O futuro da Educação Superior no Brasil

Simon Schwartzman

Publicado em Vanilda Paiva and Mirian Jorge Warde, Dilemas do ensino Superior na América Latina, Campinas, Papirus, 1994, pp. 143-178.Versão revista de trabalho elaborado por solicitação do Banco Mundial, 1990. English version: "The Future of Higher Education in Brazil", Working Papers # 197 of the Latin American Program, Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington, D. C.; Nupes, Documento de Trabalho 5/91, 24 pp. Agradeço a colaboração de Maria Helena Magalhães Castro, e os comentários e críticas de João Batista Araújo e Oliveira, Elisa Wolynec e Alcyone Saliba.

Sumário:

Situação atual
Funções do Ensino Superior

Formação para as profissões liberais clássicas

Formação de elites

Educação Geral

Formação nas "novas profissões"

Educação "vocacional"

Formação de professores

Formação científica
Um "shopping list" para o ensino superior

O contexto futuro
Perspectivas demográficas

Cenários econômicos
Os obstáculos históricos: debilidade do "ethos" acadêmico, elitismo e corporativismo
Ethos

Elitismo

Corporativismo
Perspectivas
Expansão

A expansão do setor privado

Perspectivas de expansão do setor público
Possibilidades e probabilidades

Notas


O processo de modernização da sociedade brasileira que está sendo tentado neste início da década de 90 tem como um dos requisitos fundamentais o equacionamento das questões educacionais do país em todos os seus níveis. Não será possível construir uma economia moderna, internacionalmente competitiva e capaz de incorporar e desenvolver novas tecnologias e processos produtivos e organizacionais com uma população semi-analfabeta, uma educação secundária deteriorada e um sistema universitário em constante crise. A sociedade brasileira tem um diagnóstico sobre a natureza dos problemas econômicos que o país enfrenta inflação, baixa competitividade internacional, descontrole dos gastos públicos, etc e um consenso razoável a respeito das políticas necessárias para que estes problemas sejam equacionados. Não existe nada parecido em relação ao setor educacional, além da constatação óbvia que o nível educacional da população brasileira é extremamente baixo, e a qualidade da educação disponível bastante má. A urgência em enfrentar a crise econômica explica em parte esta diferença, mas ela se deve também à ausência de uma visão adequada sobre a natureza dos problemas educacionais do país, e dos mecanismos que podem ser utilizados para seu equacionamento, tanto por parte do governo quanto, inclusive, por parte das oposições.

Este documento trata da educação superior, e tem por objetivo discutir suas perspectivas de desenvolvimento futuro, em um horizonte de tempo de 10 a 20 anos, em função de sua situação atual. Ele parte do princípio de que a educação superior é um componente fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, para a qualificação de sua mão de obra e para a melhoria do sistema educacional como um todo, e que a expansão da educação básica, cuja prioridade é bastante consensual, não poderia dar-se às expensas do apoio público à educação superior.

Situação atual.

Brazil tem cerca de 1.560 mil estudantes de graduação em instituições de nível superior, o que corresponde a cerca de 12% da coorte de idade, matriculados em 99 universidades, 89 faculdades integradas e 709 estabelecimentos isolados de ensino superior(1). A atual legislação brasileira sobre o ensino superior foi aprovada em 1968, quando a matrícula total não era superior a 300 mil. Esta legislação foi uma tentativa de adaptar ao Brasil o modelo norte-americano, com a introdução dos cursos de pós-graduação, o sistema de crédito, a organização departamental e o suposto de que todo o sistema evoluiria para a forma ideal das "universidades de pesquisa". Este novo sistema deveria substituir o anterior, baseado em "faculdades" profissionais, agregadas ou não em universidades. Na prática, o número de estudantes de nível superior se expandiu a grande velocidade na década de 1970, coincidindo com um período de rápida expansão, e que atingiu o atual patamar no início da década de 80. A maior parte da expansão ocorreu em instituições privadas e não universitárias, fazendo com que o sistema se dividisse cada vez mais entre um grupo seleto de instituições que buscavam se aproximar do modelo da universidade de pesquisa, e uma grande maioria que se limitava ao ensino. A reorganização das instituições em termos de departamentos e institutos não foi suficiente para romper os moldes institucionais da maioria das escolas nas profissões mais tradicionais, levando a que o novo sistema passasse a coexistir com o antigo.

Quadro 1: Matrícula em instituições de ensino superior conforme o tipo de instituição, 1991.
 
tipo de instituição
 
Universidade não-universidade Total % do total
dependência administrativa:
Federal 305.350 14.785 320.135 20%
Estadual 153.678 48.637 202.315 13%
Municipal 24.390 58.896 83.286 5%
Particular 371.846 587.480 959.320 61%
Total 855.258 709.768 1.565.056  
Perceituais 55%   45%
Fonte: Ministério da Educação, Serviço de Estatística da Educação e Cultura (ME/SEEC), 1991.


Funções do Ensino Superior

A situação atual da educação superior brasileira pode ser descrita em função dos principais papéis que ela desempenha, ou deveria desempenhar, nas sociedades contemporâneas:

formação para as profissões liberais clássicas (direito, medicina, odontologia, engenharia e outras). Este é o setor mais tradicional da educação superior brasileira, e possivelmente o mais preservado, pela capacidade que pode ter tido em resistir ao processo de massificação e às mudanças organizacionais ocorridos a partir dos anos 70. Dados para 1988 indicam que 36% dos candidatos, mas 16% das vagas e 22% dos formados estavam nestas carreiras. A grande maioria dos estudantes seguem as chamadas "novas profissões", e um pequeno número segue carreiras técnicas ou "vocacionais", conforme o quadro 3(2).

Quadro 3: Inscrições, vagas e diplomas por tipos de carreira.
  Profissões tradicionais(1) "novas"profissões(2) cursos vocacionais(3)
candidaturas 36% 60% 4%
vagas 16% 80% 4%
diplomados 22% 76% 2%
(1) Medicina, Direito, Odontologia, Engenharia. (2) Todas as carreiras exceto as tradicionais e as vocacionais. Inclui as ciências sociais, humanas, letras, licenciaturas de todo o tipo, etc. (3) inclui, entre outros, agrimensura, aquacultura, dança, decoração, tradutor, hotelaria, manutenção elétrica, secretaria, processamento de dados, curtição e todos os cursos definidos como de "tecnologia" (da indústria do açúcar e de cana, manutenção mecânica, indústria têxtil. Fonte: Dados do Serviço de Estatística da Educação e Cultura do Ministério da Educação para 1988, reprocessados pelo NUPES.

Apesar de algumas faculdades tradicionais terem resistido muitas vezes com sucesso às inovações introduzidas pela reforma universitária de 1968, preservando seu formato de "escola" e a coerência relativa de seus cursos, a grande demanda por este tipo de educação superior levou à proliferação de escolas superiores que oferecem estes títulos, ao mesmo tempo em que ocorria uma gradual erosão do modelo tradicional de profissional liberal independente, e sua substituição por formas de trabalho assalariado. Este processo se explica, em parte, pela saturação do mercado para as profissões liberais clássicas; e em parte, como no caso da medicina, pela expansão do sistema previdenciário e das empresas prestadoras de serviços de saúde, que contratam os médicos como assalariados(3). A concentração de profissionais liberais nos grandes centros urbanos levou a problemas de desemprego ou sub-emprego nas capitais, e ausência de profissionais qualificados no interior e nas periferias urbanas.

A qualidade média da educação oferecida por estes cursos parece ter também diminuído, segundo o consenso existente, ainda que não existam indicadores claros a respeito. A introdução da pesquisa científica regular nas escolas profissionais tem sido em geral muito difícil. Com muito poucas exceções, mesmo nas melhores escolas de medicina e odontologia, a maior parte dos professores continuam sendo profissionais liberais atuantes, que não se dedicam de forma integral à atividade acadêmica. Isto é ainda mais acentuado nas áreas de engenharia e, sobretudo, direito(4). Apesar da óbvia carência de profissionais da saúde e de tecnologia no país, não existe mercado que remunere estes profissionais conforme suas aspirações, o que leva a uma grande pressão das corporações profissionais contra a criação de novos estabelecimentos de ensino em seus campos. Existe também grande resistência à criação de cursos profissionalizantes de curta duração. O argumento é que a maioria destes cursos formam pessoal sem qualificação adequada; além disto, no entanto, existe o temor à concorrência que poderia advir de técnicos que pudessem realizar partes importantes de atividades que hoje são monopólios de determinadas profissões. O mesmo ocorre na área do Direito, onde as questões da necessidade social e da qualidade são menos claras.

- formação de elites. No século passado as elites brasileiras eram educadas predominantemente nas faculdades de direito e, em menor grau, de medicina e engenharia, no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife, para onde se dirigiam os filhos das famílias mais abastadas e influentes de todo o país. A vivência adquirida através dos contatos pessoais e as atividades culturais e políticas desenvolvidas nos anos de universidade compensavam pela ausência de uma educação efetivamente competente, que os cursos não proporcionavam. Terminados os cursos os filhos das elites se dirigiam seja para a política, seja para os altos cargos públicos, seja para a atividade empresarial, e a rede de relacionamentos construídos nos anos de universidade constituíam um capital de grande valia.

