"Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político": Do nacionalismo ao desenvolvimentismo

Simon Schwartzman

Publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais (Belo Horizonte) 3, 1, 271-282, 1963

Em 1953, fixando as bases ideológicas do "Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política" - IBESP, afirmava o professor Hélio Jaguaribe que, "estruturalmente, a crise econômica brasileira consiste no fato de ter ultrapassado o seu nível de tolerância o processo de nosso subdesenvolvimento"(1). Caracterizando o problema econômico pela gravosidade da produção, escassez de bens de capital e desaparelhamento dos serviços básicos (p. 138); mostrando que este problema econômico, reflexo de uma economia de exploração, resultava em crise social, com a transformação das elites em classes privilegiadas, com a rebelião das massas e ausência de um projeto social coletivo (p. 139); verificando os reflexos culturais desta crise, em uma cultura verbalística, inautêntica e ineficaz; evidenciando a dimensão política da crise, com o Estado incapaz de realizar suas funções internas, como Estado-serviço, e externas, como órgão de soberania nacional (p. 140-1), o prof. Jaguaribe preconizava planejamento geral da economia brasileira através de sua socialização - que o autor buscava distinguir dos socialismos históricos contemporâneos (p. 146). Para realizar este planejamento se propunha, na esfera política, a liquidação do "Estado Cartorial" e do parasitismo burocrático, e pensava-se que era condição necessária para tal a socialização dos meios de produção. "Em primeiro lugar, porque a gestão socializada da economia exige se converta a burocracia cartorial numa burocracia gerencial de sorte a substituir os controles ditos espontâneos e automáticos do mercado pelos controles planejados. Em segundo lugar, porque só a socialização da economia suprime as relações de dependência econômica, fazendo desaparecer o poder econômico privado" (p. 159-60). E era necessário suprimir este poder econômico, base da economia de exploração, porque somente isto "permite a liquidação do Estado Cartorial e, desta forma, do parasitismo burocrático" (p. 155).

Quase dez anos depois, já desfeito o "Grupo de Itatiaia" que, após editar os Cadernos de Nosso Tempo" se constituiu no "Instituto Superior de Estudos Brasileiros" - ISEB - de papel tão fundamental na constituição da ideologia nacionalista no Brasil, o governo brasileiro, pela primeira vez em sua história, propõe-se a um planejamento econômico. É uma tentativa de superar a crise que já se manifestava em 1953, e cujas contradições desde então vem se agravando progressivamente, ameaçando um ponto de explosão, apesar da relativa manutenção da taxa global de crescimento econômico. Se examinarmos as condições em que procura se firmar politicamente o plano trienal do ministro Celso Furtado, defendendo-se das suspeitas de "estatismo" e "esquerdismo" que lhe lançam os grupos conservadores, e os advogados do regime de livre iniciativa em particular, em comparação com as afirmativas do prof. Hélio Jaguaribe em 1953, de que planejamento só seria possível com a liquidação do parasitismo burocrático, que este é função da economia de exploração, e que "a economia de exploração encontra sua base na propriedade privada dos meios de produção", concluiríamos facilmente do antagonismo entre o prof. Jaguaribe e o Plano Trienal. Mas, em 1963, a conclusão seria falsa.

Em 1958, no célebre livro que viria provocar (ou servir de pretexto a) seu afastamento do ISEB(2), o prof. Hélio Jaguaribe já dava uma possibilidade de sobrevivência ao regime de propriedade privada. "No regime vigente, que é o do capitalismo possível nas condições de nosso tempo e de nosso país, abre-se para a burguesia brasileira a oportunidade histórica de promover o desenvolvimento econômico-social do país". Mas esta oportunidade era uma oportunidade a curto prazo, e tinha como condições "a de instaurar-se o desenvolvimento mediante a máxima eficácia da função empresarial, dentro de uma política que conduza o capitalismo brasileiro a maior compatibilidade possível com as exigências da democracia social e de massas, particularmente no sentido de reduzir os privilégios de classe e igualar as oportunidades". Caso contrário, o socialismo, imperativo categórico em 1953, agora fantasma hipotético, cairia como o mal inevitável: "se estas condições não forem preenchidas pela atual geração, a burguesia brasileira perderá irremediavelmente sua oportunidade histórica. E a comunidade brasileira, sob o imperativo de realizar, a qualquer preço e de qualquer forma, seu desenvolvimento econômico-social, será conduzida a optar pelo socialismo, de uma forma tanto mais radical e revolucionaria tanto maiores hajam sido o tempo perdido e o malogro da burguesia no cumprimento de sua tarefa" (p. 99).

