver uma evolução positiva neste sentido. O segundo desafio, muito mais difícil, será decidir que "cara" nosso sistema deverá ter neste final de milênio. Minha tese central, que eu gostaria de trazer para discussão, é que o "modelo" mais ou menos implícito na montagem do sistema na década de 70 está superado, e deve ser substituido por outro. Apresento, abaixo, uma lista de alguns aspectos deste modelo, e uma discussão sobre dificuldades e possíveis alternativas. Não se tratava, naturalmente, de um modelo concedido de forma racional e consciente, mas algo que se impôs de maneira mais ou menos natural, e por isto mesmo, muitas vezes de forma contraditória. Gostaria de discutir, mais especificamente, três aspectos, o da política científica, o da política tecnológica, e o da maneira pela estas políticas têm sido conduzidas., chamando a atenção, sobretudo, para as questões que me parecem mais problemáticas.

a) política científica: substituição de importações

Em muitos aspectos, o esforço de desenvolvimento científico realizado nos anos 70 se parecia ao modelo de substituição de importações também predominante até aquela época. Este modelo supunha:

- criação de instituições nacionais capazes de reproduzir, dentro do país, todas as áreas de pesquisa e de conhecimento existentes no exterior;

- importação de conhecimentos do exterior através de bolsas de estudo, professores visitantes e compra de tecnologia, com o objetivo de criar capacidade interna que pudesse, com o tempo, dispensar estas importações. Um exemplo disto foi a politica, que ainda hoje persiste, de acabar com as bolsas de doutorado no exterior para as áreas onde a capacidade do país já seja considerada adequada.

- proteção às instituições nacionais cientificamente mais débeis através de financiamentos a fundo perdido e proteção ante a competição internacional e mesmo nacional (em relação às regiões mais pobres), na forma de avaliações rigorosas por pares.

Assim como com a indústria, a substituição de importações levou a alguns resultados significativos, mas não parece ser adequada para as próximas décadas. Alguns argumentos:

- a participação brasileira na produção científica internacional é mínima (menos de 1% de todos os artigos científicos publicados em um ano), e as distâncias tendem a aumentar. No outro extremo, os Estados Unidos concentram cerca de 40% da produção científica internacional, e alguns outros países quase todo o resto. A única maneira de um país cientificamente pequeno como o Brasil acompanhar este processo é pela criação e manutenção de pontes constantes e intensas de intercâmbio e comunicação com a comunidade científica internacional, que tem como ponto de partida a existência de grupos nacionais de alta qualidade.

- a estratégia de proteção de "centros de pesquisa emergentes" de baixa qualidade, na esperança de que melhorem com o tempo, não funciona. A experiência nacional e interncional mostra que grupos de pesquisa que crescem e se desenvolvem já nascem com liderança intelectual e institucional bem definidos, ainda que possam ser de pequeno porte. A política de apoio protegido a centros de pesquisa embrionários teve como consequência a geração de grupos de interesse que pressionam o sistema todo o tempo por recursos, sem que apresentem perspectivas razoáveis de "graduação" a níveis de desempenho aceitáveis.

O desafio aqui, me parece, é o de tratar de constituir e fortalecer uma comunidade científica relativamente pequena, de alto nível, com vínculos intensos e constantes com os principais centros acadêmicos e de pesquisa do mundo. Os custos disto são relativamente pequenos, e a questão da aplicação dos resultados não é importante. O fundamental é manter o país ligado e sintonizado como que ocorre no resto do mundo, trazendo padrões de trabalho e desempenho que ainda não predominam na maior parte de nossas instituições.

b) política tecnológica: elitismo, grandes projetos, altas tecnologias, desconsideração pelo mercado.

Enquanto que a formação da competência científica e técnica requer uma orientação fortemente elitista, em termos de capacidade e desempenho, a situação na área tecnológica é inversa. O fundamental é a capacitação técnica e científica da indústria como um todo, e a preparação da população para participar em uma economia moderna e que requer competência em toda a sociedade. A política tecnológica brasileira, no entanto, tem sido extremamente elitista. Alguns aspectos:

- concentração de recursos em um número pequeno de projetos de interesse militar, como o programa nuclear paralelo, o programa espacial, a pesquisa aeronáutica, o desenvolvimento de armas para a exportação. A vantagem dos projetos militares é que ele de alguma forma "protegem" os pesquisadores e permitem a acumulação de recursos que as áreas civis geralmente não conseguem. Estes aspectos positivos têm também seu lado negativo. As pesquisas não são submetidas a controle de qualidade, os recursos tendem a crescer exponencialmente, e os projetos entram em crise. Estes projetos estavam ligados, tambem, ao projeto de "Brasil potência", que deve sua voga nos anos 70.