A expansão do ensino superior neste século diluiu esta função de formação de elites, e acentuou o caráter regional das instituições de ensino superior, ao mesmo tempo em que o conteúdo profissional e científico de muitas instituições também melhorava. Hoje, as universidades federais que existem em todas as capitais dos estados brasileiros são locais naturais de passagem dos filhos das elites das respectivas regiões, mas dificilmente possuem o "ethos", a mística e a cultura institucional próprias que marcaram, por exemplo, as faculdades de direito de São Paulo e Pernambuco ou a Escola Politécnica do Rio de Janeiro em seus tempos de maior prestígio. Não há nada no Brasil que reproduza o papel das Grandes Écoles francesas, da Ivy League americana ou da Universidade de Tóquio no Japão. Algumas instituições paulistas, como a Universidade de São Paulo em suas faculdades mais tradicionais, e a Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, desempenham algo deste papel a nível do Estado. O Instituto Tecnológico da Aeronáutica teve um papel importante na formação de lideranças científicas e empresariais para o país em seu período áureo, nas décadas de 50 e 60, um lugar que hoje parece ter sido perdido.

Duas tentativas recentes de retomar esta função podem ser assinaladas. O Governo Sarney instituiu em Brasília uma Escola superior para o serviço público, junto ao Ministério da Administração (ex-DASP), em um esforço deliberado de emular a École Nacional d'Administration francesa. A promessa de que os graduados testa escola teriam altas posições na administração pública atraiu inicialmente um grande número de candidatos. Não parece ser possível, no entanto, criar uma grande école em Brasília dentro da burocracia federal, quando a única competência que efetivamente existe no país está localizada nas universidades, e geralmente fora da capital(5). A outra tentativa é da Universidade de Campinas, que vem fazendo um esforço deliberado de se projetar com universidade de expressão nacional, pelo recrutamento de estudantes em todo o país, e está iniciando um projeto ambicioso de acelerar a qualificação de seus quadros de professores. Ainda que seja cedo para avaliar o projeto da UNICAMP, parece ser claro que suas possibilidades são muito maiores do que as do governo federal.

Educação Geral. O sistema de educação superior no Brasil foi organizado na tradição continental européia basicamente francesa e italiana , orientado para a habilitação profissional superior de uma pequena elite, dentro da suposição de que a grande maioria se contentaria com a educação geral na escola secundária, ou com cursos técnicos de nível médio. O caráter socialmente discriminatório dos cursos técnicos de nível médio, no entanto, acentuado pela sua má qualidade, jamais permitiu que eles se consolidassem, enquanto que o ensino clássico convencional foi se esvaziando progressivamente, pela perda de seus melhores professores e pela irrelevância de seus currículos, transformados em meros rituais de memorização e repetição, ou, no melhor dos casos, em treinamento para os exames de ingresso à universidade(6) . Se no passado a educação média era considerada suficiente para grande parte da população de classe média e alta, e sobretudo para as mulheres, agora a expectativa nestes setores é que todos continuem seus estudos até a universidade. Os cursos de humanidades e ciências sociais que proliferaram em grande quantidade nas últimas décadas absorvem parte desta demanda, sem, no entanto, abandonar a pretensão de oferecer, ao final, uma habilitação profissional qualquer, que geralmente se frustra(7). Esta ambigüidade de papéis contribui para a anomia e baixa motivação que caracterizam a maioria destes cursos. A conseqüência é que praticamente não existe, no Brasil, lugar em que um estudante possa obter uma boa educação geral, exceto, talvez, em algumas poucas escolas secundárias privadas.

formação nas "novas profissões". As dificuldades de acesso e profissionalização nas profissões liberais clássicas, e a ilegitimidade de um currículo de educação geral a nível pós-secundário, levou à criação de um grande número de "novas profissões" comunicações, biblioteconomia, administração, nutrição, estatística cada qual aspirando a um nicho próprio e cativo no mercado de trabalho, e monopólios profissionais garantidos por lei. Com algumas poucas exceções (administração de empresas e economia, por exemplo, em algumas regiões) estas "novas profissões" tentem a atrair estudantes menos qualificados, que se dirigem a cursos com pouca ou nenhuma tradição e consistência acadêmica e intelectual, e encontram mais tarde grandes dificuldades em obter trabalho que de alguma forma corresponda aos conteúdos formais das carreiras que escolheram(8). A profissionalização efetiva nestas carreiras só ocorre geralmente no nível de pós-graduação, que seleciona um número muito limitado de estudantes, fazendo com que os demais fiquem sem uma habilitação profissional efetiva.

educação "vocacional". A expressão "vocational education", que nos Estados Unidos designa os cursos de curta ou média duração voltados para a qualificação profissional em atividades técnicas e aplicadas, não existe no Brasil, sendo substituída, de maneira imprópria, por "educação técnica". Apesar de que a maior parte dos estudantes de nível superior estudem em "estabelecimentos isolados", isto, é, não universitários, não existe diferença legal nem cultural entre um título "pós-secundário", ou vocacional, e universitário. Carreiras como biblioteconomia, contabilidade, enfermagem, engenharia operacional e outras que em outros países são freqüentemente proporcionadas em cursos de curta duração tendem a ter seus currículos prolongados para atingirem o mesmo status, e em princípio os mesmos direitos, do que as profissões universitárias clássicas. Houve na década de setenta uma tentativa de obrigar as escolas secundárias a oferecer uma alternativa de educação vocacional a todos os estudantes, que foi mais tarde abandonada. Um número limitado de Escolas Técnicas Federais (as CEFETS) e estaduais oferece ensino profissionalizante de boa qualidade, graças a um investimento de recursos muitas vezes superior ao que é gasto normalmente com os demais estabelecimentos de nível secundário. Reconhecidas como de qualidade, estas escolas técnicas começam a ser disputadas por estudantes que as buscam como caminho de acesso às universidades, e neste sentido parece estarem perdendo parte importante de sua função, que seria a de oferecer uma alternativa profissional à educação universitária convencional. A principal forma de educação vocacional que subsiste, a nível de primeiro e segundo graus, é aquela proporcionada pelo sistema de aprendizagem industrial, que funciona de forma separada do sistema educacional convencional, sob a direção da Federação Nacional das Indústrias.

formação de professores. O sistema educacional pré-universitário brasileiro foi organizado na década de 30 no formato 4-4-3 (primário, ginasial e colegial), e transformado no início dos anos 70 para o formato 8-3 (básico e secundário). Apesar de tantos anos decorridos desta unificação, a formação de professores ainda obedece ao formato antigo: para os quatro primeiros anos (e também para o pré-primário) ela se faz a nível secundário, através das "escolas normais", enquanto que para os anos posteriores ela é feita nas universidades.

A justificativa para esta diferença parece ser que, até a quarta série do curso básico (o primeiro ciclo, ou seja, até o final do antigo primário), os alunos estudam essencialmente com um único professor (ou, na grande maioria dos casos, professora), cujo trabalho pedagógico e semi-maternal (in loco parentis) o que dispensaria a formação especializada de nível superior. A partir da 5 série o curso se divide em uma pluralidade de matérias especializadas, com professores dotados de formação específica, além de treinamento em matérias pedagógicas oferecidas pelas faculdades de educação, requeridas para as licenciaturas de nível superior para o magistério.

Se este formato fazia algum sentido no passado, hoje ele subsiste somente pela falta de alternativas adequadas. Nos principais centros urbanos do país, grande parte dos professores e professoras do primeiro ciclo obtêm títulos universitários, freqüentemente em habilitações como orientação educacional, supervisão escolar ou administração escolar, que são as oferecidas pelas faculdades de educação, e os utilizam como instrumentos para promoções funcionais que normalmente os afastam das salas de aula, deixando as atividades de ensino para os menos motivados ou qualificados. Esta situação de fato justificaria transformar de vez a formação para o magistério pré-escolar e de primeiro ciclo em habilitação de nível superior. No entanto, em muitas regiões do país, e principalmente na zona rural, ainda existe um grande número de professores leigos (ou seja, sem qualificação formal para o magistério, e freqüentemente sem educação secundária completa), que trabalham com níveis mínimos de remuneração, e a exigência de qualificação universitária para esta função tornaria impossível preencher estes cargos. A adoção de uma política flexível e diferenciada, que pudesse atender à grande disparidade de situações que existe no país, não parece ter ainda entrado em cogitação. A atuação das universidades em relação ao primeiro ciclo se resume à formação de supervisores, gerentes, especialistas em educação especial ou professores habilitados para o ensino nas escolas normais.

A formação de professores para o segundo ciclo e para o nível secundário se faz através das licenciaturas universitárias, que são normalmente divididas em duas partes. Por um lado, os estudantes adquirem seus conhecimentos específicos nos respectivos departamentos (de matemática, física, química, ciências sociais, etc.); por outro, o conhecimento pedagógico é proporcionado pelas Faculdades de Educação (os que não pretendem se habilitar para o magistério podem obter um título de "bacharel" na respectiva habilitação). Não há nenhuma evidência de que as disciplinas pedagógicas requeridas para as licenciaturas sejam efetivamente úteis para os futuros professores, que geralmente as seguem como requisitos burocráticos(9). O principal problema com a formação de professores, no entanto, é que ela é vista como uma habilitação profissional de pouco prestígio e interesse, tanto por parte dos professores e departamentos universitários quanto pelos estudantes. Os departamentos acadêmicos, principalmente nas universidades públicas, se consideram sobretudo centros de formação científica e técnica, e só secundariamente como centros de formação de professores de nível médio. Nestas universidades a habilitação para o magistério tende a ser procurada por poucos alunos, normalmente aqueles que não conseguem passar para o nível de pós-graduação, e as taxas de reprovação e abandono tendem a ser extremamente altas, principalmente nas áreas de ciências naturais e exatas. A carreira de magistério secundário só é atrativa, em geral, para estudantes de origem social menos privilegiada, que em geral não conseguem ingresso nas universidades públicas melhor qualidade, e terminam obtendo suas habilitações em cursos noturnos oferecidos por estabelecimentos de qualidade duvidosa.