O Estado Cartorial, por sua vez, anteriormente obstáculo que era indispensável destruir para iniciar o planejamento, passa a ser considerado não mais como um todo a ser rejeitado em bloco, e sim como uma realidade nuançada que permite graus de funcionalidade: "a institucionalização de certos setores e atividades do Estado Cartorial lhes imprime sentido e lhes confere possibilidades de ação totalmente distintos dos que apresenta o Estado, em seu conjunto" (p. 274).

Se em 1953 o prof. Hélio Jaguaribe punha a solução da crise brasileira em uma socialização francamente revolucionária, ainda que não socialista - o que muitos identificaram como uma solução tipo fascista - em 1958 o autor já se define como nacionalista, divide as águas da política entre "nacionalistas" e "cosmopolitas", e propõe um modelo econômico para o Brasil: reorganização da infra-estrutura, racionalização da agricultura e comercialização de seus produtos, industrialização de base acelerada. E para estes objetivos, as condições: cambio realista, seleção de importações, aproveitamento dos recursos naturais, compressão do consumo conspícuo, aproveitamento ótimo da capacidade nacional de investimentos, mediante política fiscal e creditícia (p. 61-2). Em toda a obra, nenhuma afirmativa, antes tão enfática, da necessidade de eliminação do poder econômico privado.

E eis que em 1962 o fantasma da socialização já não mais paira sobre o Brasil: os países latinoamericanos que contam "com considerável grau de desenvolvimento econômico, acusando um produto liquido anual per-cápita superior a US$ 200 e têm uma burguesia empresarial dinâmica e capaz, tais países podem e devem instaurar um nacional--capitalismo, mediante um partido do desenvolvimento de liderança neo-bismarkiana"(3).

Qual é a crise atual do Brasil? Não é mais a crise de um sistema que chega a seu impasse, mas sim a presença de desequilíbrios que podem perturbar uma decolagem para o desenvolvimento já em marcha: a estagnação do setor rural, os desequilíbrios regionais e a inflação (p. 188). O planejamento é o menos intervencionista possível, afirmando que "nem considera a estatização da economia um fim em si mesmo, nem julga que, nas condições brasileiras, a socialização dos meios de produção seja um requisito necessário para o desenvolvimento" (p. 208).

Como é visto agora o Estado Cartorial? Olhando para atrás, para a época dos Cadernos de Nosso Tempo, o prof. Jaguaribe não vê mais a crise, não vê mais o ponto de saturação de tolerância do processo de sub-desenvolvimento: "No Ministério da Fazenda, sob a apta administração de Horácio Lafer, constituiu-se uma Comissão Mista Brasil - Estados Unidos, que reuniu excelente grupo de economistas brasileiros e norte-americanos". "O grupo brasileiro integrante desta comissão, contando com a colaboraçao de economistas como Roberto Campos, geólogos como Glycon de Paiva e engenheiros como Lucas Lopes, empreendeu admirável planejamento, orientado para a superação dos pontos de estrangulamento da economia nacional nos setores infra-estruturais e de base"(p. 178).

Quanto à definição dos termos da polarização ideológica nacional, o autor divide os "cosmopolitas" de 1958 entre "liberais" e"desenvolvimentistas", e os "nacionalistas" entre "socializantes" e também "desenvolvimentistas". A diferença entre os grupos desenvolvimentistas reside tão somente na ênfase dada ao papel do capital estrangeiro no processo de desenvolvimento, (p. 208), o que, sendo uma questão muito mais pragmática que teórica, e estando fora de discussão a vinculação brasileira ao campo ocidental (p. 212), os aproxima bastante.