- concentração de esforços em altas tecnologias e na produção de "hardware", e pouca atenção para a formação e capacitação geral da economia e difusão do uso de métodos e procimentos técnicos mais avançados por parte da população. Enquanto que o Brasil parecia avançar, nos anos 70, na capacitação nas áreas das novas tecnologias e na formação de centros de pós-graduação, a educação secundária permanecia como área de desastre, o ensino profissional de nível médio não se organizava, e a própria educação universitária sofria.

- comparada com a experiência bem sucedida dos "tigres asiáticos", o que mais chama na política tecnológica governamental dos anos 70 foi sua desvinculação com considerações efetivas de mercado, principalmente internacional. Não se trata, aqui, de contrapor o "laissez faire" econômico ao livre comércio, mas de tomar em conta fatores como preços, nichos, oportunidades, concorrência, tendências tecnológicas, etc., nas opções que devam ser feitas. Creio que existem três exemplos importantes e diferentes, que mereceriam uma análise comparativa mais aprofundada:
a) a indústria aeronáutica parece ter sido o exemplo mais bem sucedido de política tecnológica ligada a uma consideração adequada de possibilidades de mercado. Haveria que examinar se a atual crise da indústria aeronáutica significa ter sido fechada uma "janela" de oportunidade, ou se houveram erros que levaram à estagnação e obsolescência do empreendimento.

b) a indústria militar de exportação trabalhou para um mercado limitado e sujeito a grandes oscilações, que levaram finalmente à sua falência. Os aspectos de segurança nacional associados a esta indústria não permitem avaliar se, mesmo em seus melhores tempos, ela representou um investimento economicamente rentável, e se houveram benefícios de capacitação tecnológica para fornecedores de peças, equipamentos, etc.

c) na política de informática, o esforço de criar uma indústria nacional de montagem de equipamentos e mercados cativos para seus produtos não foi acompanhada de nenhum trabalho mais sistemático de difundir o uso destas tecnologias pela sociedade, que poderia aumentar o mercado interno para esta indústria, mas talvez requeresse uma maior abertura na importação de equipamentos e software.
Acredito que o principal desafio do país, na área tecnológica, é o de difundir a competência técnica da indústria como um todo, implantar uma cultura de qualidade, e revolucionar o sistema de formação profissional e técnica da população, fazendo-o muito mais abrangente e massificado do que tem sido o caso até agora.

c) a ação governamental: planos abrangentes e agências hipertrofiadas. A idéia, correta, de que prioridades são necessárias e de que a ação governamental é indispensável para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia levou, no entanto, ao crescimento das burocracias governamentais, e a exercícios dispendiosos e frequentemente inúteis de planejamento abrangente e a longo prazo. Além dos custos e da pouca eficácia destes mecanismos, esta tendência levou ao desenvolvimento de uma agenda própria para a comunidade de administração e gestão de ciência e tecnologia, nem sempre coincidente com a dos próprios pesquisadores ou dos setores industriais.O quadro abaixo sumariza o que me parece resumir a experiência de condução de políticas de ciência e tecnologia:

ASPECTOS GERENCIAIS DAS POLITICAS DE C&T
O QUE FUNCIONA MAL O QUE FUNCIONA MELHOR
Planos globais e abrangentes, listas de prioridades projetos setoriais negociados
avaliações técnicas de projetos revisão por pares
desenvolvimento institucional competência científica previamente estabelecida
organizações multi- ou interdisciplinares orientação disciplinar clara
"mission-oriented" atividades múltiplas, no ciclo ciência-tecnologia-desenvolvimento
vocacionamento local e regional orientação cosmopolita
grandes instituições pequenos grupos
financiamento total, ou falta de financiamento financiamento parcial e de "mercado"

Eu concluiria dizendo que estes três aspectos da atividade científica e tecnológica - a capacitação científica básica, a pesquisa tecnológica aplicada, a cultura gerencial e governamental - são coisas interligadas, mas com um grau bastante grande de indepencia, que deve ser mantida. <