O campeonato da desigualdade e a identidade racial

Simon Schwartzman

(2001, não publicado)

A Conferência contra o Racismo de Durban, África do Sul serviu para colocar em pauta, no Brasil, uma questão importante, que é a necessidade de enfrentarmos a grande vergonha de sermos um dos países com maior desigualdade econômica e social em todo o mundo, situação que afeta sobretudo a população de classificada pelas pesquisas do IBGE como “preta” ou “parda”.  Não podemos esperar, simplesmente, que o desenvolvimento da economia - quando houver - vá nos tirar da liderança deste campeonato. É necessário atuar diretamente para reduzir a desigualdade, e isto se faz de três maneiras principais. Primeiro, ampliando as oportunidades educacionais, e melhorando a qualidade do ensino de massas; segundo, redistribuindo de forma mais justa os recursos públicos na área social; terceiro, criando de melhores postos de trabalho. Já avançamos muito na universalização da educação básica e na ampliação da secundária, ainda que as desigualdades de qualidade continuem sendo enormes; mas avançamos muito pouco na área dos programas sociais, com a permanência das grandes distorções das aposentadorias privilegiadas para funcionários de alto nível, ensino universitário gratuito para quem pode pagar, e concentração dos gastos de saúde nas regiões mais ricas. Também não estamos avançando como gostaríamos na ampliação de um mercado de trabalho mais qualificado, por razões de tipo econômico que não caberiam discutir aqui.

A questão racial se mistura e se confunde com a da pobreza e da desigualdade. Entre os 10% mais pobres do país (com uma renda familiar mensal média de 104 reais, dados da PNAD 1999 do IBGE), 31% se consideram brancos e 65% se definem como pardos ou pretos; entre os 10% mais ricos (renda familiar média de 4.440 reais), 81,3% são brancos, e 16.7% "pardos" ou pretos. Existem mais pretos e pardos pobres, mas também muitos brancos: até uma renda familiar de duzentos reais em 1999, haviam 5,3 milhões de brancos, e 9,7 milhões de pretos e pardos na população economicamente ativa. Esta situação nos coloca ante três perguntas: porque existem tantos pretos e pardos pobres? Será que esta desigualdade tem se reduzido com o tempo? E, o que se pode fazer para melhorar esta situação?

As pessoas podem ser e permanecer pobres por razões econômicas e estruturais, por preconceito e discriminação, e por razões culturais. Estas três coisas são interligadas. Nossa economia se formou na exploração do trabalho escravo, e mais tarde do trabalho dos imigrantes e dos operários urbanos. Em um círculo vicioso, não foram criadas posições de trabalho de qualidade para serem preenchidas por pessoas educadas e competentes, e pessoas que nascem em situações de pobreza e falta de cultura têm dificuldade de ter acesso e fazer bom uso dos escassos bens públicos que existem, como a educação e os serviços de saúde. Até os anos 30, as elites brasileiras eram abertamente racistas; negros, mulatos, índios e imigrantes eram considerados inferiores, e os intelectuais discutiam como fazer o branqueamento do país, ainda que nunca tivéssemos tido o apartheid da África do Sul e dos Estados Unidos. Depois da guerra, o racismo passou a ser proibido e se tornou moralmente inaceitável, mas continuam existindo preconceitos não ditos que afetam sobretudo o acesso de minorias ao mercado de trabalho.

Além das condições estruturais e do preconceito, existe uma outra dimensão que deve ser tomada em conta, que é a da cultura, e que se expressa através da questão da identidade cultural, racial, étnica e religiosa dos diversos grupos sociais. A melhor tradição democrática, que herdamos da França, nos ensina que o governo e as instituições públicas devem ser cegos para as diferenças de religião, cultura e etnia, que são atributos e direitos privados das pessoas e coletividades. As políticas oficiais de identidade racial, do nazismo ao fundamentalismo religioso, passando pelo nacionalismo e o "ethnic cleansing" mais recente, foram responsáveis por muitas das principais tragédias que o século XX conheceu. No entanto, sabemos também que é pela busca da identidade que as pessoas se organizam, desenvolvem aquilo que se chama hoje de "capital social" e "capital cultural", e conseguem reforçar sua auto-estima e melhorar sua condição de vida, conforme seus valores e preferências. Ao contrário do que pensávamos ou poderíamos desejar meio século atrás, nem a democracia racial brasileira nem o melting pot americano chegaram a se realizar plenamente, fazendo com que as culturas e políticas da identidade voltassem ao primeiro plano. Hoje sabemos como é importante que as pessoas se juntem, pesquisem suas origens e sua história e se mobilizem para defender seus direitos, lutar contra a discriminação e o preconceito, e construir ou reconstruir suas identidades e sentido de pertencimento. Milenarmente, as principais formas de construção da identidade sempre foram a religião e a etnia, passando, muitas vezes, pela língua e pela raça, e hoje não é diferente.

