BASES DO AUTORITARISMO BRASILEIRO, Simon Schwartzman. Rio de Janeiro, Campus, 163 pp. 850.00

"Peripécias do autoritarismo," de Gabriel Cohn, Publicado em Leia Livros, n. 45, abril de 1982, seguido de uma resposta do autor)


Promessa e frustração. Nesses dois termos fica caracterizado o mais recente livro de Simon Schwartzman. A promessa não é pequena: nada menos que o exame das bases do autoritarismo no Brasil. Impossível, portanto, ficar desatento quando um pesquisador experimentado e prestigioso oferece uma contribuição nova sobre o tema. De onde, então, a frustração? Em primeiro lugar, do dejà-vu. Seja dito desde logo: a expectativa de uma contribuição nova não encontra resposta no livro recém editado, mesmo no confronto com a própria produção anterior do autor. Trata-se, no dizer deste, de um "re-exame aprofundado de outro texto seu, publicado em 1975, São Paulo e o Estado Nacional. Sugere-se assim que o material anterior foi reincorporado de tal modo que o novo texto ganhou outra unidade e coerência, conferindo nova significação aos dados e argumentos. Mas não é bem assim. O presente livro muito pouco mais é do que uma reedição revista e ampliada de São Paulo e o Estado Nacional. Ou seja, um trabalho com propósitos limitados ainda que significativos vê-se transformado em obra sobre problema incomensuravelmente mais amplo e complexo, com pouco mais que alguns remanejamentos do texto original e algumas referências à bibliografia posterior a 1974. De substantivo mesmo, só duas alterações são detectáveis: a ampliação da seção sobre o conceito de "patrimonialismo", à qual se atribui papel nuclear na análise e a substituição da parte final do livro de 1975 por texto extraído de artigo publicado em 1977 na revista Dados sobre "As Eleições e o Problema Institucional".

Não se trata de mera questão técnica. de distinguir entre um livro novo e uma reedição revista e ampliada de obra anterior - de que a segunda edição em dois volumes de Os Donos do Poder de Raymundo Faoro em 1975 é ótimo exemplo aqui, até porque versa sobre o mesmo tema e também um pouco porque Schwartzman continua limitando suas referências à primeira edição. de 1958. A questão é séria e difícil. Afinal. nenhum piloto de Fórmula 1 se arriscaria a entrar na pista com pneus recauchutados. Se um procedimento análogo a esse é adotado por um profissional de prestígio nas ciências sociais não será por mera imprudência pessoal. Seguramente. tem a ver com todo um estilo de trabalho na área, que se não é dominante no Brasil é pelo menos bastante influente para respaldar uma tendência de que o livro de Schwartzman representa tanto o aspecto melhor quanto o pior.

O melhor. no caso. está na coragem para enfrentar grandes questões substantivas com base numa formação intelectual que, ao menos pelos padrões convencionais, é bastante sofisticada. O pior está na superficialidade apressada. na ruminação interminável dos mesmos trabalhos, na atenção concentrada exclusivamente sobre um restrito grupo de referência profissional e num certo desrespeito pelo leitor final. A coisa toda tem algo de paradoxal, evidente nesse livro: enquanto se discutem as formas autoritárias de convivência e de organização política e se as contrastam com aspirações democráticas, acaba-se levando ao público mais amplo algo que só os especialistas podem ler criticamente - só que. pela própria organização da produção intelectual vigente ou em constituição, a critica especializada. quando ocorre, também tende a exercer-se no grupo fechado, longe das vistas dos profanos. Tudo isso leva a cogitar-se que o próprio confronto intelectual com o autoritarismo acabe ficando mais contaminado pelo seu objeto do que seus participantes diretos suspeitariam. No caso específico do livro de Schwartzman , alguns aspectos desse processo são exacerbados. É o caso da sua imperturbável indiferença a reparos já feitos a argumentos seus, como ocorre com as importantes observações de caráter metodológico de Fábio Wanderley Reis sobre o artigo de 1977. que não impediram a transcrição dos trechos criticados no atual livro sem qualquer indício de maior reflexão sobre eles.

Isso é especialmente interessante porque o próprio autor insiste em que a maior contribuição do atual livro diz respeito a uma elaboração conceitual, que ajude a "ver a formação política do Brasil com novos olhos". Comparado com o livro de 75, o atual é "obra mais declaradamente teórica e conceitual, que pretende ser mais abrangente e fundamentada", diz ele na apresentação. E, mais adiante (p. 38): "O eventual interesse desse trabalho não reside assim em novos dados e informações. que são poucos, mas nas propostas de organização do conhecimento e de interpretação dos fatos que apresenta". Portanto as dez páginas dedicadas ao desenvolvimento do esquema conceitual têm de fato um peso decisivo na remontagem do texto. Diante disso, não há como deixar de fazer uma ou duas referências a elas, ainda que necessariamente sumárias.

