
Politica e
Honestidade Simon Schwartzman
publicado no Jornal da Tarde, 28 de outubro
de 1982
Houve um tempo em que boa parte do debate politico no Brasil era feito em
termos da honestidade e integridade versus desonestidade e falta de princípios
dos homens públicos. Agora, o tema parece voltar à tona, depois de ter,
aparentemente, "saído de moda" por muitos anos. Do lado da honestidade estavam,
em uma ponta, os que defendiam a integridade pessoal, as mãos limpas e o
comportamento impecável como as virtudes máximas dos políticos, das quais
decorreriam. as demais qualidades. Os representantes mais famosos desta
linha foram as chamadas "vestais" da antiga UDN, substituídas depois pela
vassoura carismática de Jânio. Na outra ponta da integridade militavam os
defensores da inteireza ideológica, que não admitiam acordos ou compromissos
com princípios e estavam dispostos a ir até o fim por suas idéias.
O que parece ter tirado de moda a honestidade e a integridade foi a demonstração
prática de que a honestidade pessoal e a pureza de princípios não são garantia
de política eficaz ou governo competente, e nem mesmo barreiras eficazes
à corrupção. A antiga "banda de música" levou água ao moinho do autoritarismo,
que não se mostrou menos infenso à corrupção do que regimes anteriores;
e o radicalismo ideológico, à direita como à esquerda, levou a um beco sem
saída atrás de outro, muitas vezes com o custo das próprias vidas dos que
nele se lançaram, ou gerando aventureirismos totalmente impensáveis em termos
dos princípios que lhes deram origem.
"Queimadas" a honestidade e a coerência de princípios, restou o realismo
do curto prazo, o cinismo do "rouba mas faz", o pragmatismo das alianças
e conluios oportunistas O resultado só pode ser desastroso. Despida de um
conteúdo moral e ético, a atividade política já tão esvaziada nós últimos
20 anos, perde ainda mais sua legitimidade e suas funções. Se as eleições
"provocam" a inflação, se os recursos públicos são malbaratados para eleger
políticos sem princípios, se as próprias oposições se prestam a conluios
e acomodações de toda ordem - então parece que têm razão os que dizem que
a política é inútil e enganosa, devendo ser substituída pela competência
e honestidade dos técnicos, administradores, cientistas e militares. Com
o fracasso das experiências autoritárias, no entanto, esta visão também
é insustentável, o que traz algum alento à política eleitoral. Mas é um
alento débil, prenunciando um circulo vicioso para o qual parece difícil
vislumbrar uma saída.
É possível pelo menos tentar esclarecer melhor a questão. Independentemente
de seu valor subjetivo e moral, existe um valor social óbvio no comportamento
honesto e coerente com princípios. O bicheiro e o contrabandista interessados
em manter seus clientes asseguram que os prémios serão pagos e que o whisky
não é falsificado. As lojas interessadas em vender bem garantem a qualidade
de seus produtos, e os profissionais, os padrões dos serviços que prestam.
Por que os políticos não podem fazer a mesma coisa?
O fato é que o contrabandista ocasional não é tão confiável quanto o já
estabelecido, da mesma forma que produtos sem nome na praça têm qualidade
mais questionável. O que a honestidade garante é a previsibilidade de comportamento
das partes envolvidas em uma relação qualquer que dure no tempo. Inversamente,
o que estimula a desonestidade é a falta de princípios, de um ponto de vista
externo, mas a instabilidade das situações. Se existe um sistema político
estável e permanente, isto faz com que exista um ganho para o político em
ser coerente com o que diz aos seus eleitores e com o que faz quando eleito.
Inversamente, se as eleições são um evento único, onde se joga o grande
destino da nação (ou dos políticos), então a luta é de morte, os fins justificam
os meios, e qualquer aderência mais rígida a princípios não passa de um
desprezível moralismo ingênuo e pequeno burguês.
Um dos fatores que estimula a falta de princípios na política é, pois, seu
caráter instável e aleatório, que faz com que só o grande golpe ou o sucesso
instantâneo justifiquem o investimento de muitos na vida político-partidária.
Um outro fator é uma concepção absolutizante e totalitária da vida política,
que caracteriza o envolvimento partidário de muitos grupos mais intelectualizados.
Nesta perspectiva, todas as questões - do controle da inflação ao funcionamento
das escolas, da liberação feminina à violência urbana - passam exclusivamente
pêlo poder político, que hoje tem, como possível porta de entrada, o processo
eleitoral. Trata-se de uma concepção evidentemente equivocada das coisas,
já que não é realista, e nem séria desejável, concentrar nas agências políticas
e governamentais o encaminhamento único destas e de tantas outras questões,
às expensas de outras formas de participação social. A consequência desta
absolutização da política é a introdução da política partidária em todos
os rincões da vida social, que vão um a um perdendo sua especificidade como
domínios sociais relativamente autônomos, dotados de normas de comportamento
e convivência próprios, e sendo devorados pelo vértigo da competição política
imediata. É óbvio que, a partir de uma visão destas, qualquer forma de participação
quê não seja político-partidária perde legitimidade - e o resultado é que,
para obter tão grandes fins, os meios parecem importar pouco.
A restauração da honestidade e da moralidade na vida política parece requerer
pelo menos duas condições. A primeira é que a atividade político-partidária
se transforme em um evento regular, previsível e repetitivo, que dê ensejo
ao estabelecimento de carreiras públicas baseadas no prestígio, na coerência
e na previsibilidade da ação dos lideres políticos. A segunda, paradoxalmente,
é que a atividade político-partidária, e a luta pêlo poder político de uma
maneira geral, percam um pouco da importância absoluta que geralmente lhes
é atribuida. Se existem outras coisas importantes além do poder, outras
formas de participação e ação social que não passam pelos órgãos legislativos
e executivos, então é possível que a vida político-partidária ganhe um pouco
mais de estabilidade, e, desta forma, mais respeitabilidade. A consequência,
se isto fosse possível, seria uma recuperação progressiva do prestigio e
da legitimidade da vida política, e o aumento de sua importância e escopo
de atuação.
Mas isto não é suficiente. Uma boa parte da atividade política consiste,
exatamente, em estabelecer quais questões podem ou devem ser disputadas
na arena político-partidária, que recursos são ou não legítimos nestas disputas,
e quais são as regras do jogo. Não existe um código de princípios prévio
pelo qual os políticos possam se guiar e serem aferidos, a não ser em termos
vagos e genéricos. O papel da liderança política consiste, exatamente, em
propor e defender as normas mais apropriadas de ação política, realizando
uma combinação entre as normas abstratas de uma ética de princípios e uma
ética de responsabilidade pelas conseqüências da ação.
Como bem observava Max Weber em seu texto clássico sobre a política como
vocação, existe algo de genuinamente humano e comovente nesta capacidade
do homem maduro de assumir a responsabilidade por seus atos e fazer disto
um princípio central de sua ação pública. Só a combinação deste tipo de
ética pessoal com as condições externas que possam favorece-la - e uma,
evidentemente, ajuda à outra - é que pode, a longo prazo, recuperar para
a vida política a dignidade quê ela merece e a verdadeira importância que
ela pode . ter. A opção é de cada um.
<