Na realidade o autor indica que o "cosmopolitismo desenvolvimentista" teria tomado uma posição "liberal" meramente por ardor das discussões e criticas que tem recebido: "Nos debates suscitados por tais críticas, que tem assumido aspecto bastante sectário, o cosmopolitismo desenvolvimentista tem sido levado, sobretudo por Roberto Campos, a fazer causa comum com o liberalismo, com o eventual sacrifício de sua mensagem desenvolvimentista" (p. 205). Assim procedendo em sua análise, o prof. Jaguaribe procura definir uma posição tipicamente centrista, opondo-se simultaneamente às posições dos velhos grupos tradicionais, e - principalmente - ao setor "burocratizante" do"nacionalismo socializante", isto é, pelas massas trabalhistas (p. 207), além do setor "estatista" deste nacionalismo, que apesar de"sério", é falso em suas concepções e contaminado pelo burocratismo (p. 206). O resultado, a vigorar esta percepção tão nuançada das alternativas ideológicas, seria a superação da tradicional oposição entre o "nacionalismo" e "entreguismo", recobrindo aproximadamente as áreas da "esquerda" e da "direita", oposição que o prof. Jaguaribe foi um dos principais criadores: hoje, nada mais há que o identifique com a esquerda.

II

Como explicar esta trajetória intelectual? Poder-se-ia responder que a "decolagem" para o desenvolvimento brasileiro, datada pelo prof. Hélio Jaguaribe do governo Kubitschek, tenha alterado os termos do problema nacional, exigindo uma reformulação de seu equacionamento. Mas se assim é, porque levar a reformulação ao passado, e ver, na perspectiva de 1962, o governo Vargas como brilhante esforço de desenvolvimento, e não como o apogeu da crise e do Estado Cartorial, como era visto na perspectiva de então? Porque colocar, nos dias de hoje, o Visconde de Mauá como precursor do nacionalismo (p. 209) e buscar nele o gérmen do "entrepreneur" brasileiro, quando o período em que viveu era referido tão somente como uma continuação do processo histórico da economia de exploração em benefício da burocracia militar-fiscal, latifundiários e comerciantes, no estudo de 1953?

Mais simples seria passar ao nível subjetivo, e afirmar que o problema não é de uma trajetória intelectual, e sim individual, caminho percorrido por uma pessoa que, no decurso de 10 anos, passa de um revolucionarismo acadêmico à atividade empresarial, e reajusta sua ideologia às novas necessidades.

Aceitando uma ou outra explicação, o fato é que o Brasil de 1962 apresenta uma burguesia que se propõe a tomar as rédeas do país em suas mãos - ou acabar de tomá-las - não por vias revolucioná- rias, mas através de uma política de conciliação e compromissos. Ate onde é viável o projeto "neo-bismarkiano" preconizado pelo prof. Hélio Jaguaribe, ao qual o plano trienal do governo Goulart corresponde com extraordinária semelhança - planejamento estatal, ênfase na iniciativa privada, obtenção de auxílio econômico externo por via de regateio político - é evidente que só a historia poderá dizê-lo.

Trata-se, sem nenhuma dúvida, de uma aposta sobre o futuro. Partindo-se da premissa de que a crise brasileira será superada nos termos do sistema capitalista, ou neo-capitalista, a ponderação dos diversos componentes da situação nacional será distinta da dos que supõem que, dentro deste marco, a crise so poderá se agravar progressivamente. A nova posição ideológica implica uma nova perspectiva de análise, privilegiando aspectos que antes eram negligenciados, ao preço da ignorância de outros que eram vistos outrora como fundamentais. Este é, ao nosso ver, o grande interesse da obra do prof. Hélio Jaguaribe, permitindo uma comparação das diversas atitudes metodológicas tomadas por um mesmo autor, em função de novas opções ideológicas, em menos de uma década.

III

Tanto nos Cadernos de Nosso Tempo quanto em Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político, o autor acentua a necessidade de uma política econômico-social racional, que possa conduzir o processo de desenvolvimento brasileiro. Mas o sentido desta racionalidade é bem distinto em um e outro momento, não só quanto às áreas em que deveria intervir o esforço de racionalização, mas inclusive quanto às formas de sua instalação no meio social, e mesmo quanto ao conteúdo da expressão "racionalidade".

