Governo erra ao priorizar combate ao analfabetismo, diz sociólogo
Para ele, o desafio atual é investir na qualidade da educação básica e acabar com o chamado analfabetismo funcional

Simon Schwartzman

Entrevista a Rosa Lima, Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) 04.04.2003

O sociólogo Simon Schwartzman acaba de voltar de dois meses na Universidade de Oxford, onde participou de uma série de seminários dedicados a discutir a educação no Brasil. Organizados conjuntamente pelo Departamento de Educação e o Centro de Estudos Brasileiros da universidade, os seminários cobriram da educação básica à pós-graduação brasileira e fazem parte de um livro, sob a coordenação de Simon, a ser publicado até o fim do ano, tanto na Inglaterra quanto no Brasil. Num dos trabalhos que lhe coube, Os desafios da educação no Brasil, ele apresentou um amplo painel do setor, falando dos avanços verificados nos últimos anos e, principalmente, dos grandes obstáculos a serem transpostos para se chegar à qualidade desejada na educação brasileira. Nesta entrevista, Simon Schwartzman comenta esse trabalho e faz um breve balanço da situação educacional do país. Para ele, o ministro Cristóvão Buarque erra ao eleger o combate ao analfabetismo como uma de suas prioridades. Eu acho essa pauta completamente equivocada. Esse é um falso problema. O problema atual é o de resolver o analfabetismo funcional na educação básica, diz o pesquisador e consultor, que coloca ainda a autonomia universitária e a reformulação do ensino médio como outros dois grandes desafios para os próximos anos no setor.

Nesse seminário que você apresentou recentemente em Oxford, sobre os desafios da educação no Brasil, você falou dos muitos problemas que enfrentamos, mas destacou também que houve elegíveis avanços no setor nos últimos anos. Você poderia nos falar um pouco desse quadro atual da educação brasileira?

O que eu acho importante é que há uma mudança significativa de uma problemática do passado, de acesso à educação, para uma problemática de qualidade. Essa mudança de perspectiva é muito importante porque ainda hoje muita gente tem na cabeça que o Brasil é um país onde as pessoas não conseguem chegar à escola ou que não existem recursos para a educação. Na verdade, se você olhar, o acesso à escola hoje é praticamente universal. São muito poucas as crianças que hoje não freqüentam a escola. O problema não está mais aí. Mas sim numa grande dificuldade de funcionamento da escola, de recursos, equipamentos, de qualificação do professor, que são problemas muito mais difíceis de superar. É relativamente fácil criar uma escola e mandar uma criança pra lá, mas é muito mais difícil assegurar que elas estão realmente aprendendo o que precisam.

O problema não estaria mais em chegar é escola, mas em ficar nela e sair de lá bem formado?

Falando de forma bastante genérica, a criança fica na escola até os 13, 14 anos. Quando chega nessa idade, ela já tem mais recursos para ganhar algum dinheiro ou tem outro tipo de motivação, e, se a escola não consegue retê-la, ela sai. E por que a escola não consegue reter esse aluno? Aí você tem um problema muito sério, que é o fato de que muitas crianças na verdade não aprendem. E tradicionalmente o que a escola brasileira fazia era marginalizar essa criança que não aprende, fazendo-a repetir de ano. Todos os estudos sobre o impacto da repetência mostram que ela não tem nenhum efeito pedagógico, ao contrário, a criança que repete o ano vai ficando cada vez pior, vai convivendo com outras mais novas que ela, vai apresentando problemas de comportamento, perdendo a motivação e acaba abandonando a escola. A outra conseqüência dessa situação é que hoje o Brasil tem uma taxa de matrícula bruta de 130%, ou seja, há 30% de crianças a mais matriculadas no ensino fundamental do que a população correspondente de 7 a 14 anos. O sistema tem um enorme desperdício porque ele retém as crianças mais anos do que devia, não necessariamente dando educação e gastando 30% a mais, que é um dinheiro que poderia ser mais bem investido. Isso demonstra uma irracionalidade do sistema que levou a uma série de políticas para fazer a criança acompanhar seu grupo de idade. O que se verificou é que mesmo sendo melhor a criança acompanhar seu grupo etário do que repetir o ano, isso só não é suficiente. A promoção automática precisa vir acompanhada de mecanismos de compensação, de reforço, de atendimento especial, que a maior parte das escolas não está preparada para oferecer. Nós fizemos um grande esforço nos últimos anos de ajustar a defasagem idade/série, mas não houve esforço correspondente para tratar das conseqüências dessas políticas.

