
O Intelectual
e o Poder: A Carreira Política de Gustavo Capanema Simon
Schwartzman
Publicado em Centro de Pesquisas e Documentação em
História Contemporânea do Brasil (CPDOC), ed., A Revolução de 30.
Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1983
Introdução
Os intelectuais da rua da Bahia
Iniciação política de Gustavo Capanema
No poder, em Minas
Francisco Campos e a Legião de Outubro
O pacto com a Igreja
Alceu Amoroso Lima e o Ministério da Educação
Capanema e a Cultura
Notas
Introdução
Um dos grandes méritos dos arquivos pessoais é que eles nos permitem ir
além das versões oficiais e públicas dos fatos, aproximando-nos das pessoas
de carne e osso, que são os verdadeiros protagonistas da história. A busca
desta dimensão mais profunda não deve ser confundida com a crença na existência
de uma "história secreta", mais verdadeira e não confessada, em
contraposição à versão pública e supostamente enganosa dos eventos. Não
há dúvida de que a versão oficial da história é freqüentemente parcial e
enganosa, e existem certamente eventos importantes que jamais vêm a luz,
a não ser pelo trabalho exaustivo do pesquisador. No entanto, a própria
complexidade dos fatos históricos faz com que seja quase impossível deturpá-los
intencionalmente; da mesma forma, alguns detalhes íntimos ou secretos podem
certamente dar mais cor e detalhe ao que é publicamente sabido, mas dificilmente
lhe alteram o sentido.
A pesquisa em arquivos pessoais não tem, portanto, o objetivo de descobrir
o que "verdadeiramente" aconteceu, dentro de uma visão conspirativa
da história, e muito menos o de revelar fatos e detalhes que só interessam
à intimidade das pessoas. O que este tipo de material permite é adquirir
uma visão muito mais rica e complexa dos fenômenos históricos, a partir
das motivações e visões de seus protagonistas. Que estes protagonistas fazem
parte de um contexto muito mais amplo, sobre o qual têm pouca influência,
e que muitas vezes nem sequer chegam a entender, não precisa ser repisado
Captar suas motivações e os propósitos de suas ações não significa, pois,
necessariamente, aceitar que as coisas ocorreram como eles as viam, percebiam
ou queriam. significa, isto sim, compreender como eles compreendiam o mundo
que os circundava, e como agiam a partir desta compreensão.
Gustavo Capanema se educou junto à elite intelectual mineira, viveu a excitação
revolucionária dos anos 30 e ocupou por muitos anos uma posição central
em relação aos assuntos de educação e cultura no país. Estes foram também
os anos da ascensão do fascismo, da guerra civil espanhola, da intensificação
dos conflitos ideológicos, do Estado Novo e do eventual alinhamento brasileiro
contra as potências do Eixo. Sua carreira, sua obra política e administrativa
estão profundamente marcadas por estes eventos. Seu arquivo pessoal, parte
do acervo do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea
do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, revela um homem aparentemente alheio
às ideologias, profundamente orientado pelos valores do mérito intelectual
e da inteligência, e sem dúvida consciente dos problemas e requisitos da
conquista e consolidação das posições de poder. Capanema foi um ponto focal
para os intelectuais e educadores que, nos anos 30, tratavam de dar sentido
e orientação ás coisas de nossa cultura; seu arquivo reúne correspondência
e outros materiais referentes às principais figuras intelectuais da época,
muitas das quais continuam vivas e atuantes.
O presente texto é o resultado de um primeiro e superficial exame dos materiais
constantes do Arquivo Capanema, e tem como principal objetivo chamar a atenção
para uma série de temas e questões que estão a merecer pesquisas mais profundas;
ao mesmo tempo, revela algo da riqueza documental de que o arquivo dispõe.
É, também, embrião de um livro de maior fôlego sobre Gustavo Capanema, a
política e a cultura nacional.
Os intelectuais da rua da Bahia
Elites tendem a gerar seus intelectuais, e Minas Gerais não seria exceção.
São as elites que têm recursos para mandar seus filhos às melhores escolas,
dar-lhes familiaridade com diversas línguas, abrir-lhes o mundo dos livros
e das idéias. Ao mesmo tempo, os homens de elite tendem a viver muito, a
manter suas posições de poder até a velhice, e, desta forma, custam a passar
para os mais jovens suas posições. Nem todos os intelectuais, evidentemente,
têm esta origem, mas este parece ter sido ocaso do grupo dos jovens que,
na década de 20, agitavam as ruas de Belo Horizonte com suas estrepolias,
acompanhavam como podiam os modismos intelectuais do Rio e São Paulo e se
preparavam, uns para a vida política, outros, principalmente, para a vida
contemplativa. Basta ler as memórias de Pedro Nava para reconhecermos a
intensidade destas experiências e as marcas profundas que elas deixaram
na vida de seus protagonistas. Basta listarmos alguns dos nomes das rodas
intelectuais de então - Abgar Renault, Pedro Aleixo, Gustavo Capanema, Emílio
Moura, Carlos Drummond de Andrade, Mílton Campos, João Pinheiro Filho, João
Alfonsus, Mário Casassanta - para percebermos que também eles deixaram suas
próprias marcas na vida de seu estado e de seu país.