Em 1953 tratava-se da oposição entre uma estrutura social que havia esgotado seus limites de racionalidade, e as aspirações populares de melhores condições de vida, exigindo uma revolução que faria explodir as formas sociais arcaicas. "A burguesia urbana e latifundiária, que constitui a classe dirigente, deixou, efetivamente, de ser dirigente, transformando-se em mera classe dominante. A elite, como grupo social concreto, não é mais a elite funcional, isto é, não constitui mais aquele estrato da sociedade dotado, efetivamente, do comando do processo social" (p. 143). Por isso, a solução não poderia ser meramente técnica, mas exigia a intermediação de uma ideologia: "O fenômeno crise é um complexo integrado que não se compõe da soma dos problemas de que se compõe, e só comporta, igualmente, uma solução integrada (...). Mas este elemento integral e integrativo, de que se deve revestir a solução, caracteriza a necessidade de ela apresentar caráter ideológico" (p. 138). É evidente a necessidade de soluções especificas aos problemas específicos, mas o problema básico é o da vigência social de uma ideologia que seja portadora dessas soluções, e um planejamento o mais perfeito só seria uma política eficaz se esta política estivesse "contida no bojo de um movimento ideológico que a impulsione socialmente e a cujos princípios ela dê execução concreta" (p. 142-13).

Na nova perspectiva, entretanto, não existem sociedades em crise, mas apenas virtualidades não cumpridas, e afirma-se que "o processo histórico social é racionalizável e comporta, em principio, um incremento de sua racionalidade"(4). Se em 1953 a situação de irracionalidade e as condições de racionalização eram analisadas através de categorias corno "economia de exploração" e "classes dominantes", hoje a análise se refere a área territorial, renda "per cápita" e fontes de matéria prima (p. 99-100), e presença do "entrepreneur" burguês. O problema deixa de ser de estrutura social e passa à área da geografia humana, e os países latinoamericanos são divididos entre os que "precisam de um capitalismo de estado", os que não têm possibilidades de sobrevivência independente e os que se orientarão para o "nacional-capitalismo".

Para o último grupo, no qual se situa o Brasil, o problema da racionalização não é mais uma questão ideológica, e sim meramente técnica: não é a resultante de um processo social complexo, não é mais uma revolução, mas a simples aplicação de medidas técnicas a um meio que, dependendo da argúcia e da capacitação dos planejadores, será ou não racionalizado. Se em 1953 a validez do planejamento dependia da correção da análise que se realizava da crise, desde o ponto de vista dos que a padeciam, e da capacidade da ideologia, que derivava desta análise, em se afirmar como projeto coletivo da sociedade, a validez atual do planejamento vai depender "da consistência com que se haja analisado a situação, eleito objetivos compatíveis com a situação e compatíveis entre si", e "cuja vigência como norma depende, intrinsecamente, de sua validez, e extrinsecamente. da perduração das circunstancias externas ao plano por ele assumidas como tal" (p. 39).

Qual a perspectiva para a análise da situação? Quais são os critérios que permitem considerar a um grupo técnico como capaz de um análise real da situação de um país, e de propor soluções? Em Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político, o problema é simples: há que "confiar a um grupo de peritos a análise da situação", e a escolha destes peritos será simples desde que "o governo seja considerado legítimo e medianamente competente, e a escolha recaia em pessoas de reconhecida idoneidade" (p. 33).

Seria descabido atribuir ao prof. Hélio Jaguaribe, simplesmente, uma atitude tecnocrata e moralista, fazendo depender a validade de uma análise e de uma política social das condições pessoais de perícia e idoneidade dos técnicos. É ele mesmo que, em brilhante ensaio, afirmava em 1954 que "os fenômenos políticos não se originam, exclusiva ou mesmo principalmente, das manifestações da vontade individual, senão que de um sistema de causas e condições dentro do qual a vontade individual é apenas um fator e um fator em grande margem condicionado"(5). Mostrava como, em função do condicionamento social, uma perspectiva individual podia ser ou não realista, e distinguia mesmo um realismo "sociológico", próprio da perspectiva operária, "porque sua experiência pessoal é a da inanidade do indivíduo e a da sua dependência para com o meio social", do realismo "psicológico", próprio da burguesia, "cuja experiência pessoal é a da manipulabilidade dos negócios e da medida em que estes dependem da capacidade individual e das oportunidades favoráveis (p. 154-5).

Passando de uma perspectiva revolucionária à perspectiva de uma burguesia já instalada no poder, o prof. Hélio Jaguaribe dissolve o sentido sociológico da idoneidade e da capacidade (pois a "idoneidade" só tem sentido em função de um quadro específico de valores, e a "capacidade" é a capacidade de realizar estes valores), e os toma como valores absolutos, assumindo, em plena consciência, o realismo psicologista.

Daí a necessidade, agora sentida, de distinguir o aspecto "interno" dos aspectos "externos" do plano, que poderão ser, no mesmo nível, fenômenos sísmicos, inovações tecnológicas, guerras e "outros conflitos imprevistos (que) alteram o quadro das relações exteriores da comunidade", principalmente as mudanças de sistema político (p. 40).