Nesse trabalho você fala também que o Brasil não conseguiu estruturar uma carreira acadêmica na área de educação e que os problemas corporativos acabam sobrepujando o interesse em investir no ofício de ensinar.

Se você olhar os professores que são funcionários dos estados do Sul e do Sudeste, eles não têm uma situação tão ruim assim. Os salários que eles recebem não são piores do que de pessoas com o nível de educação equivalente e eles têm até certos benefícios como o da aposentadoria mais cedo, que outros não têm. Há um certo mito em relação à questão de que o professor é mal-tratado. Nós temos um problema de baixa auto-estima, sim, mas essa é uma questão de certa forma inevitável. No passado, quando não havia ensino universitário praticamente, a idéia de seguir uma carreira no ensino secundário podia atrair pessoas com uma vocação intelectual maior. Ser professor do Colégio Pedro II ou do Instituto de Educação, nos anos 30 e 40, era uma coisa prestigiosa. Com a criação da universidade, essas pessoas mais capazes intelectualmente passam a ir para lá. Então, em geral, quem fica na educação básica ou média é aquele professor que não consegue disputar os lugares de maior prestígio. Isso é um problema universal, nenhum país consegue lidar com isso muito bem. O que você pode fazer em relação a isso? Em primeiro lugar, talvez abandonar a idéia de que ser professor é uma profissão para a vida toda. Ser professor poderia ser uma etapa da vida de um profissional. Isso é uma questão que precisa ser seriamente repensada. Outra coisa que acontece é que na medida em que você faz do professor uma carreira que não tem muita perspectiva, você gera no meio dessas pessoas um ambiente de muito ressentimento. Acaba-se gerando a idéia de que ensinar não é o mais importante, o importante é você melhorar as condições sociais, é mudar a estrutura social, etc. Isso acaba levando a uma situação em que aquilo que o professor deveria estar mais preocupado em aprender bem, que é seu ofício de ensinar, ele acaba não aprendendo.

E isso tem conseqüências muito negativas no aprendizado dos alunos, não é?

Com certeza. Um dos problemas da educação no Brasil é que o grau de analfabetismo funcional é muito grande. Muitas crianças nunca aprendem a ler e escrever efetivamente. Os dados do Saeb (Sistema de Avaliação do Ensino Básico) são muito ruins. Se você adotar como definição de alfabetizada uma pessoa que é capaz de ler um texto e entender o que está lendo, o número de analfabetos é muito grande. Outros paises do mundo resolveram esse problema há cem anos. Os paises europeus tinham sua população 100% alfabetizada em 1900. Nós estamos em 2003 e ainda estamos lidando com analfabetismo funcional nas escolas. Você resolve boa parte desse problema ensinando ao professor uma receita do que ele tem que fazer. é uma tecnologia que ele tem que aprender. É preciso dar a ele materiais adequados, um bom livro, etc. Não é nada do outro mundo. Mas nós não desenvolvemos isso. Ao contrário, desenvolvemos muita ideologia de resistência a isso, que diz que o professor deve ter autonomia para fazer o que acha que deve fazer, deve ter criatividade, liberdade, e aí vira qualquer coisa e a criança não aprende. A outra questão que está associada a essa, e as pesquisas mostram isso com clareza, é que o desempenho escolar depende muito da condição social da família da criança. Se a criança tem os pais educados, tem livros em casa, acesso a informação, ela se alfabetiza praticamente sozinha. Já a criança que vem de uma família mais pobre não tem acesso a nada disso. Então você tem que ter um trabalho muito mais intenso com essa população e não simplesmente dizer que é um problema social e que nada pode ser feito. Isso requer todo um trabalho de formação do professor que nós não resolvemos ainda.