Em poucas palavras, o que Schwartzman faz nessas passagens é elaborar com mais apuro alguns temas básicos inspirados nas obras de Max Weber. particularmente no tocante ao conceito de patrimonialismo como forma de dominação política. Daí resulta um esquema pelo qual se chega à idéia de que o sistema político brasileiro ostenta traços melhor caracterizáveis como "neopatrimonialistas". Isso significa. nesse esquema, que a relação de poder envolvida é não-contratual, de caráter absoluto e, portanto, afim à natureza "tradicional" do patrimonialismo, mas o sistema normativo que as rege é "moderno", aproximando-se nisso do tipo de dominação chamado por Weber de racional-legal. Daí falar-se também de "patrimonialismo burocrático", num explícito esforço para desvincular o conceito de patrimonialismo de qualquer estreita conotação "tradicional". A inspiração básica dessa argumentação é claramente weberiana, mas há sérios problemas envolvidos. O uso imaginativo e inovador de Weber é algo a ser incentivado, embora ofereça dificuldades de monta. Paradoxalmente. um dos melhores exemplos brasileiros de incorporação fecunda de Weber à análise provém de um autor consistentemente não-weberiano: Florestan Fernandes, no seu estudo sobre A Revolução Burguesa no Brasil (que sequer é mencionado por Schwartzman, como se fosse possível escrever atualmente sobre o seu tema sem enfrentar esse livro, no qual, aliás. o artigo publicado em 1970 por Schwartzman, que forma o embrião de todas as suas cogitações posteriores nesse domínio, está devidamente consignado). Em termos sumários, a as dificuldades não superadas por Schwartzman são pelo menos três, todas derivadas de uma leitura acrítica de Economia e Sociedade e de comentaristas como Bendix. Em primeiro lugar usa-se um tipo de dominação mais para caracterizar um sistema político (ou. em termos mais próximos aos weberianos, a dimensão política da ação) do que para explorar a construção típico-ideal no que ela interessa, que é a dimensão explicativa, dada pelo estabelecimento de relações significativas entre tipos. Depois, apesar de criticar-se a idéia do continuo "tradicional-moderno", opera-se com a noção de "moderno" no mesmo nível analítico que a de "tradicional", esquecendo-se que em Weber as referências ao moderno (por exemplo, ao Estado moderno) são empíricas, não típico-ideais. Este ponto é fundamental, e tem vários desdobramentos no texto. Seria necessária uma argumentação muito mais cuidadosa do que a adotada para acomodar o esquema construído por Schwartzman no quadro teórico weberiano. Trata-se de tarefa intrincada que ele nem chega a contemplar. Finalmente. não fica esclarecida adequadamente a relação entre o novo desenvolvimento conceitual, de raiz weberiana, e a outra "perspectiva de análise", de inspiração parsoniana. adotada mais adiante, quando novamente os rápidos acréscimos e referências (nas páginas 119-120, onde evidentemente se deve ler "funcionamento" no lugar de " funcionalismo") são insuficientes para assegurar a integração teórica e a coerência interna da obra. E é, afinal, isso que se reivindica para o livro: a efetiva e coerente reintegração do conjunto numa perspectiva nova. Mas em vão. Por enquanto, temos apenas o esboço da contribuição inovadora prometida.

O ponto decisivo é, portanto, que Bases do Autoritarismo Brasileiro, pelo tema e sobretudo pelo seu tratamento e ainda como produto de um setor de ponta das nossas ciências sociais, suscita exemplarmente a questão da impregnação autoritária da sociedade nos seus mais recônditos e insuspeitados desvãos; até mesmo na produção e circulação do seu conhecimento.



Resposta do autor:

Rio de Janeiro, 20 de abril de 1982.

Revista Leia Livros
São Paulo.

Senhor Redator:

Comentando meu livro Bases do Autoritarismo Brasileiro, Gabriel Cohn lamenta que, ao se discutir o autoritarismo, "acaba-se levando ao público mais amplo algo que só os especialistas podem ler criticamente". Estaria ele sugerindo a criação de um Índex que separe os livros para todo o mundo daqueles que, como o meu, só deveriam ser autorizados para os que, como ele, são dotados de uma "visão crítica"?!

É uma pena, de qualquer forma, que Gabriel Cohn não utilize melhor sua visão crítica para ajudar o leitor. Ele acusa o livro e seu autor de várias coisas, e inclusive de "leitura acrítica" de Max Weber. Mas em nenhum momento diz o que o livro contém, nem sua opinião sobre os diversos temas ali discutidos (coisas como o padrão de colonização portuguesa, o papel da Estado na política, o problema regional no Brasil, o papel dos militares, os alcances do processo político-eleitoral, e a maior ou menor utilidade dos conceitos propostos para entender estas questões). O leitor "sem visão crítica" fica, se acredita no comentarista, achando que o autor do livro é uma pessoa ruim e autoritária, enquanto que o crítico é um profundo conhecedor de sutilezas weberianas que só ele entende.

É uma pena que ainda se adote este estilo de criticar as idéias com as quais não estamos de acordo. Creio que Gabriel Cohn tem toda a razão na conclusão de seu artigo: sua crítica "suscita exemplarmente a questão da impregnação autoritária da sociedade nos seus mais recônditos, e insuspeitados desvãos; ate mesmo na produção e circulação de seu conhecimento". Falou.

Atenciosamente, Simon Schwartzman <