A questão que se coloca, então, é a da linha que separa uma política positiva de afirmação de identidade de uma política racista e discriminatória de preconceitos e contra-preconceitos. O princípio fundamental deve ser o de que as políticas de identidade devem permanecer no âmbito privado, da sociedade civil, enquanto que a esfera pública deve continuar sendo universal e baseada na igualdade formal de todas as pessoas. Quando o setor público começa a discriminar, ainda que "positivamente", em nome da raça ou da cultura; e, pior, quando o governo começa a resolver quem pertence ou não pertence a determinado grupo, e associar a isto benefícios e privilégios, ainda que com as melhores intenções, as portas se abrem para reforçar o preconceito e os conflitos étnicos, resultando em problemas potencialmente mais graves do que os que se pretende resolver.

É lamentável, e  típico da tradição elitista brasileira, que quando o tema da desigualdade racial é colocado em pauta, o que mais ganha destaque é a proposta de criar quotas nas universidades públicas para "negros," como se o grande problema estivesse aí, e não nas carências que impedem o acesso de milhões, negros ou brancos, à boa educação e aos bons empregos. Imaginemos por um momento como seria implantada esta política de quotas. Seria preciso, para começar, dividir a população entre "negros" e "brancos", como na África do Sul e nos Estados Unidos. Mas, como mostrou Oracy Nogueira décadas atrás, no Brasil não existe o “preconceito de origem” como nos Estados Unidos, e sim um “preconceito de marca” que faz com que o conceito de “negro” não se aplique como naquele país, que já é fortemente dividido e classificado em termos raciais. No Brasil, a maior parte da população brasileira é racialmente mista, e a grande maioria se recusa a ser classificada racialmente.  Quem seriam os negros? Os cinco por cento que se declaram como pretos nas estatísticas do IBGE? Os 45% que se declaram pardos? Ou o número desconhecido dos que se declaram brancos, mas cujas origens se perdem nos séculos de miscigenação entre índios, brancos, árabes e negros, não só dos brasileiros, mas também dos portugueses?

Uma coisa é fazer estatísticas gerais sobre "cor" ou "raça", para pesquisar e entender a situação de grandes grupos sociais; outra coisa muito distinta é começar a distribuir carteirinhas raciais, que possam dar acesso especial à universidade e a outros benefícios que possam ser inventados. Quem se candidata? Quem decide quem é quem? O delegado da esquina? O diretor da escola de samba? O vereador? Há quem diga que, no futuro, isto poderia se resolver de forma “científica,” com o exame do DNA das pessoas, como se a questão da raça fosse realmente biológica, e não social e cultural. Quantos por cento de "genes negros", se é que isto existe, seriam necessários para conseguir uma vaga na universidade sem passar pelo vestibular? E as pessoas que preferem conquistar seu lugar na sociedade pelo mérito próprio, e não pela posse de uma carteira racial, como ficariam?

O argumento de que políticas de quota nas universidades são necessárias porque a distância entre negros e brancos no Brasil não está diminuindo não se sustenta pelos dados disponíveis. Na medida em que o acesso à educação básica aumenta, as diferenças raciais na população mais jovem diminuem. As políticas mais adequadas para reduzir os problemas da pobreza e da desigualdade que afetam grande parte da população de origem negra, mas também muitos outros de origem branca ou índia, são as de oferta de melhores escolas e mais apoio social e trabalho comunitário junto às populações mais carentes, sem pedir nem impor carteiras raciais para ninguém. Entidades civis de cunho cultural ou religioso, que estejam trabalhando junto às comunidades para melhorar suas condições de vida, podem e devem receber apoio público, e muitas delas poderão dar ênfase à identidade e à cultura negra, ou a outras formas de identidade, como as religiosas.. Além disto, é necessário conhecer melhor e combater todas as formas de discriminação étnica e racial no mercado de trabalho, estimulando e valorizando o pluralismo e a igualdade de oportunidades. Os problemas com o ensino superior brasileiro não passam pela discriminação racial, e sim pela incapacidade que temos de proporcionar uma educação superior de massas apropriada a um contingente cada vez maior de pessoas, de todas as cores, que saem de um sistema de educação secundária precário e não encontram cursos superiores adequados à sua formação e necessidade de trabalho, como escolas técnicas e profissionais acessíveis e de qualidade.

Problemas de discriminação e segregação racial existem e devem ser enfrentados, inclusive com  apoio público a iniciativas de ação afirmativa por parte da sociedade, mas sem perder de vista que eles fazem parte de um conjunto de questões e problemas muito maiores, que não se resolvem por declarações, decretos ou leis, por mais politicamente corretos que sejam. <