Que ações governamentais foram mais relevantes nos últimos anos na área de educação?

Acho que a criação do Fundef (Fundo de Valorização do Magistério e de Desenvolvimento da Educação Fundamental) talvez tenha sido a ação mais importante do governo Fernando Henrique na educação. O Fundef permitiu que os municípios se envolvessem mais com a questão da educação. Houve uma distribuição mais efetiva dos recursos, na medida em que o município que não se encarrega da educação perde os recursos, que vai para outros setores, e ele estabelece um piso básico de gastos pagos por aluno e um piso de pagamento do professor. O Fundef faz essa distribuição de recursos dentro de cada estado, ele não redistribui entre estados. A idéia seria que o governo federal entrasse para compensar os estados com menos recursos, mas isso não foi feito. Mas dentro dos estados o Fundef funciona. Às vezes você lê nos jornais: “Fraude no uso Fundef”. Agora você pode falar de fraude porque existe um fundo para você acompanhar o uso do dinheiro. Antes a gente não sabia de nada, era qualquer coisa. Então acho que essa foi uma grande contribuição.

Outra grande contribuição foi a implantação dos sistemas de avaliação nos três níveis de ensino, apesar da grande resistência dos grupos mais politizados, principalmente dentro das universidades federais.

E na verdade o programa do governo Lula dizia que ia acabar com o Provão. O atual governo não está fazendo isso, mas isso fazia parte do programa do candidato. Eu acho que o Provão tem problemas, evidentemente, mas ele é sem dúvida um grande avanço. Ele coloca a questão da qualidade da educação de maneira transparente e isso é um dos efeitos mais positivos dele. Os sistemas de avaliação foram de fato um grande avanço.

Ainda dentro do ensino universitário, nenhum governo conseguiu ainda encarar de frente essa enorme distorção que faz com que a universidade pública seja freqüentada em sua maioria por quem estudou em escola particular, enquanto os que estudaram em escolas públicas só conseguem vaga nas faculdades particulares.

Talvez a distorção que se fale menos e que vale a pena acentuar é na pós-graduação. Porque praticamente todo mundo que faz pós-graduação no Brasil tem bolsa de estudos. Ou seja, não só não paga como ainda recebe para estudar. Segundo uma série de estudos feitos recentemente pelo Ministério da Educação, pela Capes, mais especificamente, cerca de 50% dos que fazem pós-graduação no Brasil vão trabalhar na iniciativa privada e ganham muito bem porque conseguem uma posição diferenciada no mercado de trabalho. Tem sentido o governo estar financiando gratuitamente e ainda dando uma ajuda em dinheiro para as pessoas avançarem desse jeito e ainda terem uma posição privilegiada no mercado de trabalho? Eu acho que essa deformação das bolsas de pós-graduação, que são feitas em nome do desenvolvimento científico do país, acaba sendo mais séria até do que a distorção verificada no ensino superior. O governo deveria no máximo emprestar o dinheiro. Essa questão do crédito educativo seria o mais justo também para o ensino superior. Como a gente sabe que no Brasil o título universitário dá um ganho muito importante no mercado de trabalho, faz todo sentido que haja um sistema de crédito educativo e que o aluno pague pelo curso, ainda que de maneira diferenciada no tempo. Estuda de graça e paga quando estiver ganhando. O atual sistema de subsídio ao ensino superior no setor público é evidentemente um sistema socialmente injusto.

Ele acaba transferindo recursos para quem precisa menos deles.