Dentre estes, dois teriam papéis profundamente distintos, mas igualmente
importantes. Carlos Drummond de Andrade desenvolveria uma obra poética e
literária da melhor qualidade, até chegar à posição isolada que hoje ocupa
como figura central de nossas letras. Gustavo Capanema entraria com força
na vida política aos 30 anos, como Secretário do Interior do governo Olegário
Maciel, e dela não mais sairia. O que nem todos se recordam é que, durante
a maior parte destes anos, Drummond foi seu chefe-de-gabinete, o intermediário
eficiente, discreto e silencioso entre o político Capanema e tantos que
dele dependiam ou a ele se dirigiam.
Refazer o lado pessoal e mais profundo do relacionamento entre estes dois
homens igualmente reservados, inteligentes e vitoriosos em suas respectivas
carreiras exigiria muito mais do que poderíamos pretender. Basta dizer que
os dois, de alguma forma, se complementavam. Capanema, homem de grande cultura
humanística e pretensões intelectuais, se dedica inteiramente à política,
sem uma obra intelectual própria que ultrapasse os limites do que seus diversos
cargos exigiam; Drummond, mais do que simples funcionário público, teria
tido condições de uma carreira política própria, que prefere, no entanto,
não realizar, em beneficio de sua obra literária. É como se Capanema fizesse
a política de Drummond, e este realizasse as ambições intelectuais do chefe
e amigo.
Drummond e Capanema parecem haver assim, na prática, resolvido a questão
do relacionamento sempre difícil entre o intelectual e o poder, através
de uma dissociação na qual cada um assumia de forma exclusiva um dos papéis.
Se Drummond renunciava de bom grado ao poder, no entanto, Capanema jamais
renunciou explicitamente à sua condição de intelectual, que mantinha pela
preocupação com questões relativas à educação e cultura, com a amizade pessoal
que cultivava com escritores, pintores e artistas em geral, e com o hábito
de estudo e leitura. Ele procura ser, sempre, um intelectual no poder. A
grande pergunta é como ele consegue, ou não, combinar as duas coisas dentro
de si mesmo.
Existe uma tentativa de resposta a esta pergunta, feita não por Capanema,
mas pelo próprio Drummond. Em 1941, a Confederação Brasileira de Desportos
inicia a preparação de uma biografia de Capanema, a ser publicada como um
exemplo e modelo para a juventude brasileira. Várias partes são solicitadas
a vários autores, e a Carlos Drummond de Andrade cabe escrever sobre a "Experiência
de um intelectual no poder". O destino final deste trabalho não parece
ter sido a publicação. O texto de Drummond, entretanto, é parte do Arquivo
Gustavo Capanema, e nos dá uma importante janela para o tema que nos preocupa.
Drummond inicia pela descrição do ambiente intelectual de Belo Horizonte
na década de 20, daquele pequeno grupo de jovens que se reuniam na livraria
Alves, na rua da Bahia, a caminho do Palácio da Liberdade. Era, sem dúvida,
um grupo de intelectuais:
"Os debates versavam sobre literatura, arte, ciência,
desporto, regimes políticos e alimentares, bailes, finanças, o temporal
e o espiritual. Fazia-se livremente a crítica de homens e costumes. Nenhum
valor era aceito por simples tradição ou presunção; tinha de ser analisado
miúda e implacavelmente. Os ataques seriam às vezes injustos; os louvores,
mais raros, não o eram nunca. Despreocupados de qualquer conveniência
de partido ou de indivíduo, os circunstantes tinham aquela ferocidade
intelectual, espontânea e gratuita, sem a qual não medra o livre exame.
(...) Como a atitude do grupo fosse meramente especulativa, o governo,
sempre vigilante quanto aos fermentos da dissolução, deixava-o existir.
Eram os 'intelectuais' e nessa classificação havia um pouco de desdém
da força maciça em frente aos belos mas inofensivos torneios da inteligência.
Na realidade, porém, estes intelectuais interceptavam na rua da Bahia
o transito ascendente para o Palácio da Liberdade, e ao tropismo excessivo
para o poder constituído, que ameaçava constituir-se em traço novo da
índole montanheza, opunha, o espírito da sátira, de equilíbrio e de revisão.
Tínhamos assim a rua da Bahia levando ao governo e ao mesmo tempo se afastando
dele."