A conseqüência geral deste quadro é que o ensino superior brasileiro não está formando professores na quantidade e qualidade necessárias para um sistema de educação básico em expansão, e sujeito a taxas extremamente elevadas de turnover. A solução do problema não é simples. O trabalho de formação de professores não é considerado prioritário nos departamentos de orientação mais científica e acadêmica, muitos dos quais prefeririam ter esta atividade (incluindo as pesquisas e trabalhos sobre o ensino de ciências) transferida para as faculdades de educação. No entanto, esta transferência poderia ter resultados ainda mais problemáticos, tanto pela seleção negativa quanto pelos problemas inerentes à tradição pedagógica das antigas faculdades de filosofia e de educação. A solução talvez esteja na criação de um formato intermediário, semelhante aos "teacher colleges" existentes em outros países. É bastante claro, de qualquer forma, que não haverá espaço para melhorias significativas se a atividade de ensino não se tornar mais atraente, através de salários mais altos e do envolvimento mais ativo das novas gerações.

Formação científica. O Brasil implantou, a partir do final da década de 70, um sistema bastante abrangente de pesquisa e pós-graduação, que lhe deu um lugar de destaque entre os países do terceiro mundo. Deste o início da década de 80 este sistema tem se mantido estagnado em termos de crescimento, mantendo um total de pouco mais de mil cursos de mestrado e doutorado (alguns localizados em instituições semi-universitárias, como os Institutos do CNPq ou o Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro) e cerca de 40 mil alunos(10). Este conjunto de programas de pós-graduação é avaliado regularmente por um sistema de "peer review" coordenado pela CAPES, cujos resultados sugerem que aproximadamente um terço dos cursos é de boa qualidade (conceitos "A"). Estes programas concentram, ainda, a maior parte dos pesquisadores e da pesquisa científica efetivamente produzida no Brasil e publicada no país e no exterior(11).

O sistema de pós-graduação constitui um dos elementos mais dinâmicos do ensino superior brasileiro, tanto por sua capacidade de se mobilizar para conseguir recursos em momentos de dificuldades financeiras, quanto pela influência benéfica que exerce naquelas universidades em que ele está mais presente e integrado com os cursos de graduação (como nas Universidades de São Paulo, Campinas e na Universidade Federal de Minas Gerais, por exemplo). Existem, no entanto, problemas. As taxas de deserção são muito altas a estimativa é que somente 30% dos alunos terminem seus cursos em nível de mestrado ou doutorado e a duração dos cursos tende a ser demasiada em média, 4 anos e 8 meses para o mestrado, 5 anos e meio para o doutorado(12). A produtividade científica dos professores e pesquisadores é baixa em termos quantitativos(13), sua penetração internacional é pequena, e seus efeitos, em termos de transferências de conhecimento para o setor produtivo e para a sociedade mais ampla, não parecem ser muito grandes, apesar de não existirem informações muito adequadas a respeito. Existe uma tendência, em muitas áreas de conhecimento, para que a pós-graduação substitua de fato a qualificação profissional que deveria ser proporcionada no nível de graduação, funcionando assim como um filtro que na prática compensa a massificação e perda de qualidade do ensino de graduação, e acentua sua desqualificação. Finalmente, o prestígio e o sistema de incentivos associados à pós-graduação e à pesquisa no sistema universitário brasileiro tem levado à desvalorização das atividades de ensino e formação profissional propriamente ditos, e a tentativas de reproduzir o formato e o estilo das atividades de pós-graduação e de pesquisa em todo o sistema. A implantação do formato da pós-graduação acadêmica em áreas de formação nitidamente profissional, como psicologia clínica, direito, administração, e mesmo engenharia e medicina, tem levado a profundas dissonâncias entre as expectativas dos alunos e a estrutura dos cursos, o que parece explicar em parte as altas taxas de teses não concluídas. Um outro efeito é o surgimento de áreas de conhecimento que mimetizam os comportamentos típicos das ciências estabelecidas, com suas revistas, organização de congressos e seminários, demanda e concessões de bolsas de estudo, e assim por diante, sem que existam, necessariamente, conteúdos que os justifiquem.

Um "shopping list" para o ensino superior

Esta lista de papéis, e a análise de como eles estão sendo desempenhados, leva naturalmente a uma lista de características que o ensino superior brasileiro deveria adquirir nos próximos anos, para poder corresponder mais adequadamente ao que dele se espera. Esta lista tem como dado fundamental a noção de que os sistemas de educação superior massificados tendem a desempenhar uma pluralidade de papéis freqüentemente contraditórios, uma característica que se acentua ainda mais em uma sociedade tão profundamente estratificada e diferenciada como a brasileira. Parece ser mais recomendável reconhecer as diferenças, e tratar de responder a elas de forma pluralista, do que tratar de negá-las pela via da imposição de igualdades formais, que tendem a intensificar ainda mais os processos de estratificação e de desigualdade. Um ajuste adequado do ensino superior brasileiro às necessidades futuras do país requereria, pelo menos, os seguintes tipos de ação: O contexto futuro

A probabilidade de que pelo menos uma parcela destas políticas sejam levadas a efeito depende em parte dos cenários de desenvolvimento futuro da sociedade brasileira, e em parte das condições atuais do ensino superior do país, que não teria como ser reconstruído a partir do nada.

Quadro 4 - Projeções Demográficas por faixas etárias secionadas milhares).
  1980 1990 2000 2010
10-14 14.279 16.812 16.162 16.487
15-19 13.590 14.952 16.407 16.267
20-24 11.525 14.085 16.624 16.009
25-29 9.425 13.328 14.712 16.184
Total 120.194 145.762 170.932 194.082
Fonte: A. A. Camarano, K. Beltrão e R. Neupert, Século XXI - A Quantas Andará a População Brasileira?, IPEA, Texto para Discussão n 5, 1989 (Hipótese II).

perspectivas demográficas - as projeções demográficas prevêem uma expansão contínua da população brasileira para as próximas décadas(14). As reduções das taxas de natalidade ocorridas nas décadas de 70 e 80 só deverão começar a se fazer sentir na faixa etária dos 20 anos no início do próximo século. A incorporação de novos grupos sociais mulheres, pessoas mais velhas e que trabalham ao contingente de estudantes de nível superior já parece ter se completado(15), o que explicaria em parte o estancamento da expansão ocorrido nos anos 80(16). A demanda por educação superior nas próximas décadas estará condicionada basicamente pelo aumento dos formados pelo sistema de educação secundária, que não está se expandindo de forma significativa; e em parte também, possivelmente, pelas pessoas que já concluíram o segundo grau e terceiro graus, e que venham a se valer de novas oportunidades e modalidades educacionais que venham a existir. A demanda por ensino superior (inscrições nos exames vestibulares) foi de 1.921 mil em 1988 para 463 mil vagas iniciais, em um total de 1.503 mil matrículas(17). O número de formados em 1988 era de 222 mil, ou 49% dos ingressantes, o que significa que um em cada dois estudantes termina o curso. Somente 11.59% dos que se candidatam à universidade, no entanto, conseguem entrar em alguma instituição e concluir seus cursos. Não sabemos, no entanto, quanto esta demanda não satisfeita se compõe de pessoas que se inscrevem em diversos cursos, e quantos teriam condições econômicas e intelectuais mínimas de seguir os cursos com aproveitamento(18). Um aumento abrupto do número de admissões na universidade brasileira nos próximos anos, sem outras alterações mais significativas no sistema, poderia significar uma redução do número de formados por ingressantes, aumentando assim a ineficiência do sistema. Em resumo, a previsão é que a educação superior brasileira estará submetida nas próximas décadas a uma pressão demográfica equivalente à da expansão dos formados pelo ensino secundário, que tem correspondido aproximadamente ao crescimento da população.

cenários econômicos - Um cenário de estagnação econômica para as próximas décadas terá um impacto direto sobre o sistema de ensino superior tanto do lado da capacidade do Estado em manter e ampliar o sistema, quanto da população em pagar os cursos do ensino privado. Este cenário não significaria que a demanda por educação superior venha a se reduzir, porque a estagnação econômica, ao reduzir as possibilidades de emprego, pode atribuir um peso ainda maior do que o usual à posse de um diploma formal. Mas ela tenderia a dar uma forma específica a esta demanda: a tendência à ampliação dos cursos de baixo custo, um reforço das demandas políticas por privilégios corporativos associados a diplomas, e uma forte pressão sobre o sistema público para reduzir sua seletividade e incorporar um número cada vez maior de estudantes.