Em 1958, quando ainda era importante a ideologia, afirmava-se que " a concepção dialética do nacionalismo brasileiro deve conduzir à compreensão de que se realizará mediante a transformação de nossas estruturas tradicionais. Constitui equivoco racionalista e estático, por isso, identificar o nacionalismo brasileiro com a salvaguarda das presentes características"(p. 55). Até então a guerra, a revolução, a mudança de sistemas políticos não se constituíam em "conflitos imprevistos", mero background irracional dentro do qual seriam possíveis "incrementos de racionalidade", mas uma realidade social dialética passível de compreensão racional e previsão, e dentro da qual caberia operar de modo político (tendo como grande arma a ideologia), de acordo com um racionalismo também sociológico e dialético. Hoje, em uma perspectiva burguesa, a racionalidade se limita ao nível das decisoes individuais, manipulabilidade dos negócios, e tudo que escapa a este âmbito é "externo" a ela, são as "condições externas" da programação racional.

O que subsiste como problema é a legitimidade, a representatividade do grupo no poder. A grande questão, para a realização do plano assim concebido, será o da estabilidade externa, ou seja, em primeiro lugar, a existência e manutenção de uma base de consenso que dê ao poder político autonomia de ação e permanência do tempo. Se a perspectiva outrora era a do processo de luta de classes, vista por quem visava a participar dela, a perspectiva atual tende a substituir a idéia de classes pela de estratos: "a observação empírica parece mostrar a tendência, em todas as sociedades diferenciadas, à formação de três estratos fundamentais, o inferior, o médio e o superior"; "a propensão dos estratos inferiores a melhorar seu regime de participação em detrimento das vantagens detidas pelos superiores, a propensão destes a conservar seus benefícios e ampliá-los às expensas dos estratos inferiores, geram tensão social entre os estratos e comandam as formulações ideológicas da sociedade" (p. 61). Assim procedendo, deixam de ter sentido todas as análises que, considerando as classes sociais como grupos que operam um fator especifico na divisão social do trabalho (com as conseqüências "superestruturais" subseqüentes) pretendem predizer da viabilidade ou não de dada estrutura econômico-social, e dizer da compatibilidade ou incompatibilidade objetivas entre diversas classes, em nível radical. A ênfase atual não repousa mais na discussão dos fundamentos de legitimidade de dada ordem social (o que implicaria em falar, inclusive, em alienação), e sim no conhecimento de suas condições de possibilidade, em termos sociológicos. A mudança de terminologia implica a passagem a uma perspectiva pragmática, da qual participa, também, a adoção de um esquema de análise de tipo Rostow, em que o processo social não é mais percebido como contraditório, e sim como continuo, onde a análise não se centra no conhecimento das estruturas de produção, apropriação e dominação, e sim no conhecimento das condições geo-econômicas (riquezas naturais, população, renda per-cápita) e psicológicas (presença de uma burguesia inovadora) para o desenvolvimento.

Interessado não mais nas contradições do processo social, e sim um sua continuidade, em suas condições de equilíbrio, o autor lança a categoria do neo-bismarkismo, "modelo político consistente no exercício, pelo chefe do governo, de uma arbitragem social, que assegura o máximo poder de investimento tolerável pela comunidade, regulando o regime de participação de cada estrato de acordo com sua efetiva capacidade política de reivindicação e assegurando aos empresários nacionais a liderança na promoção do desenvolvimento da comunidade, concebida como nação e de acordo com a programação traçada pelo Estado" (p. 68). A análise histórica que se faz a partir desta perspectiva não é mais a da trajetória do Estado Cartorial, a do estabelecimento de uma economia de exploração, mas sim dos mecanismos através dos quais o Estado vem cumprindo a função de arbitragem de classes e grupos.