Se Capanema participava desse grupo, era bem pouco típico. "De todos,"
lembra Drummond, "era talvez o mais terrível consumidor de livros.
Era também o mais ascético, e não participava do gosto que um ou outro freqüentador
do recinto sagrado nutria pelas peregrinações noturnas nos bares, com declamação
de poemas do modernismo nascente e largo consumo de cerveja gelada".
Em relação à política, Drummond o descreve como "dos espectadores mais
frios, cuidando menos de julgar o governo do que de ignorá-lo, para melhor
se consagrar à analise pura do fenômeno político, numa espécie de inconsciente
preparação ideológica para a atividade de governo que em breve lhe seria
dado exercer". Era o " homem de livro e de lâmpada", o "
clérigo puro'', que se viu, um dia, chamado às contingências da vida política.
Aceitemos que as coisas tenham se passado exatamente assim. Em 1930, segundo
Drummond, ao se abrirem as portas para a renovação política, Capanema inicia
sua insuspeitada carreira. "'Tudo que havia lido, pensado e sentido
até então e que parecia torná-lo particularmente inapto para o governo foi
se revelando, pouco a pouco, a preparação justa e essencial de que precisamente
carecia para governar, em novos termos, com uma instabilidade que governo
nenhum o conhecera antes."
O intelectual Capanema começa sua carreira como Secretário do Interior,
ou seja, Chefe de Polícia. Entretanto, segundo Drummond, ele não fez uso
da força(1), e, acima de tudo, não traiu
sua condição de intelectual. E este teria sido, talvez, o aspecto mais notável
desta carreira, porque o intelectual, ainda para Drummond, "é por natureza,
inclinado à traição". É uma afirmação grave e ousada, e Drummond a
explica:
"O intelectual é, por natureza, inclinado à traição. Sua
atitude no mundo é puramente extática, e, assim, pode ser perfeita; no
momento, porém, em que se desloca do plano da contemplação para o da ação.
essa atitude corre todos os riscos de corromper-se... A inteligência apresenta-se
quotidianamente em estado de demissão diante da vida, e é no intelectual
que esta tendência niilista opera com maior agudeza. Não admira, assim,
que a família dos intelectuais tenha trazido uma contribuição tão fraca
ao progresso das instituições políticas, quando chamada a trabalhar diretamente
sobre elas. Essa contribuição é, entretanto, imensa no domínio abstrato,
como se o intelectual fosse incapaz não só de concretizar as idéias como
de pensar a realidade".
Aceitemos, ainda aqui, que isto seja assim. Fica, de qualquer forma, um
pouco difícil entender o que pudesse ter sido, no caso de Capanema, esta
"traição". Para Drummond, "Capanema soube ser, na sua província
natal, como está sendo em cenário mais amplo, um intelectual no poder, sem
as abdicações, os desvios e as inibições que o poder, via de regra, impõe
aos intelectuais". Seu trabalho no governo de Minas foi, ainda segundo
Drummond, "uma obra-prima de inteligência aplicada ao governo",
e talvez tivesse sido traição renunciar ao uso da inteligência. "A
experiência do clérigo no poder foi vivida largamente por Gustavo Capanema.
Dez anos já escoados, é lícito reconhecer que ele a viveu com perfeita dignidade
espiritual", afirma Drummond. Não trair talvez significasse não perder
a dignidade, ainda que isto seja, evidentemente, sujeito a avaliações subjetivas
de toda a ordem.
Mais do que o uso da inteligência e a preservação da dignidade - que não
são, afinal, características exclusivas dos intelectuais - o que talvez
tenha estado mais presente no espírito de Drummond, ao afirmar que Capanema
"não traiu", fosse sua fidelidade constante aos temas culturais
e aos círculos intelectuais que o político cultivava. Em 1978, Drummond
recorda em uma crônica o ministro Capanema, que "foi no MEC uma usina
de idéias que se tornaram realidades. Varreu a rotina e implantou novas
formas de educar e civilizar o homem brasileiro. Foi o Ministro que deu
maior atenção às inovações artísticas, mas foi também o Ministro que cuidou
da erradicação da Lepra e da Malária, da organização do ensino industrial
e da Educação Física (...). E foi também o homem humilde por excelência,
que não se cansava de ouvir a opinião dos entendidos, as críticas bem intencionadas,
até, suportando com paciência cristã, as mal-intencionadas". ("Capanema
faz falta? Enorme." Jornal do Brasil, 7-12-78.)