Um cenário mais otimista, de retomada do desenvolvimento econômico e de um saneamento das finanças das administrações federal e estaduais, não significará necessariamente uma expansão do sistema de ensino superior público, mas pode significar pelo menos que as instituições públicas não continuarão a se deteriorar. Uma população com maior poder aquisitivo, e uma economia ativa e em processo de modernização, podem levar a uma ampliação da demanda por pessoas mais habilitadas tanto para atividades especializadas quanto para as que requerem conhecimentos genéricos, e a uma demanda por educação de maior qualidade, seja no setor público, seja no setor privado.

Os obstáculos históricos: debilidade do "ethos" acadêmico, elitismo e corporativismo.

Os problemas do ensino superior brasileiro não são essencialmente financeiros ou gerenciais, mas de outra natureza. Do ponto de vista financeiro, não há dúvida de que o governo brasileiro gasta pouco em relação à população em idade de ser atendida pelo ensino superior, ou mesmo em relação aos que de fato freqüentam algum tipo de faculdade ou universidade, que são, em sua maioria, privadas. Mas a análise dos dispêndios com as instituições públicas, federais e estaduais, indicam níveis de gastos que não são muito distintos dos de países mais ricos, e em muitos casos parecem maiores, apesar das dificuldades óbvias com estes tipos de comparações(19). As universidades públicas brasileiras gastam mal os recursos que recebem, e as privadas respondem a um mercado que normalmente não demanda serviços educacionais de qualidade. Do ponto de vista gerencial, a literatura internacional mostra que instituições de ensino superior podem ser geridas por processos extremamente variados (indo dos administradores profissionais das universidades americanas aos sistemas de administração professorial das universidades européias), e que os melhores resultados não dependem do estilo ou da eficiência empresarial dos dirigentes, e sim da capacidade em fazer prevalecer, e ressaltar, os valores acadêmicos e intelectuais que caracterizam a atividade universitária(20). Não há de ser pela simples injeção de mais recursos, ou pela introdução de técnicas de gerência empresariais, que o ensino superior brasileiro mudará de forma mais profunda.

Ethos

A debilidade do "ethos" acadêmico não costuma ser mencionada como um dos fatores problemáticos da educação superior brasileira, talvez pela dificuldade em abordar uma variável de tipo cultural como esta de forma mais precisa. No entanto, é bastante claro que os países que possuem hoje um sistema educacional bem constituído desenvolveram, através do tempo, grupos sociais fortemente envolvidos e motivados com as atividades educacionais e culturais, que deram a suas instituições educativas conteúdos éticos, normativos e culturais que explicam grande parte de sua pujança. No Brasil, da mesma forma que em tantas outras sociedades cujos governos copiaram suas instituições educacionais do exterior, este conteúdo cultural muitas vezes não chegou a se estabelecer, apesar da parafernália de leis, normas e regulamentos que são baixados periodicamente sobre as instituições educacionais. A história dos movimentos sociais e culturais associados ao surgimento e implantação dos sistemas educacionais permite identificar a presença ou ausência destes conteúdos, que não são perceptíveis pelo simples exame da legislação ou dos currículos, ou da qualificação formal dos professores(21). Em sua ausência, os aspectos externos das instituições educacionais os títulos, os salários, a estabilidade no emprego, as imunidades, os privilégios profissionais tendem a adquirir predominância sobre os conteúdos a que estes mecanismos estariam destinados a servir.

Esta não é, felizmente, a única realidade. Não é difícil identificar setores do ensino superior brasileiro em que o "ethos" acadêmico e universitário se implantou com mais força: em algumas das escolas profissionais de maior prestígio, nas instituições que atraíram contingentes de imigrantes europeus que trouxeram consigo seus valores e aspirações educacionais, e nos poucos centros que conseguiram implantar e manter tradições de pesquisa científica e de contatos com a comunidade científica internacional. O Brasil teve, ainda, uma corrente significativa de educadores que encarnaram os ideais da educação universal de massas e das modernas pedagogias, e que se tornaram conhecidos, na década de 30, como os "pioneiros da educação nova"(22); no entanto, este grupo jamais chegou a se constituir como uma corrente intelectual bem constituída e institucionalizada no sistema universitário.

A massificação dos sistemas modernos de educação superior levou em todos os países à diluição e questionamento deste "ethos" universitário, e a tentativas de substituí-lo por sistemas aferíveis e de larga escala de transmissão de conhecimentos e habilidades. O otimismo que cercou o surgimento das "tecnologias educacionais" mais ambiciosas já está hoje bastante reduzido em todo o mundo, apesar de experiências localizadas bem sucedidas. O que parece claro é que a adoção de sistemas educativos tecnificados e em grande escala, geridos de forma empresarial, não pode se dar às expensas de uma cultura universitária bem estabelecida, mas depende na realidade de sua existência para poder ter resultados.

Elitismo

Os sistemas educacionais apresentam duas faces contraditórias em seus valores e em suas implicações sociais, a da democratização e do progresso social, e a da diferenciação e do elitismo. A face da democratização e do progresso social está ligada aos ideais iluministas que acompanham e motivam os sistemas educacionais a valorização do mérito, a igualdade de oportunidades, a primazia do desempenho em relação ao sangue, e da razão sobre a autoridade e o dogma. A diferenciação e o elitismo são "efeitos perversos" que surgem com a conquista de direitos e privilégios para os educados, e das condições reais de acesso às melhores oportunidades educacionais, que em todas as sociedades são fortemente correlacionadas com recursos econômicos e posições sociais preexistentes. Em sociedades em que os sistemas educacionais se desenvolveram associados ao crescimento das classes médias, à expansão das oportunidades de trabalho e à difusão da valorização da competência e da racionalidade individual, o lado iluminista dominou; em outras, no entanto, em que as instituições educacionais foram implantadas pelas elites, em situação de estagnação econômica e pouca fluidez social, são as dimensões elitistas e regressivas que prevalecem, e as instituições educacionais não desempenham os papéis reformadores e transformadores a que estariam, supostamente, destinadas.

Apesar do discurso liberal que muitas vezes a acompanhou(23), a educação superior no Brasil foi desde o início uma instituição de elite, criada pelo governo para atender a uma parcela diminuta de sua população, ou para o treinamento de seus próprios quadros. O desenvolvimento de uma sociedade moderna e de massas em alguns pontos do país levou a uma certa expansão e modernização relativas deste sistema público, mas sobretudo à criação de um sistema de ensino superior subsidiário, voltado para áreas de conhecimento menos consolidadas e de mais fácil acesso, e em instituições privadas, noturnas e de menor qualidade. Com a massificação, este sistema subsidiário passou a existir no interior das próprias instituições publicas, sem jamais abdicar da esperança, mas também sem conseguir emular os privilégios e o prestígio social das profissões tradicionais das universidades públicas.

A debilidade do "ethos" acadêmico tem uma relação estreita com a baixa qualidade de grande parte do ensino superior brasileiro, e da resistência na realidade incompreensão que cercam as tentativas de introduzir critérios mais estritos de qualidade na distribuição de incentivos e recompensas no interior do sistema. O elitismo contribui para entender as dificuldades em estabelecer um modelo educacional superior mais diferenciado, que tenha outros valores e referências do que os padrões de vida e de consumo atribuídos a uma elite cuja posição social, por outra parte, vem sendo corroída a bastante tempo. A estes dois fatores institucionais e culturais deve ser acrescentado um terceiro, que é o do corporativismo.

Corporativismo

Na literatura sobre ensino superior, autonomia e auto-regulação são considerados normalmente como valores importantes a preservar; por outro lado, o termo "corporativismo" tem sido utilizado para designar as diferentes formas de mobilização de grupos profissionais na defesa de seus interesses particulares e de curto prazo, que redundam muitas vezes em empecilhos sérios às tentativas de modernização e transformação social. A confusão entre os dois termos é constante a busca de autonomia para uns não passa da defesa de interesses corporativos para outros e ela tem a ver, em grande parte, com a questão do "ethos" acadêmico e universitário discutida mais acima.

A importância da autonomia e da auto-regulação na vida universitária deriva do fato de que, como conjunto de atividades complexas e não redutíveis a uma pré-codificação e programação de tarefas, o ensino superior (e na realidade todas as formas de ensino) requer um alto nível de motivação e envolvimento das pessoas na formulação e desenvolvimento diário de suas atividades, que só pode ocorrer em um ambiente adequado de descentralização, autonomia e responsabilidade pessoais pelos resultados do trabalho efetuado. Esta não é uma questão adstrita à atividade universitária. A literatura contemporânea sobre a natureza do trabalho industrial tem assinalado os limites do modelo taylorista e fordiano, quanto confrontado com os altos graus de produtividade, qualidade e eficiência associados a formas de organização do trabalho que recuperam os padrões de auto-regulação e envolvimento próprios das tradições artesanais(24). A literatura sociológica tem uma tradição mais antiga ainda no trato destas questões em referência à comunidades profissionais e intelectuais, como a dos médicos, dos advogados e juristas, dos professores e das instituições científicas e culturais.