Daí a estrutura do capitulo sobre o "processo de desenvolvimento" (p. 143 e ss.) em que o Império brasileiro e examinado na dupla perspectiva da"função de arbitragem" e do surgimento da atividade empresarial. Em relação ao segundo ponto, basta, referir-se à importância atribuida a Mauá na criação da atividade empresarial no Brasil, e o autor julgar ser necessário dar-lhe tamanho destaque em uma síntese tão curta que realiza do processo de desenvolvimento brasileiro. Em relação ao primeiro ponto, o autor utiliza uma perspectiva funcionalista, considerando que o Império possui uma base plebiscitária tácita que "decorre da necessidade experimentada pela sociedade brasileira de conciliar, dentro de condições éticas razoáveis, a unidade, a integridade e a estabilidade do país, com a diversidade, a falta de coesão e a instabilidade "(p. 144). Esta função arbitral é considerada "como uma função socialmente necessária quando o deficiente grau de integração social suscita antagonismos regionais ou luta de classe que ameaçam a unidade, a integridade e a estabilidade do país." (p. 147). O poder moderador, principalmente, é visto como cumprindo a função latente de manter a unidade e a autonomia da sociedade brasileira, satisfazendo as necessidades de estabilização das "forças sociais" emergentes na época. Desde este ponto de vista, e com a perspectiva histórica que hoje possui, o autor pode qualificar de "irresponsável" a Assembléia Constituinte que tentava limitar os poderes do Imperador. (p. 149-50).

O Império desaparece quando desaparecem as funções a que vinha preencher, da mesma maneira como cairia a República Velha e mais tarde entraria em crise o Estado Cartorial: quando as estruturas de arbitragem política deixam de corresponder às necessidades de arbitragem no campo econômico. E é o mesmo raciocínio funcional, adaptado às necessidades atuais do desenvolvimento, que preside a proposição atual do "neo-bismarkismo". O Estado deve cumprir uma série de funções correspondentes aos valores "desenvolvimento" da mesma maneira que o Império devia cumprir as funções demandadas pela "sociedade brasileira" e pelas "forças sociais emergentes". A validade do valor "sociedade brasileira" só hoje se impõe, quando o Brasil mostrou sua viabilidade nacional, mas não era tão evidente à época da independência, assim como não seria possível um conhecimento das "forças sociais emergentes" na época. Em relação à época atual, no entanto, o valor "nação", com as conotações contemporâneas, corresponde a uma opção política específica, e só em função dela pode-se propor uma função arbitral de "regular o regime de participação de cada estrato de acordo com sua efetiva capacidade política de reivindicação" e não propor, por exemplo, a aumentar o poder de reivindicação de um dado estrato. Como toda análise funcional que não explícita seus valores, as interpretações do prof. Jaguaribe são claramente conservadoras.

IV

Dissemos anteriormente que se tratava de uma aposta sobre o futuro. A análise de um processo social aberto nunca pode ser conclusiva, e o sentido dos fatos históricos presentes só será determinado após se produzirem seus efeitos, uma vez que é o sucesso um ou insucesso de um movimento político, por exemplo, que permitirá aos historiadores futuros considerá-lo como"irresponsável', ou lhe atribuir clarividência e funcionalidade. A aposta consiste em que, apesar disso, um juízo se impõe, uma opção intelectual ou política é imprescindível mesmo sem a totalidade dos dados da realidade nas mãos, e implica um esforço direto ou indireto que, se bem sucedido, conformará a realidade no sentido desta opção. O prof. Jaguaribe aposta no desenvolvimento capitalista, e deste prisma vê o passado e analisa o presente.

No quadro que estabelece das aspirações dos diversos setores de classe no Brasil, o autor atribui à burguesia urbana industrial, como valores positivos, o desenvolvimento e a programação, como valores admitidos, o enriquecimento, o desenvolvimento e a redistribuição da renda, e como valores negativos o status tradicional e a burocratização. (p. 200). É evidente que esta atribuição de valores só será real se a burguesia industrial assumir, em plena consciência, a linha de ação desenvolvimentista que lhe é proposta pelo prof. Jaguaribe. O que, ainda que se possa dizer que corresponda aos interesses objetivos desta burguesia, está longe de ser por ela pacificamente aceito. Não seria difícil argumentar que o rompimento com as estruturas tradicionais de exploração e dominação política - entre elas a estrutura agrária, a política de clientela, etc - subtrairia à burguesia industrial sua base de tranqüilidade política, e ela jamais realizaria tal rompimento; de outra parte, é sobejamente conhecida a desconfiança votada pelos setores empresariais a qualquer forma de estatização. Atribuir à burguesia industrial o valor "desenvolvimento" acima do valor "enriquecimento" e colocar este no mesmo nível do valor "redistribuição da renda" é dar-lhe uma consciência política a largo prazo cuja realidade seria muito difícil de demonstrar, no Brasil ou fora dele. Se partirmos da hipótese de que as vinculações políticas e econômicas da burguesia industrial urbana são de molde a impedi-la a cortar seus laços com os setores tradicionais e sair de seu principal objetivo atual, que é sem dúvida o enriquecimento, é evidente que a atribuição projetiva de aspirações a este setor será bem distinta.