Inteligência, dignidade, preocupação com temas culturais, humildade. A política,
infelizmente, não depende somente das qualidades pessoais dos líderes, mas
da maneira pela qual os conflitos que se manifestam na vida pública são
por eles resolvidos e administrados. Capanema se notabiliza, como bom mineiro,
pela tentativa constante de unir os contrários, de evitar definições categóricas,
de não aceitar rompimentos. Na crônica de 1978, Drummond chega a afirmar
que "Capanema seria precisamente o homem indicado para a tarefa de
conciliar a mentalidade revolucionária com as reivindicações já agora inelutáveis
da opinião pública", e lamenta que, apesar disto, ele tenha sido preterido
em sua reeleição para o Senado. Seria o dom de conciliar uma outra prova
da não-traição?
Na realidade, o tema da "traição" só se toma importante porque
foi Drummond quem o trouxe, o que significa que também deveria ser significativo,
de alguma forma, para o próprio Capanema. Quando Drummond fala do intelectual
contemplativo. extático e sem apetite para a vida prática, está se referindo,
sem dúvida, a um tipo especial de intelectual, que substitui o envolvimento
mais profundo com o mundo real por uma atitude estetizante freqüentemente
estéril e auto-destrutiva, quando não acompanhada de talento verdadeiro
que lhe devolve, de alguma maneira, o vínculo com o mundo. O predomínio
deste tipo de atitude entre os intelectuais mineiros, que sem dúvida ocorria,
talvez possa ser entendido pela própria descrição de Drummond das perspectivas
de futuro de sua geração, nos anos da República Velha: "completada
a formação intelectual, tinham que optar pela burocratização em torno do
governo ou pela aceitação pura e simples de uma profissão sem brilho. O
governo oferecia emprego a todos, mas não permitia que participassem da
direção dos negócios públicos. Cada bacharel em sua promotoria, cada médico
em seu hospital; a direção do Estado ficava entregue a meia dúzia de iniciados,
detentores de fórmulas mágicas e confidenciais, que realizavam o bem do
povo sem que ninguém, nem mesmo o povo, o percebesse. Veio a revolução e
trouxe à gente nova uma perturbadora ocasião para intervir e revelar a sua
força e capacidade".
Os intelectuais da rua da Bahia não eram, basicamente, homens de letras
perdidos na provinciana Belo Horizonte, mas uma geração bem nascida, bem
educada e represada em suas aspirações de influência e poder. Ela se constitui,
assim, em uma inteligentsia que olhava inevitavelmente com rancor
e desesperança para as oportunidades que os velhos oligarcas do Palácio
da Liberdade lhes negavam. Abertas as comportas do sistema político com
a Revolução de 30, estes jovens, em sua maioria, lançaram-se com todas as
forças à vida política, sem trair, mas na realidade cumprindo sua vocação
de intelectuais. Poucos, como os poetas Emílio Moura e Drummond, teriam
o talento e as condições pessoais adequadas para fazerem da literatura não
somente um estilo, um adorno ou um traço a mais de sua cultura, mas sua
forma mais alta de realização pessoal. Para os demais, a política foi o
caminho.
Iniciação política de Gustavo Capanema
Segundo uma biografia oficial, constante dos arquivos, eram pais de Gustavo
Capanema o "Sr. Gustavo Capanema e a Sra. Marciana Júlia Freitas Capanema,
pertencentes ambos a tradicionais famílias mineiras, as quais se acham vinculados
nomes de destaque nas atividades intelectuais e políticas do Estado".
Em 1932, já Secretário do Interior de Minas Gerais, Capanema recebe uma
carta que o confundia, sem dúvida, com o pai, mas que esclarece algo mais
sobre sua família.
"Não sei se V. Sa. se recorda de meu nome. Tive a honra
de morar três anos na casa do Sr. vosso pai, o venerando Barão de Capanema,
na Ilha do Governador, de 1886 a 1889. Quando o Ministério Imperial, à
proposta do Sr. Barão, me mandou para a Europa, em maio de 1889, eu ainda
levei uma carta dele para V. SA. e vosso irmão que estavam estudando em
Berlim. O vosso irmão Sr. Guilherme tinha regressado de Hannover no ano
anterior."
A carta é assinada por Ernesto Niemeyer, que havia se aposentado em 1912
como telegrafista chefe, depois de ter sido, entre outras coisas, responsável
pelo Observatório Astronômico da Ilha do Governador. É uma das centenas
ou milhares de cartas que Capanema iria receber, em seus anos de vida pública,
solicitando, basicamente, um emprego ou posição e respondida por Carlos
Drummond. Neste caso, não existe cópia da resposta, mas apenas uma nota
rabiscada: "Respondi. 25-2-32 C"
Capanema não estudou na Alemanha, como o pai, mas talvez esta origem explique
por que tenha sido enviado a um colégio dirigido por padres alemães, o Colégio
Arnaldo, em Belo Horizonte. Desta época data sua amizade com Gabriel Passos,
que reconstituiu, anos depois, a infância do amigo: "Não me parece
que Capanema tenha sido menino muito dedicado ao papagaio, armar arapuca,
nadar no córrego, pegar passarinho, atirar bodoque, 'ferrar luta" etc.