Autonomia não significa impermeabilidade a influências externas, e sim a capacidade de auto-regulação e adaptação construtiva às demandas e condiçoes circundantes, pela consolidação de uma cultura institucional e profissional próprias. Uma instituição acadêmica autônoma e bem constituída deve ser capaz de identificar fontes externas de recursos financeiros e políticos, as necessidades sentidas pela sociedade mais ampla, e responder a estes condicionantes de acordo com suas próprias regras de probidade e competência; e desta forma aumentar seu prestígio e reconhecimento ante a sociedade mais ampla, e conseqüentemente sua própria autonomia. Esta situação ideal deve ser contrastada com a de comunidades fechadas, que são incapazes de perceber ou responder com flexibilidade a sinalizações externas, e acabam por se esgotar por falta de realimentação e apoio; assim como com situações em que as instituições são invadidas por demandas, valores e solicitações externas de todo tipo, corrompendo suas normas, procedimentos e mecanismos internos de funcionamento, e terminando por se desfazer.

A discussão brasileira sobre autonomia e corporativismo tem sido vitimada pela dificuldade em estabelecer os limites e as possibilidades destas diversas situações. A inspiração do preceito constitucional da autonomia é o da auto-regulação, supondo evidentemente a existência de mecanismos adequados de condução de políticas educacionais e científicas de interesse nacional. Este tipo de autonomia depende, no entanto, da existência de culturas profissionais e institucionais que muitas vezes não existem, e cuja ausência leva ao corporativismo puro e simples, provocando, no outro extremo, a propostas de eliminar todas as formas de organização universitária autônoma, e sua substituição, seja por mecanismos de controle e supervisão ainda mais restritos do que os tradicionais, seja pela lógica competitiva e descontrolada do mercado(25)

O corporativismo que afeta o sistema educacional brasileiro tem duas dimensões principais, a do sistema das profissões em geral e o da profissão acadêmica em particular. O corporativismo das profissões deriva diretamente da tradição das corporações medievais, e consiste no monopólio da aprendizagem e do exercício de determinadas profissões, controlado pelos próprios interessados e protegido pela força do Estado. Este monopólio, que se consolidou em muitas sociedades para algumas carreiras de nível superior mais tradicionais, como a medicina e o direito, se generalizou no Brasil para várias dezenas de profissões, cada qual com sua pretensão a uma reserva no mercado de trabalho, a um salário mínimo profissional e a outras distinções. O setor privado, quando pode, trata de escapar da camisa de força dos monopólios profissionais, contratando pessoas pelos seus conhecimentos e experiência, antes que pelos diplomas que ostentam. O setor público, no entanto, tende a cumprir a lei com diligência, exigindo diplomas para o preenchimento de cargos, promovendo e dando aumentos salariais em função de diplomas apresentados e cursos concluídos, e assim por diante(26). A organização corporativa das profissões tem uma repercussão direta sobre o sistema de ensino superior, ao condicionar todo um sistema de exigências curriculares que são impostas aos cursos via Conselho Federal de Educação limitando a iniciativa dos cursos e estimulando o formalismo e o credencialismo.

A outra forma de corporativismo típica dos sistemas de educação superior se relaciona ao desenvolvimento de uma "profissão acadêmica" que, no limite, poderia desempenhar um papel de auto-controle e regulação semelhante ao que existe nas corporações profissionais e acadêmicas mais bem sucedidas. Esta "profissão acadêmica" não existia no Brasil antes da reforma universitária de 1968, quando os professores de ensino superior tinham suas identidades profissionais definidas pelas respectivas profissões. A criação dos regimes de trabalho em tempo integral nas universidades brasileiras, a partir da reforma, envolvendo professores com poucos vínculos seja com as respectivas profissões, seja com as comunidades acadêmicas das respectivas disciplinas, levou ao desenvolvimento de um forte sindicalismo entre professores das universidades públicas, que hoje formam um grupo de pressão bastante significativo, a Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior, ANDES, filiada à Central Única dos Trabalhadores. A capacidade de mobilização coletiva da ANDES tem sido responsável por conquistas salariais e de direitos de estabilidade para os professores, por uma pressão contínua para a homogeneização das carreiras e do regime jurídico das universidades federais, assim como pela resistência a tentativas de introdução de sistemas de avaliação do desempenho de instituições e professores. Os sindicatos docentes, em conjunção com os sindicatos de funcionários, têm sido também importantes na substituição dos critérios acadêmicos por critérios político-eleitorais na escolha das autoridades universitárias em todos os níveis.

Perspectivas

A discussão sobre as perspectivas futuras do ensino superior brasileiro, a partir de seus condicionantes atuais, e no sentido de atender ao "shopping list" sugerido acima, pode ser concentrada no exame de duas questões centrais, a possibilidade de transformar a estratificação que hoje existe em uma diferenciação real, e a de traduzir o corporativismo que hoje paralisa o sistema em formas autênticas e adequadas de autonomia. Estas duas questões dependem de uma terceira, que é a da eventual tendência à substituição da lógica do controle institucional e formal, que até hoje predominou, por mecanismos semelhantes ao de mercado. Estas questões estarão condicionadas à expansão que o ensino superior deverá ter, e que, ainda que não repita as altas taxas de crescimento das décadas anteriores, devida à incorporaçao do contingente feminino e dos estudantes noturnos, deverá sem dúvida reagir de forma vigorosa ao represamento ocorrido nos últimos 10 anos.

Expansão

As universidades públicas não aumentam suas vagas há muitos anos, e a pressão que existe hoje sobre os gastos governamentais não permitirá que elas se expandam no futuro próximo, a não ser pela melhor utilização dos recursos de que já dispõem. O sistema privado, em quanto isto, tem aumentado de tamanho aos saltos, ao sabor das políticas mais ou menos liberais das autoridades federais, e também dos efeitos dos ciclos econômicos. Existem a todo o tempo várias centenas de pedidos de autorização de abertura de novos cursos privados retidos junto ao Ministério da Educação à espera de definições de uma política de expansão.

A indecisão governamental sobre como responder às perspectivas de expansão se explica pelo menos em parte pela necessidade de optar por duas linhas opostas de conduta, uma baseada no favorecimento do mercado (que é demandada pelo setor privado) e outra na tentativa de planejar e orientar de forma cuidadosa a expansão, restringindo-a quando for o caso - caminho preferido pelas corporações profissionais, e aparentemente, pela própria administração do Ministério da Educação.

O principal argumento contra o controle central e o planejamento da expansão em função de supostas "necessidades" sociais é sua simples impossibilidade. O Governo Federal tem se limitado, até hoje, a um processo formal de autorização e credenciamento de cursos superiores privados que é reconhecidamente sujeito a fraudes e acomodações, e não existe nenhum mecanismo regular de acompanhamento do desempenho dos cursos através do tempo (as universidades, autônomas, podem criar novos cursos independentemente de aprovação, e os cursos criados pelos governos estaduais e pelas municipalidades ficam sob jurisdição estadual)(27). Nem o Ministério da Educação nem as secretarias ou conselhos estaduais têm estrutura administrativa para uma fiscalização mais permanente, e, mesmo sem falar dos custos, existem sérias dúvidas sobre a conveniência de expandir este tipo de fiscalização: os mecanismos de controle que existem são formais e burocráticos, gerando comportamentos ritualísticos e burocráticos nas instituições de ensino, em detrimento dos conteúdos ensinados, e não permitem nenhum tipo de avaliação dos resultados efetivos da educação oferecida.

Ninguém mais pensa, hoje em dia, que seja possível prever com alguma precisão quantos médicos, engenheiros, economistas, advogados e sociólogos um país precisará dentro de cinco ou dez anos, e usar isto para planejar as vagas de suas instituições de ensino. As sociedades e seus mercados de trabalho evoluem de forma imprevisível, e o lugar que abrem às diversas profissões depende muito das tradições, do prestígio e do reconhecimento legal e social que cada uma delas recebe, mais do que de uma suposta relação técnica entre, por exemplo, tal nível produção e tal quantidade de engenheiros em uma empresa, entre o número de nutricionistas e o estado alimentar de uma determinada população, ou entre o número de advogados e o grau de justiça que existe na sociedade.

O que sabemos com certeza é que as sociedades modernas demandarão cada vez mais pessoas com três ou quatro tipos de habilidades genéricas: as que sejam capazes de dominar bem a cultura e a língua, escrever, relacionar-se com diferentes públicos, comunicar; as que entendam o funcionamento das instituições humanas, sua organização, suas normas, suas maneiras de operar; as que sejam capazes de pensar em números, fórmulas, medidas, equações; e as que sejam capazes de entender e cuidar do funcionamento e da saúde dos organismos vivos. É provável que, destas quatro grandes áreas de conhecimento as humanidades, as ciências e profissões sociais, as ciências exatas e tecnológicas, e a biologia e ciências da saúde as duas primeiras tendam a envolver mais pessoas do que as duas últimas, quando não seja pela tendência à especialização e concentração destas em grandes instituições, empresas e laboratórios. Isto significa que a predominância de cursos nas áreas sociais e humanas não é necessariamente uma deformação, como geralmente se pensa. De qualquer forma, se conseguirmos desregular o sistema de diplomas e profissões, poderemos esperar que as quantidades globais de pessoas formadas nestas grandes áreas tendam a se ajustar naturalmente.