É uma questão de justiça social. Ainda que você não pudesse financiar o ensino universitário com o dinheiro de mensalidades. Há estudos que mostram que você conseguiria arrecadar com isso no máximo 20 ou 30% dos recursos necessários para se manter as universidades. Ainda assim, seria um recurso importante.

A distorção no uso dos recursos para as universidades públicas está também na enorme despesa que representam as aposentadorias de professores e funcionários e a manutenção dos hospitais universitários. Você poderia falar um pouco disso?

O problema das aposentadorias é comum a todo o serviço público e representa um ônus altíssimo para as universidades federais. Nós temos um sistema universitário que funciona como uma repartição pública. Isso é uma grande deformação. Uma universidade não pode ser tratada como uma burocracia. Ela precisa ter autonomia de gestão, precisa ter pessoal flexível, outras regras de funcionamento. Você não pode tratar um professor universitário como um funcionário público. Há que se ter salários diferenciados dentro de uma estrutura autônoma de gestão, com responsabilidade por seu desempenho. Isso tudo sem perder seu caráter de universidade pública. Hoje em dia um aluno pode levar quatro anos para se formar em engenharia na universidade do Rio de Janeiro e seis na universidade de Minas Gerais. O governo não sabe quanto ele está disposto a pagar para formar um engenheiro nas universidades federais. Cada universidade manda sua conta para o governo federal e ele paga o que elas pedem. Não existe nenhum mecanismo neste país para dizer o que é um gasto razoável, não há políticas de uso eficiente de recursos. Os gastos de pessoal, que representam 90% dos gastos das universidades federais, não são controlados e você acaba tendo distorções enormes.

Uma das prioridades anunciadas pelo ministro Cristóvão Buarque para a educação é o combate ao analfabetismo. Você concorda que este seja um item prioritário na agenda do setor?

Eu acho que essa pauta de combate ao analfabetismo é completamente equivocada. Esse é um falso problema. Qualquer estudo sério mostra que o problema do analfabetismo está concentrado nas populações mais idosas da área rural do Nordeste. Essas populações não são educáveis em grande parte. É um trabalho muito árduo e de muito pouco resultado. Não é só ensinar essas pessoas a ler e a escrever, mas fazê-las incorporar o uso da leitura e da escrita e o trato com números ao seu cotidiano. Isso representa uma mudança de cultura muito grande e muito difícil de se conseguir. Se você olhar as populações mais jovens, o índice de analfabetismo vem caindo sensivelmente com a universalização do acesso. O problema atual é o de resolver o analfabetismo funcional na educação básica. Isso significa você qualificar professores, introduzir metodologias e materiais pedagógicos adequados para alfabetizar e educar. Isso significa acompanhamento mais preciso do aluno para você saber se ele está realmente aprendendo, usar o sistema de avaliação para saber o que está realmente acontecendo com aquele jovem que está na escola, ter programas para aqueles que não conseguiram acompanhar, seja de aceleração de aprendizagem, programas para formação de jovens e adultos, etc. Há toda uma problemática de qualidade da educação básica que precisa ser tratada. Este é o problema principal. E até agora eu não vi nada do atual ministério tratando desses assuntos.

Nos outros níveis de ensino, quais seriam a seu ver as ações mais importantes?

No nível universitário, acho que seria importante levar adiante o projeto que o ministro Paulo Renato tentou em algum momento, mas abandonou, de autonomia efetiva das universidades públicas, com responsabilidade. E a educação média é um problema muito complicado também. São três anos em que os estudantes estão na escola e você não sabe efetivamente o que eles estão aprendendo ali. Acaba funcionando como uma passagem com um diploma no final para jovem poder entrar na universidade. O ensino médio também precisa ser cuidadosamente revisto, porque há toda uma questão de conteúdo e de pertinência que precisam ser tratados. Esses são para mim os itens mais urgentes da pauta na área de educação.


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