Desde cedo, o que o preocupou foram os livros e as distrações menos movimentadas"
("Infância de Gustavo Capanema"). Criança e jovem arredio, estudioso,
formal, Capanema termina os estudos secundários no Ginásio Mineiro, já que
o Colégio Arnaldo seria fechado nos anos da Primeira Guerra Mundial. Há
uma carta do jovem Capanema ao pai, desta época, que relata o fechamento
do colégio e as dificuldades que dai advieram: "os acadêmicos se dirigiram
para lá e obrigaram aos Padres o fechamento imediato do Colégio. Foi ontem
a uma e meia da tarde. Os alunos internos foram entregues aos respectivos
correspondentes. Alguns não os têm, entre os quais também eu. Fomos, pois,
entregues ao Sr. Secretário do Interior, que nos colocou em uma pensão familiar
por conta do Estado até que os pais deliberem o que se deve fazer".
A nova situação cria problemas financeiros inesperados, que devem ser resolvidos
para que Capanema possa se preparar para os exames do Ginásio Mineiro: pensão,
roupas novas, professores particulares." "Como vê V., foi um ato
bem violento este fechamento tão imediato e imprevisto do Colégio. Deu grandes
despesas aos pais dos alunos. Quanto ao destino dos padres eu nada sei.
No Colégio eles não estão. O estabelecimento está fechado e guardado pela
polícia."
Terminado o curso secundário, o caminho natural é a Faculdade de Direito.
onde se forma em 1924. Já nesta época participava ativamente do grupo intelectual
da rua da Bahia, e sua correspondência mostra grandes relações de amizade
com Mário Casassanta, Abgar Renault, Gabriel Passos, Emílio Moura. Terminado
o curso de direito, volta para a cidade natal de Pitangui, onde trabalha
como advogado, professor na Escola Normal e vereador na Câmara Municipal,
até que funções mais altas o trazem de volta a Belo Horizonte.
A Faculdade de Direito é, acima de tudo, treinamento para a vida política.
Em 1923 Capanema escreve ao pai sobre algumas de suas atividades: "As
ocupações relativas à Escola, ao Centro Acadêmico e à Procuradoria têm-me
impedido de mandar-lhe, com assiduidade, minhas notícias" . "Era
intenção minha tomar algumas providências no sentido de passarmos a Onça
para Pitangui. Conversando, porém, com o Zico, neste sentido, disse-me ele
que quer absolutamente a passagem para Pitangui e que vai trabalhar no sentido
de que continuemos no Pequi. Disse-me ainda que esta é a vontade do povo
da Onça." Aos 23 anos, estudante ainda, já demonstra suficiente relacionamento
para influenciar o eventual desmembramento de um município, e também dá
mostra do estilo formal, preciso, e da habilidade política que caracterizaria
sua carreira nos anos futuros: "Se o povo dai continua ainda disposto
a não continuar a fazer parte do município de Pequi, torna-se necessário
que manifestasse com clareza, ao Zico. É nas mãos de Zico que estão depositados
os destinos da Onça. É, portanto, a ele que se deve dizer todo o sentimento
do povo" (carta de 4 de maio de 1923). Onça terminaria por se incorporar
a Pitangui
O clima político na Faculdade de Direito pode ser apreendido pela carta
que lhe envia Gabriel Passos às vésperas da formatura. As negociações e
manobras são intensas para decidir quem será o orador da turma. "A
luta que aqui se trava é grande," diz o missivista. Há um longo relato
de conversa havida com "N'' em uma negociação complicada cuja importância
se perde nos tempos. "N" teria dito "coisas boas de se ouvir
de um correligionário, mas que ditas por um adversário político me comove
tanto quanto às pedras. A minha resposta foi que eu de tal modo estava empenhado
com os amigos que não lhe podia dar resposta formal e menos em nome dos
amigos". Em vão se buscará nesta correspondência o que une ou divide
as pessoas, além da força das amizades e lealdades pessoais. "Se Abgar,
Mário tu e eu e mais os nossos nos firmarmos e dissermos - vamos até o fim,
sairemos do quadro - acreditas que eles não se chegarão?" (carta de
G. Passos a G. Capanema. 11-4-24). O que está em jogo é o prestígio pessoal
de uns e outros, e "sair do quadro", deixar de colocar nomes e
fotografias no tradicional quadro de formatura que anual mente era exposto
à sociedade mineira pelos bacharéis que se formavam - era a suprema afronta
e ameaça que condicionava toda a disputa. Era uma política essencialmente
sem conteúdo; mas o estilo e a intensidade estavam bem presentes.
