GETÚLIO: DA HISTORIA PARA A VIDA

Simon Schwartzman

Comentário de Paulo Brandi, Vargas: da Vida para a Historia (com a colaboração de Mauro Malin e Plínio de Abreu Ramos), Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983; publicado no Jornal do Brasil, 16 de março, 1983.

Escrito originalmente como o principal verbete do ambicioso Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, ora em fase de conclusão no Centro de Pesquisa e Documentação em Historia Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, este livro está destinado a ser uma referência obrigatória e uma fonte de consulta permanente para todos os interessados na história política brasileira dos últimos 50 ou 60 anos. Em suas compactas 300 páginas, o texto trata de reunir tudo o que se sabe sobre a trajetória política do ex-presidente, as crises pelas quais passou, as conspirações que maquinou e que teve que enfrentar, as posições públicas que assumiu diante de cada evento e circunstância. É possível vermos, assim, a trajetória deste filho de tradicional família gaúcha, nascido na fronteira com o Rio Uruguai, participante desde a Escola de Direito da mocidade estudantil republicana e castilhista, e que da política gaúcha é levado em 1930 ao poder nacional, do qual é retirado após muita resistência em 1945, para retornar cinco anos depois. A carta-testamento de Getúlio Vargas, transcrita integralmente ao final do livro, tinha, como sabemos, o objetivo de garantir que o caudilho gaúcho pudesse de fato, ao deixar a vida, entrar na história. A historiografia getuliana, ao tratar de reconstruir quem foi este homem, quais suas origens, quem o cercava, como tomava suas decisões, tem a principal função de retirá-lo da história mitificada e devolve-lo, de alguma forma, à vida.

O tipo de historiografia feito por Paulo Brandi e seus colaboradores é aquilo que é denominado muitas vezes de "histoire événementielle," a história dos eventos, que foi objeto de muitas críticas dos defensores de uma pesquisa histórica mais global, mais interpretava, que se preocupasse mais com as grandes tendências e processos, e menos com a descrição das infindáveis manobras e jogos políticos dos homens do poder. Na realidade, o livro inclui partes sucintas sobre o contexto social e econômico dos diversos períodos estudados, e da política governamental nestas áreas, mas estes não são, evidentemente, suas partes mais importantes. Francisco Iglésias, no prefácio, faz uma importante defesa deste tipo de trabalho, assinalando os perigos da análise histórica excessivamente interpretativa, que despreza os fatos e trata de forçar a realidade nos moldes de uma camisa de força teórica qualquer. O factual, diz Iglésias, só pode ser desprezado depois de conhecido, e é isto que justifica o esforço de "volta aos fatos," de revalorização da pesquisa historiográfica de tipo mais clássico, que é a base indispensável para que interpretações mais ambiciosas deixem o nível dos mitos e se vinculem mais fortemente, também elas, à vida.

O outro tipo de críticas que este trabalho poderia receber seria daqueles que se opõem ao estudo das elites, em nome de uma história do povo e da sociedade. Não há dúvida que a historiografia tradicional, e particularmente aquela de má qualidade, tem muitas vezes a tendência de entender que a historia é a história dos grandes feitos dos grandes homens, e que a pesquisa história teria por objetivo ressaltar as qualidades destes grandes homens, para o exemplo das futuras gerações. Contra isto, propõe-se a história dos humildes, dos trabalhadores, do homem do povo, que seriam seus verdadeiros protagonistas. O livro de Paulo Brandi no entanto, não tem nada que se assemelhe ao culto dos heróis ou à mitificação das elites. O objetivo de seu trabalho não é de exaltar Getúlio Vargas, mas de ordenar e esclarecer o que ocorreu, da maneira mais informativa possível. A pessoa de Getúlio Vargas não sofre nenhuma tentativa de análise mais personalizada, moral ou psicológica (algo que talvez ainda merecesse ser feito), mas a descrição concreta de sua ação política mostra bem suas qualidades e defeitos, que certamente irão variar conforme as preferências de cada leitor.

Se a primeira parte da crítica anti-elitista não se aplica, será que se aplicaria a segunda, de que os historiadores deveriam deixar de estudar as elites, para estudar o povo? Certamente que não. Não há dúvida que a pesquisa histórica não deve se limitar ao estudo das elites, e que deve haver lugar e espaço para todos os tipos de história, desde que feitas com competência e respeito aos procedimentos normais de verificação e comprovação. Mas é tão equivocado dizer que história é a história das elites quanto dizer que ela só pode ser a "história do povo." O povo brasileiro, na medida em que se organizou e participou da vida nacional nas últimas décadas, o fez em grande parte através do getulismo e seus diversos desdobramentos, que até hoje continuam. Por menos que possamos simpatizar com as elites e o poder, não poderíamos jamais levar esta antipatia ao ponto de negar sua própria existência e influência sobre a vida de cada um.

O centenário do nascimento de Getúlio Vargas não pode ser entendido como uma simples homenagem póstuma a um político importante. Ele deve ser, isto sim, utilizado como uma ocasião importante para olharmos para trás com realismo, para tratarmos de entender o processo histórico social e político que nos trouxe até aqui, e que sem dúvida ainda condiciona, pesadamente, nossas alternativas futuras. Este exame retrospectivo exige, como condição prévia, que possamos sair do nível dos mitos, e entrar em contato com a carne e osso da vida dos que catalisaram, durante tantos anos, as energias, esperanças, ódios e frustrações de todos os brasileiros. Para isto, a contribuição deste livro é central. <