Metas quantificadas só podem existir em setores muito delimitados, e quando associadas a programas públicos bem definidos. Em saúde, por exemplo, talvez seja possível um dia calcular quantos profissionais deverão ser necessários e possíveis de contratar para que o sistema previdenciário atenda toda a população, e inclusive associar bolsas de estudo e acesso a determinados cursos à prestação posterior de serviços em determinadas regiões, por um certo tempo. Com toda a certeza serão necessários, além de médicos convencionais, enfermeiros, radiologistas, laboratoristas, parteiros, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos clínicos, e assim por diante. Não teria sentido, no entanto, tentar estabelecer metas quantitativas para cada uma destas categorias. A hierarquia profissional e a compartimentalização que existe entre estas diversas atividades, que é em grande parte social, e não técnica, precisaria ser alterada, permitindo uma melhor redistribuição de funções e mecanismos de passagem de uma para outra, e sua substituição por hierarquias efetivas de competência e responsabilidade. Muitas pessoas se interessariam por cursos de escopo mais delimitado e de duração mais curta, que tivessem uma perspectiva certa de trabalho, principalmente se pudessem, mais tarde, se qualificar para atividades mais complexas e melhor remuneradas, através de estudos e exames complementares.

Uma outra área aonde podem existir metas razoavelmente quantificadas é a da formação de professores, dada a necessidade urgente de expandir o ensino básico e secundário do país. A principal dificuldade, aqui, são os baixos níveis de renda e o pouco prestígio do trabalho docente, afastando as pessoas melhor qualificadas, e fazendo com que os professores abandonem sua profissão em grandes números. Nenhum planejamento educacional para esta área pode ser feito sem uma alteração profunda das condições de emprego docente. Mas o ensino básico e secundário nunca pagará tão bem a seus professores quanto as profissões universitárias de mais prestígio. o que requer que os cursos de formação de professores sejam moldados a um público de origem social mais humilde, que passou por escolas secundárias de pior qualidade, e que freqüentemente não consegue passar nos exames vestibulares das universidades públicas. A segunda, potencialmente É um desafio pedagógico sério, que exigirá um grande investimento na preparação de materiais didáticos, na organização de cursos de reciclagem, no uso de diferentes tecnologias de apoio, e principalmente em uma nova visão a respeito das habilidades e conhecimentos que devem ter os professores de primeiro e segundo grau, que são certamente diferentes daqueles que se exige de uma pessoa que se prepara para a pesquisa científica e tecnológica em laboratórios e empresas. O planejamento para este setor deverá ter em conta ainda as altas taxas de turnover das atividades docentes, e estimular a que pessoas em início de carreira se dediquem ao ensino de primeiro e segundo graus, podendo, mais tarde, partir para outras carreiras e projetos profissionais.

A existência de metas para algumas áreas, como a da saúde e da educação, não pode levar o Estado a restringir o direito que o setor privado tem de oferecer os cursos que melhor entenda, se não houver custos públicos e se os padrões mínimos de qualidade forem atendidos. O único instrumento de que o governo dispõe hoje para influenciar o sistema privado é o crédito educativo, que poderia ser direcionado para cursos nas áreas prioritárias, e em estabelecimentos devidamente avaliados.

A expansão do setor privado

Em relação ao setor privado, pareceria óbvio que, se não existem custos para o setor público, não haveria razão para não autorizá-los a funcionar sem maiores delongas, se eles demonstrarem um mínimo de seriedade, probidade e competência. O argumento contrário é que existem sérias dúvidas tanto quanto à qualidade dos cursos oferecidos quanto sobre as opções que oferecem, inflacionando áreas do conhecimento já saturadas, e deixando outras mais necessitadas a descoberto. Daí a idéia de que o governo só deveria autorizar a criação de novos cursos depois de um exame rigoroso de sua qualidade, a ser garantida por um sistema também rigoroso de fiscalização; e também em função de uma análise adequada das necessidades presentes e futuras de novos profissionais nas diversas áreas do conhecimento.

O atual sistema de autorizações e credenciamento de cursos via Conselho Federal de Educação não tem como funcionar bem. Os procedimentos são formais, legalistas e burocráticos, e como tais abertos a manipulações. Mais seriamente, os membros do Conselho Federal de Educação são indicados politicamente, são inamovíveis em seus longos mandatos, e não são geralmente reconhecidos no meio universitário como pares devidamente qualificados.

Este sistema deveria ser substituído por um outro, baseado na ampla liberdade de iniciativas, a partir de um certo mínimo, e da avaliação do desempenho. As idéias fundamentais são a de eliminar ao máximo os controles burocráticos e formais, deixando surgir um "mercado de qualidade"; avaliar o conteúdo, não a forma; avaliar depois, e não antes; avaliar de forma descentralizada e com a participação da comunidade, e não pela burocracia governamental; definir gradações de qualidade e explicitar modelos e objetivos alternativos; e divulgar amplamente os resultados. Cabe ao governo garantir que os produtos educacionais oferecidos à sociedade não sejam fraudados, da mesma maneira que se deve fiscalizar para que a comida vendida nos supermercados não esteja estragada, ou que os eletrodomésticos funcionem conforme o anunciado pelos fabricantes. Mas sua função reguladora não deve ir muito além, e mesmo isto talvez se faça melhor por delegação do que pela administração direta.

A experiência internacional mostra o caminho a seguir: reduzir os controles formais ao mínimo e criar um "mercado de competência" pelo estímulo ao desenvolvimento de sistemas descentralizados de avaliação periódica de desempenho dos cursos superiores, com a participação de pessoas pertencentes a associações científicas, profissionais e técnicas, e cujos resultados sejam tornados públicos para a informação dos estudantes e suas famílias. Podem e devem haver sistemas distintos e competitivos de avaliação, por instituições interuniversitárias (como o Conselho de Reitores), por associações profissionais e científicas, por publicações privadas (como o Guia do Estudante da Editora Abril, ou as avaliações periódicas de Playboy), por órgãos governamentais, pela consulta a comissões assessoras da comunidade (como as avaliações da pós-graduação da CAPES), e assim por diante.

A introdução da avaliação e do acompanhamento de resultados deveria ser acompanhada de um enfrentamento direto da questão do corporativismo profissional. Seria necessário estabelecer uma separação nítida entre educação formal e habilitação para o exercício das profissões. Um diploma universitário deveria ser um testemunho da educação oferecida por uma instituição determinada, mas não devia habilitar ninguém, legalmente, para nada. A exigência de registro profissional para o exercício de profissões deveria ser restrita àquelas atividades onde a imperícia possa produzir danos sérios e irreparáveis à vida e à propriedade. Nestes casos pilotos de avião, maquinistas de trem, cirurgiões o registro profissional deve estar associado a um processo permanente de avaliação, a ser feito com a participação de especialistas na área, e sob supervisão das autoridades públicas.

Para as demais profissões é útil que existam associações científicas e profissionais que avaliem cursos e credenciem pessoas que atendam a determinados critérios (como fazem, por exemplo, as diversas sociedades psicoanalíticas), para melhor orientação do público; mas estas entidades não podem ser monopolísticas (como são os atuais conselhos profissionais), nem suas credenciais podem ter efeitos legais. Introduzir estas modificações significará contrariar muitos interesses, e exigirá alterações profundas na legislação. Mas, sem isto, nem a demanda por educação de má qualidade será reduzida, nem deixará de existir sua principal causa, o inchamento progressivo da máquina pública por pessoas diplomadas e pouco competentes.

Pode-se supor que, sem a faculdade de habilitar para as profissões, e avaliadas por um "mercado de competência" transparente, as arapucas educacionais que existem atualmente perderão seus alunos e fecharão suas portas, se forem incapazes de oferecer serviços educacionais de melhor qualidade e valor profissional. O resultado, a curto prazo, poderá ser uma redução da demanda por educação formal; mas, a médio prazo, um aumento da correlação entre educação e habilidades reais. Se a desregulação do sistema educacional fôr feita, no entanto, sem que corporativismo do sistema profissional seja alterado, o resultado pode ser o oposto, ou seja, a proliferação de cursos e diplomas de péssima qualidade que somente serviriam para justificar a reimposição de controles centralizados mais adiante.

Uma outra conseqüência da desregulação do ensino superior e das profissões será o surgimento de modelos alternativos e competitivos de ensino para as diversas atividades profissionais, alguns mais próximos dos modelos universitários clássicos, com estudantes e professores de tempo integral, e outros mais orientados para a formação prática e de curta duração, dados preferencialmente a noite ou pelo uso de metodologias de ensino à distância ou por períodos concentrados. Eliminado o mito de que todos os cursos de determinada profissão são iguais (porque proporcionam a mesma habilitação profissional), o espaço para as diferenças surgirá, e o papel de vigilância do setor público sobre o sistema educacional privado poderá se limitar às questões mais óbvias de improbidade ou má fé. Esta desregulação eliminará ainda a fonte da grande pressão que hoje existe contra a expansão do ensino superior, e que vem das associações profissionais mais fortes, como as de medicina e de direito, que poderão aumentar seu papel no controle da qualidade das pessoas que credenciam, sem, no entanto, influir diretamente na quantidade, ou na existência de habilitações profissionais afins.

Perspectivas de expansão do setor público

Pelos números que se conhece, o sistema de universidades federais poderia duplicar suas matrículas com basicamente a mesma infraestrutura física e de pessoal que possui hoje. Seria necessário proceder a grandes reajustes na distribuição dos recursos, do tempo dos professores e do espaço físico, dentro de cada universidade e entre elas, e superar todo tipo de preconceitos e barreiras regionais, corporativistas e disciplinares; mas não é uma tarefa impossível. A realização de uma expansão como esta traria no entanto um risco imediato sério, que é o da perda da qualidade das universidades públicas.