A volta a Pitangui, como professor da Escola Normal, lhe dá a chance de
entrar em contato com a reforma educacional iniciada por Francisco Campos
em sua gestão como Secretário do Interior do governo Antônio Carlos. Trabalha
como advogado, viaja para Belo Horizonte e Rio de Janeiro quando pode, e
prepara sua carreira política a partir da base, como vereador em sua cidade
natal. Não é um começo entusiasmado: "Vou ao Rio amanhã," escreve
para a mãe, de Belo Horizonte. "E depois voltarei de novo para Pitangui,
onde me espera, além do mais, a massada de ser vereador. É uma pilhéria
dolorosa" (carta de 2-4-1927).
Pilhéria ou não, dedica-se a suas funções com seriedade, tomando parte em
comissões de todo tipo, dando pareceres jurídicos quando necessário, sem
abandonar suas outras atividades. Participa também da política estadual,
e um discurso em homenagem a Francisco Campos, em 1929, já vaticina maiores
vôos:
"Tive conhecimento da alta eloqüência e do rasgado pensamento
que assinalaram os teus discursos de saudação ao Campos. Gostei e fiquei
satisfeito por verificar que andas cada vez mais distanciado de Lecadieu;
és real, e, portanto, mais forte. O destino de Lecadieu é regulado por
Maurois que arranjou um esquema engraçado para a desgraça; o teu destino
é puramente o destino. Depois, a tua força não está apenas na tua inteligência
nem na tua cultura; sempre esteve na tua persistência. Não veja em mim
atitudes irônicas: sou de natural pouco agudo e prezo aos meus amigos.
Mas, a tua persistência em Pitangui tem qualquer coisa de heróica, como
aquelas assentadas valentes diante aos livros. É o que te libertará de
Pitangui, tanto afrontarás a cidade que te tornarás superior a ela. Um
dia ela deixará de existir em ti" (carta de Gabriel Passos, 28-3-1929).
Com a posse de Olegário Maciel no governo do estado, em setembro de 1930,
ele é convidado para chefe de gabinete do presidente do Estado, participa
da Revolução de 1930 nesta posição, e é logo depois nomeado para o posto
chave de Secretário do Interior de Minas Gerais.
"Minha querida mãe," escreve em 28 de outubro de 1930, "um
abraço. Me informaram que a Senhora não sabia que nós fizemos uma revolução,
uma formidável revolução, para concertar este Brasil. Foram três semanas
de barulho grosso, de tiroteio pesado, de vitórias magníficas, de inquietações
horríveis e de esperanças maravilhosas. Afinal, vencemos. Venceu o povo
mineiro. Venceu o povo brasileiro. Estou aqui em perfeita e doce tranqüilidade.
Talvez vá ao Rio. Adeus. Com um abraço de seu filho, Gustavo."
As cartas de amiga de Pitangui revelam, com nitidez, o afastamento progressivo
de Capanema de sua terra de origem, em busca de horizontes mais amplos.
"A gente acostumou a ver em você não só o amigo diário, mas o professor
sempre alegre e moço que exercia muita influência no espírito da gente;
uma espécie de irmão mais velho de quem a gente não tinha respeito. Aqui,
agora, não tem mais ninguém que goste de me contar a vida de Ford, do Edson
do Schelee (sic) - ninguém que recite - saber que não virás nunca. . ."
Você já esteve com o Claparrède? Ele é mesmo este homem falado? E Mme. Antipof,
já te fez lembrar de mim alguma vez? Você já foi ver a exposição de pintura
do Municipal?" "Que frege, hein? O que vai ser de você?"
(Y., sem data).
Ou ainda: '"Eu tenho sabido, pelos outros, que você tem falado muita
coisa bonita aí. Isso para mim não é surpresa. Você é dessas pessoas que
nascem para vencer. (...) Você sabe que eu não sou da Esquerda, mas tenho
uma grande confiança nos de lá. Nos do lado do coração pela inteligência.
Eu creio neles um Brasil moço e inteligente, como vocês que o estão reformando.
Eu creio na realização de todas as belas idéias que vocês pensaram"
(... ) Você vai ao Rio dia 15? Vai ser importante a festa, não é? Mas eu
daria a presidência ao Juarez, o Getúlio é muito gordo."(Y., 5-11-1930).
E finalmente, quando Capanema passa de chefe-de-gabinete a secretário: "Calma,
moço, você está subindo mais depressa que foguete! Mas isto aí é brinquedo
de quatro cantos? Que trocação!" "O de hoje foi o último empurrão
que a política deu em você para separar definitivamente da gente. Você agora
vai ser um homem de Estado, não vai ter tempo para desperdiçar com futilidades
de amigas." "Adeus, Gustavo, perdoe se amolei muito, mas é a última
vez que escrevo a você. E dispenso resposta. Não quero receber cartas de
Secretário de Estado, eu sei que você tem muito o que fazer" (Y., carta
de 20-11-1930).