Raciocínio semelhante pode ser feito em relação às classes proletárias. Não resta dúvida de que o proletariado urbano, não só o "cartorial" (marítimos, portuários, ferroviários) como inclusive o industrial das regiões mais desenvolvidas, é, nas atuais circunstâncias e pela força de pressão política de que dispõe, beneficiário das distorções do sistema econômico subdesenvolvido, e se orienta muito mais no sentido da redistribuição da renda e conservação das posições já adquiridas que no esforço para um desenvolvimento nacional (e nesse sentido só em termos projetivos seria possível distinguir, no movimento operário brasileiro, um "nacionalismo estatista" de um"nacionalismo burocratizante" (p. 206), cabendo muito mais uma distinção entre um movimento operário nacionalista e outro de tipo tradeunionista). Mas é evidente que os que orientam sua atuação política em função destes grupos operários trabalham com a conhecida tese de que a reivindicação econômica de classe tende a se transformar em reivindicação de poder político, que a reivindicação salarial do proletariado urbano é apenas uma etapa em um processo de politização, mormente quanto o sistema econômico está em crise. Se a hipótese do desenvolvimento neo-capitalista resultar correta, não resta dúvida que o nacionalismo "socializante" continuará caracterizado como "sincretismo, formado empiricamente, pela necessidade política, de caráter pragmático, de combinar aspirações contraditórias entre si, como as de redistribuição da renda, ainda que com sacrifício da produtividade e da taxa nacional de investimento, com as de desenvolvimento econômico e de nacionalismo" (p. 207). Caso contrário, se a solução neo-capitalista se mostrar inviável, impondo-se uma solução de tipo socialista - com a inevitável transformação dos mecanismos de apropriação social da renda, formação de poupança nacional e taxa de investimento - estará aberto o caminho para que estes setores evoluam do "capitalismo social" atual para uma posição política de largo alcance. E ante esta eventualidade, a persistência na denúncia da burocratização do proletariado, e a insistência em soluções neo-bismarkianas degeneraria pura e simplesmente em ditadura direitista, como parece ensinar a experiência argentina.

* * *

É em função desta aposta, também, que se realizam as mudanças de perspectiva indicadas anteriormente, pensando-se em "estratos" preferencialmente a "classes", preocupando-se com os mecanismos de "participação" ao invés dos de "apropriação" (p. 67), raciocinando-se em termos rostowianos ("pré-condições para o desenvolvimento", "decolagem"), fazendo centrar o exame dos modelos alternativos para o desenvolvImento não mais nas contradições estruturais, e sim nas forças sociais que presentemente impulsam ou não o desenvolvimento econômico (p. 82), pensando em termos funcionais.

Procuramos mostrar como esta nova perspectiva é inerente à nova posição ideológica. O problema fundamental estaria em verificar, entretanto, até que ponto estas formas de análise não impediriam a visão dos limites que realmente existiriam ao desenvolvimento sob o modelo neo-capitalista. As análises de 1953, revolucionárias, se evidenciaram ineficazes enquanto diagnóstico da crise e proposição de sua solução. Hoje, analisando não mais as condições de queda de um sistema político-econômico, mas as de sua conservação, caberia indagar até que ponto os fatores de crise não são intencionalmente negligenciados, até que ponto não estamos diante de uma ideologia no sentido pejorativo do termo. Se, entretanto, o modelo neo-bismarkiano se mostrar efetivo, não resta dúvida que as análises do prof. Jaguaribe terão constituído uma ordenação pragmática da realidade sumamente operacional para a burguesia industrial brasileira.

A verdade, só a prática histórica permitirá conhecer com segurança.


Notas

1. "A Crise Brasileira", Cadernos de Nosso Tempo, n 1, 1953, Rio, p. 120-160.

2. Nacionalismo na Atualidade Brasileira, ISEB, Rio, 1958.

3. Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político, ed. Fundo de Cultura, p. 109.

4. Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político, p. 18

5. "O moralismo e a alienação das classes médias", Cadernos de Nosso Tempo 2, 1954, p. 157. <