A qualidade das universidades públicas brasileiras, com poucas exceções, está concentrada em seus programas de pós-graduação e de pesquisa e em alguns cursos profissionais mais tradicionais. A pesquisa e a pós-graduação não estão livres de problemas, mas desempenham uma função vital de manter vivos os núcleos recebedores e geradores de conhecimento do país, algo que a iniciativa privada não faz da mesma forma, e que não poderia subsistir sem subsídios públicos. Os cursos profissionais de alto prestígio dependem de instalações complexas e da existência de professores de alta qualificação e tempo integral, que dificilmente podem existir sem a pesquisa e a pós-graduação.

A exigência de conhecimentos prévios nos exames vestibulares das universidades públicas tem servido de barreira para o ingresso de pessoas que tiveram menos oportunidades de uma boa educação secundária nas profissões mais disputadas, e tem levado à existência de vagas ociosas. Dobrar o número de vagas significará baixar o nível médio de qualificação dos alunos que entram, e isto poderá prejudicar sensivelmente a qualidade dos cursos, a não ser que haja um intenso trabalho compensatório para o qual as universidades públicas não estão preparadas, e cujo resultado é incerto. Há quem argumente que a função da universidade pública deve ser a de atender às populações mais carentes, que isto é mais importante do que a excelência acadêmica, e que as pessoas que buscam educação superior de qualidade, e que vêm geralmente dos estratos sociais mais altos, podem se transferir para o setor privado e pagar por ela, como já ocorre com a educação básica e secundária. De fato, a garantia constitucional de educação superior gratuita para quem pode pagar e vai se beneficiar pessoalmente dela é uma iniqüidade que deve ser alterada, levando à implantação de sistemas de cobrança que permitam subsidiar os que não tem recursos e aumentar os recursos disponíveis para as universidades públicas. Seria ilusório, no entanto, supor que recursos privados fossem capazes de sustentar um sistema de educação superior com um mínimo de qualidade(28).

Não existe nenhuma garantia de que, se o sistema público perder a qualidade que tem, ela seria reconstruída no setor privado. Por mais que os estudantes paguem, as mensalidades escolares dificilmente seriam suficientes para montar a infraestrutura de prédios e equipamentos e para pagar os professores e funcionários que uma escola profissional moderna, nas áreas tecnológicas e de saúde, normalmente requer. Um movimento nesta direção terminaria por tornar irresistível a pressão do setor privado por subsídios públicos, criando assim uma dualidade que ainda não conhecemos, mas que existe em outros países do continente: por um lado, um sistema público massificado e de má qualidade; por outro, um sistema privado de qualidade e altamente subsidiado.

Afrouxar as exigências dos exames vestibulares, criar mais vagas pela introdução de cursos noturnos que sejam apenas versões mal feitas dos cursos diurnos, não parece ser o caminho mais apropriado para a expansão do ensino superior público(29). O procedimento mais adequado deveria ser o de trabalhar em duas frentes ao mesmo tempo: garantir e mesmo elevar os padrões de exigência dos cursos regulares, que supõem a existência de estudantes bem qualificados em dedicação de tempo integral aos estudos, cobrando dos que podem pagar e garantindo a subsistência dos que não o podem; e, por outra parte, criar modalidades novas de atendimento a outros públicos que hoje buscam o ensino superior pessoas mais velhas, profissionais que buscam se aperfeiçoar, mulheres que iniciam carreiras depois que os filhos cresceram, jovens que necessitam trabalhar para se manter enquanto estudam e que têm pouco em comum com o jovem recém saído das escolas secundárias para os quais o modelo das universidades públicas brasileiras foi estabelecido. Estas modalidades novas podem requerer procedimentos pedagógicos e formatos de curso sobre os quais paira hoje um manto de preconceito em círculos acadêmicos bem pensantes ensino à distância, cursos de férias e de fins de semana, cursos de especialização e reciclagem, cursos de duração curta, e assim por diante.

O envolvimento dos melhores professores das universidades públicas nestas atividades garantiria sua qualidade, e a existência de mecanismos flexíveis de passagem de alunos de uma a outra modalidade de ensino e tipo de curso evitaria os problemas de compartimentalização e desvalorização das modalidades aparentemente menos "nobres". E, na medida em que estes desenvolvimentos se dêm em áreas priorizadas por programas de longo alcance como de educação, ou saúde haveria inclusive condições para maiores investimentos, e projetos mais ambiciosos.

Possibilidades e probabilidades

O que procuramos mostrar, ao longo deste texto, foi que existe um caminho razoavelmente claro e possível de ser trilhado pela educação superior brasileira nas próximas décadas, que pode melhorar sua qualidade, ampliar seu atendimento, e fazer com que ele desempenhe melhor os papéis que a sociedade espera dela. O resultado das transformações aqui propostas seria uma nova realidade com a cara do Brasil, naquilo que o país tem de mais marcante: grande, complexo, contraditório, flexível, desigual, dinâmico, criativo e progressista.

Dizer que isto é possível não significa dizer que vá ocorrer, e nem mesmo que seja provável. Colocar estas modificações em marcha significa mexer na Constituição, nas leis ordinárias, em interesses corporativos entrincheirados, e sobretudo nos hábitos mentais das pessoas, que custam a entender que a realidade pode ser muito distinta do que aquilo a que elas estão acostumadas. As reações provocadas pela primeira tentativa recente de mexer em maior profundidade na educação superior brasileira não dão lugar para muito otimismo(30), o mesmo ocorrendo com outras tentativas recentes de reformas abrangentes no México, na Espanha e em outros países. Existe um desequilíbrio profundo entre a capacidade de mobilização de curto prazo das corporações e interesses estabelecidos e os eventuais benefícios a longo prazo de mudanças mais profundas.

Por outro lado, existem pressões internas e externas importantes que podem levar a resultados mais favoráveis. Internamente, as universidades brasileiras possuem hoje um contingente importante de pessoas que se preocupam seriamente com sua qualidade e seus diferentes papéis sociais, e que estão dispostas a lutar por isto. Externamente, na medida em que a economia do país se modernize e se desenvolva, existirão pressões e incentivos cada vez maiores para que as universidades respondam de forma adequada a suas necessidades. Em relação ao governo, a necessidade de competir por recursos com outras atividades poderá ter também um efeito benéfico sobre as instituições universitárias, que sentirão cada vez a necessidade de mostrar sua importância, seu papel e seu desempenho.

O sinal talvez mais significativo de que as coisas estão mudando é que idéias como as que são discutidas neste texto já não provocam as mesmas reações indignadas ou perplexas que se ouviam poucos anos antes. A comunidade universitária brasileira já discute hoje, com relativa tranqüilidade, questões como a da avaliação, da diferenciação, do corporativismo, do lugar do ensino privado e pago, do relacionamento entre autonomia e responsabilidade social, da importância dos valores acadêmicos, e do relacionamento problemático entre o ensino, a pesquisa e a extensão. Não se trata, simplesmente, de um processo de aprendizagem, mas, acima de tudo, do fortalecimento gradual da idéia de que a universidade brasileira, e sobretudo a pública, não é a vítima pura e indefesa de uma conspiração obscurantista que vem de fora. Ela pode encontrar bons amigos e parceiros na sociedade mais ampla, e descobrir inimigos insuspeitos dentro de si mesma. Transformar esta percepção em novas alianças talvez seja o próximo passo.

Notas

1. Ministério da Educação, Sinopse Estatística do Ensino Superior - Graduação, Censo Educacional de 1991. A distinção entre universidades e não universidades, no Brasil, afeta aspectos administrativos das instituições, como por exemplo sua autonomia didática e pedagógica, nas não existem cursos ou carreiras que sejam privativos de universidades, e os diplomas de todas as instituições têm precisamente o mesmo valor legal, ainda que existam, naturalmente, diferenças de prestígio e qualidade.

2. Dados do Serviço de Estatística da Educação e Cultura do MEC, recodificados pelo NUPES. O agrupamento das carreiras "vocacionais" foi feito a título provisório, a partir da denominação dos cursos, e ainda necessita maior precisão. O Guia do Estudante da Editora Abril, 1990, lista 90 instituições com cursos pós-secundários de tipo técnico, 38 das quais no Estado de São Paulo, e 60 na área de processamento de dados.

3. Veja a respeito Maria Cecília Donnângelo, coordenadora, Condições do Exercício Profissional de Medicina na Área Metropolitana de São Paulo, Universidade de São Paulo, Departamento de Medicina Preventiva, 1983, mimeo.

4. Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo o regime de dedicação exclusiva só atinge a 13% dos professores, segundo os dados de 1989. Nas áreas de medicina e engenharia existem grandes contrastes entre as instituições da capital do Estado e as do interior. Assim, a Faculdade de Medicina de São Paulo tem 32% de seus professores em regime de tempo integral, em contraste com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, com 90%. A Escola Politécnica tem 54% de professores em tempo integral, e a Escola de Engenharia de São Carlos, 79%. Em relação às faculdades de odontologia de São Paulo, Bauru e Ribeirão Preto, as percentagens são de 21%, 76% e 62%, respectivamente.