Vôos altos necessitam bases seguras, e Capanema as prepara com cuidado.
Em 12 de janeiro de 1930, a vida da família já está organizada:
"Peço-lhe que me mande dizer com urgência onde está meu
pai, pois o lugar dele já está arranjado. Ele deve ir morar em Pitangui,
onde a senhora e ele deverão ter casa. O João e a Alice deverão instalar-se
logo em Pitangui. O João já está contratado para professor da Escola Normal,
devendo a nomeação dele para diretor sair nestes poucos dias. Meu pai
irá para o cargo de escrivão da Coletoria Federal, tendo eu já arranjado
um lugar para o Vital aqui em Belo Horizonte. O Corinto deverá submeter-se
a rigoroso tratamento, para o que seria bom que consultasse um especialista
daqui (...). Quero ver se arranjo para o José um lugar no Banco do Brasil,
aqui na agência de Belo Horizonte (...). Seja como for, a nossa família
deve ficar instalada em Pitangui. Lá é que deve estar o nosso centro.
Eu quero muito a Pitangui e não desejo separar-me daquele povo. Além disto,
tenho lá interesses políticos. É principalmente por isto que preciso ter
em Pitangui um ponto de descanso, ou um centro de informação e de trabalho.
Espero que tudo isso se fará logo. Até que se normalize a situação, peço-lhe
que me comunique todas as suas necessidades, para eu arranjar jeito para
afastá-las" (carta a mãe).
No poder, em Minas
Que fazia, nos anos 30, um Secretário do Interior em Minas Gerais? Terminado
seu ciclo de política mineira em 1933, e antes de assumir o Ministério da
Educação no Rio de Janeiro, Capanema escreve um resumo de suas atividades
nos intensos anos que passaram, com vistas, possivelmente, a uma obra maior
que nunca se completou. "Os decretos de minha pasta eram coisas comuns,
lembrava então: "pequenas aberturas de crédito, perdão, autorização
de despesas, nomeações, aposentadorias, coisas assim". O quadro que
traça Carlos Drummond, na pequena biografia mencionada anteriormente, não
é distinto:
"A Secretaria de Estado que lhe confiou o velho presidente
Olegário Maciel não oferecia grandes perspectivas de ação cultural. Não
cuidava dos negócios do ensino. Seu conteúdo consistia em juízes, soldados
e municípios. Nestes últimos, o campo de ação seria realmente enorme e
sugestivo, mas o regime federativo com base na autonomia municipal, não
obstante a revolução vitoriosa, sufocava ainda qualquer veleidade de influência
profunda no organismo das comunas. O governo era um espectador graduado
da vida municipal, comparecendo para aplaudir ou aprovar, mas sem os meios
de ação eficazes para intervir. Os demais assuntos da Secretaria - magistratura
e polícia - não convidavam á elaboração intelectual. Gustavo Capanema
teve assim o privilégio de movimentar um aparelho governamental a que
não correspondia nenhuma tarefa substancial e de conseguir movimentá-lo
realizando uma obra-prima de inteligência aplicada ao governo".
Esta tarefa sem substância era, sobretudo, política. Ela consistia, essencialmente,
em um jogo delicado de poder, que se realizava em duas frentes. Em nível
nacional, o básico era manter os canais abertos e a lealdade ao novo governo
federal, e utilizá-lo como ponto de apoio para consolidar a posição de poder
dentro do estado. No nível estadual, tratava-se de fazer a operação inversa,
ou seja, manter e consolidar o máximo de apoio das lideranças políticas
regionais e locais, e utilizá-lo como capital político para manter as boas
graças do governo federal. A estratégia de sobrevivência da velha oligarquia
mineira ante o ímpeto da revolução vitoriosa havia consistido em apoiar
o lado vencedor e assim, pela lealdade ao novo regime, tratar de preservar
o estado dos ventos renovadores que o Tenentismo triunfante ameaçava. Era
necessário manter a lealdade ao novo regime antes que outros o fizessem,
amaciar, tanto quanto possível, o impacto dos novos poderes que se acumulavam
no Rio de Janeiro, sem alterar em maior profundidade as formas tradicionais
de vida e poder político do Estado.
É possível que isto tenha sido feito de forma muito mais intuitiva - uma
intuição quase que inata para a obtenção e preservação do poder - do que
a partir de uma estrategia explicitamente concebida. Drummond, no texto
exemplar que estamos utilizando, trata de explicar esta estratégia, de forma
um tanto críptica, mas de todo modo clara:
"De dezembro de 1930 a setembro de 1933, Gustavo Capanema
conseguiu, quase sozinho, manter o contato entre Minas e o poder central.