5. O grande modelo que se procura imitar é do Instituto Rio Branco, responsável pela formação do corpo diplomático brasileiro. Não existe nenhuma avaliação conhecida do Instituto Rio Branco, além de sua boa reputação, que se estende à diplomacia brasileira em seu conjunto. O Instituto funciona como uma escola de graduação, e, ao se constituir como única porta de entrada para o serviço diplomático, acaba por impedir que o Ministério de Relações Exteriores brasileiro recrute diplomatas entre os alunos dos melhores programas de pós-graduação em economia, ciências políticas, história, administração, e assim por diante.

6. A reforma do ensino secundário de 1942 instituiu a distinção entre o ensino secundário propriamente dito, de formação científica e humanista, conduzindo à Universidade, e o ensino profissional de tipo industrial, agrícola e comercial, do qual só o último adquiriu maior dimensão, recrutando estudantes de nível socialmente inferior aos que se dirigiam às escolas secundárias convencionais. (Veja a respeito S. Schwartzman, Helena Bomeny e Vanda Costa, Tempos de Capanema, Paz e Terra / EDUSP, 1984, pp. 188 e seguintes). Para uma visão abrangente, veja Geraldo Bastos Silva, A Educação Secundária, São Paulo, Editora Nacional (Atualidades Pedagógicas, vol. 94), 1969.

7. A este respeito, no que tange à Universidade de São Paulo, ver S. Schwartzman, Os Estudantes de Ciências S 0. ociais, NUPES, Análises Preliminares AP5/92.

8. Como a maioria dos estudantes destas carreiras trabalham enquanto estudas, eles não têm o problema de "encontrar trabalho" depois de formados. O que eles sim esperam é que seu diploma possa ser útil para melhores seus salários, e dar mais oportunidades no mercado de trabalho.

9. A evidência que existe parece sugerir mais bem o contrário. Veja o trabalho de Marília Pontes Espósito, coordenadora, Estudo Exploratório sobre o destino ocupacional, expectativas e desempenho profissional dos graduados em Pedagogia, Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, Núcleo de Estudos de Sociologia da Educação, Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, 1987, mimeografado.

10. Na prática, a maioria dos cursos de doutorado se dá em conjunto com os de mestrado, o que reduz o total de cursos a um valor próximo de 816, sem contar a existência de habilitações múltiplas dadas pelos mesmos cursos.

11. Uma análise dos conceitos emitidos pelas comissões de consultores da CAPES entre 1977 e 1980 mostrou uma tendência à elevação dos valores médios e uma diminuição progressiva da variança dentro de cada área, o que levou os autores a se perguntar sobre a possibilidade de estar havendo "um relaxamento dos critérios de avaliação, que estariam cada vez menos exigentes". Não existem estudos posteriores a respeito, nem tentativas de verificar se esta hipótese de perda de rigor era de fato verdadeira. Veja Cláudio de Moura Castro e Gláucio A. D. Soares, "As Avaliações da CAPES", em Simon Schwartzman e Cláudio de Moura Castro, organizadores, Pesquisa Universitária em Questão, Campinas, Editora da UNICAMP e Brasília, CNPq, p. 173-189. Quanto à concentração das pesquisas no sistema universitário, veja S. Schwartzman, "Desempenho das Unidades de Pesquisa: Ponto para as Universidades," Revista Brasileira de Tecnologia (Brasília, CNPq), 16,2, Março-Abril, 1985, 54-60.

12. M. H. de Magalhães Castro, A Pós-Graduação em Zoom, NUPES, documento de trabalho 6/91, p. 12 (dados do Ministério da Educação). A estes 10 anos de pós-graduação devem ser somados os 5 anos de graduação, o que significa que a idade mínima para o doutoramento deve ser de aproximadamente 33 anos. Como na maioria dos casos existem intervalos entre os diferentes cursos, não é rara a situação em que doutorados são obtidos quando os estudantes já estão próximos da aposentadoria, que, para mulheres em atividades docentes no Brasil, se dá aos 25 anos de exercício profissional.

13. Uma análise dos dados da CAPES sobre professores de pós-graduação mostrou que a média anual de produção de trabalhos por docente das instituições era de 0,87, com nenhuma acima de 3 (o índice mais alto era do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, um laboratório do CNPq, com 2,96 publicações anuais em média). Veja Cláudio de Moura Castro, "Há Produção Científica no Brasil?", em Simon Schwartzman e Cláudio de Moura Castro, organizadores, Pesquisa Universitária em Questão, Campinas, Editora da UNICAMP, São Paulo, Editora Ícone, e Brasília, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1986, 190-224. Pesquisa recente sobre o professorado brasileiro mostra que 48.4% do total não haviam tido nenhum produto científico qualificado nos últimos 3 anos, 27.1% um produto, e 24.5% três produtos ou mais.

14. Para as projeções demográficas mais recentes, veja Ana Amélia Camarano, Kaizô Beltrão e Ricardo Neupert, Século XXI - A Quantas Andará a População Brasileira?, IPEA/IPLAN, Texto para Discussão n 5, 1989. Para uma visão mais ampla da transição demográfica brasileira, cf. Thomas Merrick, "A População Brasileira a partir de 1945", em Edmar Bacha e Herbert S. Klein, A Transição Incompleta, Rio de Janeiro Paz e Terra, 1986, vol. 1;

15. Mais da metade dos estudantes de nível superior no Brasil são de sexo feminino atualmente. Não existem dados globais sobre idade, mas informações dispersas sugerem que o número de estudantes de 30 e mais anos de idade é bastante alto, principalmente nos cursos noturnos.

16. Sobre o impacto das transformações demográficas na América Latina no sistema de ensino superior, veja Jorge Balán, "Introduction", Higher Education (Special Issue: Higher Education in Latin America), 25, 1, 1993, 1-8.

17. Dados do Serviço de Estatística da Educação e Cultura do Ministério da Educação, processados pelo Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da Universidade de São Paulo.

18. Se cada candidato participasse de dois vestibulares por ano, como se estima muitas vezes que aconteça, este valor subiria, naturalmente, para o dobro.

19. E. Wolynec, O Uso de Indicadores de Desempenho para a Avaliação Institucional, Universidade de São Paulo, Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior, Documento de Trabalho 10/90; Francisco Gaetani e Jacques Schwartzman, Indicadores de Produtividade nas Universidades Federais, Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior, Documento de Trabalho 1/91.

20. Na expressão de Burton Clark, as Universidades são estruturas organizacionalmente rasas e fortemente apoiadas em suas bases "bottom heavy" dando às administrações centrais um papel de coordenação e liderança institucional, mais do que de gerência e management.

21. Algo do contraste entre as tradições históricas das universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, assim como de outras instituições brasileiras, pode ser visto em S. Schwartzman, A Space for Science - The Development of the Scientific Community in Brazil, Penn State Press, 1991.

22. Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo foram os nomes mais conhecidos.

23. Veja a respeito Alberto Venâncio Filho, Das Arcadas ao Bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil, São Paulo, Ed. Perspectivas, 1977; e Sérgio Adorno, Aprendizes do Poder - O Bacharelismo Liberal na Política Brasileira, São Paulo, Paz e Terra, 1988.

24. Michael J. Piore e Charles F. Sabel, The Second Industrial Divide -Possibilities for Prosperity. New York, Basic Books, 1984.

25. A contraposição entre a auto-regulação e os mecanismos de mercado foi tratada de forma brilhante no texto clássico de Albert O. Hirschman, Exit, Voice and Loyalty - Responses to Decline in Firms, Organizations and States, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1970.

26. Veja, sobre o arcabouço legal que protege as profissões e suas consequências, Marcelo Jacques M. da Cunha Marinho, Profissionalização e Credencialismo: A Política das Profissões, Rio de Janeiro, SENAI, Departamento Nacional, Coleção Albano Franco 8, 1986. Ver também Geraldo M. Martins, Credencialismo, Corporativismo e Avaliação da Universidade, Universidade de São Paulo, NUPES, Documento de Trabalho 6/90, 59 pp., 1990.

27. Por causa desta autonomia das universidades, o setor privado tem buscando aglutinar diferentes escolas isoladas de modo que possam satisfazer os requisitos mínimos de uma universidade, e pedir seu reconhecimento pelo governo. Pela atual legislação, o principal requisito é que a universidade tenha "universalidade", o que significa, na prática, que tenha cursos nas áreas de engenharia, saúde e ciências humanas e sociais. Além disto, ela deve dispor de recursos e equipamentos e pessoal docente qualificado. Em relação a todos estes ítens, tudo depende do grau de permissibilidade do governo, que nos últimos anos tem sido bastante alto.

28. A comparação com as universidades "privadas" norteamericanas, fortemente financiadas por contratos de pesquisa e um sistema inédito de doações privadas que não encontram paralelo no Brasil, basta para deixar isto claro.

29. Os requisitos mínimos dos vestibulares dos cursos menos disputados são tão mínimos que se confundem com resultados que podem ser obtidos de forma aleatória em testes de múltipla escolha. Quando isto é assim, a polêmica sobre vestibulares seletivos ou classificatórios torna-se vazia. Nos cursos mais disputados, por outra parte, os requisitos mínimos funcionam como mecanismos de escolha entre candidatos igualmente qualificados, e não existe relação clara em desempenho no vestibular e desempenho nos cursos.

30. Para um relato, veja S. Schwartzman, "Brazil: Opportunity and Crisis in Higher Education", Higher Education 17, 99-119, 1988. <