À primeira vista, parece pouco. E muito, se considerarmos as circunstâncias
da época e o que esse contato veio a representar na evolução da vida nacional.
Capanema arrostou as maiores incompreensões, inclusive por parte de amigos
íntimos. (Como é trágico ter razão contra o amigo íntimo!) Minas Gerais
era trabalhada por forças diversas, dentro e fora do seu território, e
essas tendiam antes à desagregação do que à composição. Ao lado de agitadores
malévolos, que queriam a desordem, havia homens de boa fé, repelindo o
princípio de colaboração com o governo federal. Tudo conspirava por que
Minas se desinteressasse da revolução de outubro e, desinteressando-se,
entravasse o desenvolvimento natural dessa revolução".
O Arquivo Capanema mostra alguns aspectos deste trabalho. Três de novembro
de 1930. Feita a revolução, ela ameaça devorar seus criadores. No Palácio
da Liberdade em Belo Horizonte, Capanema anota os eventos daqueles dias:
"Hoje aclararam-se os horizontes. A tempestade que ontem se armara
contra Minas passou e nos resta apenas esse amargo inevitável de toda a
decepção, mesmo a mais injustificada. A nossa decepção não foi porém injustificada.
O gaúcho não andou bem com Minas, e sejam quais forem os acontecimentos
futuros, que não se apague a lembrança dessa ferida e a lição dessa experiência".
As notas relatam negociações delicadas com Osvaldo Aranha a respeito da
participação de Minas no novo governo, que terminam com a indicação de Francisco
Campos para o ministério.
Logo em seguida, a questão a preocupar é a permanência de Olegário Maciel
no governo do Estado na qualidade de presidente eleito (e como tal inamovível),
e não como simples delegado de Vargas. Oito de novembro, Capanema escreve
a Francisco Campos: "O Dr. Olegário entende que não deve ser considerado
mero interventor do governo federal, sujeito a exoneração, como no projeto
(de reorganização política do pais) se declara. É fora de dúvida que a reorganização
dos Estados tem que ser feita é mesmo por meio de interventores ou delegados
do governo provisório, livremente demissíveis. Entende, porém, o Dr. Olegário,
que tal providência não deve ser tomada em relação a Minas e ao Rio Grande,
cujos governos, tendo promovido oficialmente a revolução, subsistem depois
dela, com a mesma legitima autoridade de que foram investidos pelo povo,
que os elegeu" . (...) "Não se diga que a situação do pais está
inteiramente transformada e que a medida deve ser de caráter geral. Em Minas
e Rio Grande a situação não se modificou, pois aí os chefes de governo foram
os próprios chefes revolucionários, tendo procedido como representantes
legítimos do povo, o que tudo lhes dá um caráter sem dúvida nenhuma excepcional.
Por tudo isto, quer o Dr. Olegário que a sua situação não se modifique,
permanecendo com as mesmas prerrogativas e direitos de presidente de Minas,
seu chefe revolucionário".
A fidelidade a Vargas, condição essencial para o sucesso de sua política,
é exercida por Capanema de forma escrupulosa, desde os primeiros momentos
no governo de Minas até o célebre discurso de 1954, quando Capanema, líder
do governo no Congresso, sai em defesa de seu presidente à beira da deposição
e do suicídio. No entanto, em um momento de frustração, Capanema lembra
com amargura a figura do presidente, em seu primeiro contato pessoal:
"A primeira vez que vi Getúlio em companhia do Campos
e do Lanari, no Catete, à noite. Não me lembro o dia. Mas foi em dezembro
de 1930. Lanari falou de finanças. Eu não tinha assunto. Visita a Minas.
Impressão penosa. Homem frio, inexpressivo; não achei nenhuma flama, nenhuma
simpatia; sem ardor, sem luz; não inspirando confiança; homem impróprio
para aquele momento criador; cheio de reticências, de silêncios, de ausência;
olhando para cima, não olhando para a gente; um riso difícil, riso sem
alegria, sem malícia, mas com maldade; um físico redondo, com pequena
estatura, com um ventre dilatado, as pernas apertadas numas calças brancas
curtas; sapatos de fantasia; sem gravidade, sem emoção; uma pronunciação
estranha de gaúcho; enfim uma figura incapaz de seduzir, de incitar ao
trabalho, de convocar ao sacrifício, de organizar uma nação apenas saída
da fornalha revolucionária".
A visita a Minas, em fevereiro de 1931, também é recordada por Capanema
com hostilidade:
"O Getúlio falou ao Olegário sobre a fundação da Legião,
deve ter pedido que a fundasse. Não ouvi, mas soube depois. Diz-se que
foi pedido de Campos. Teria ele querido a Legião? A divisão de Minas?
Em seu discurso falou da união de Minas. Duplicidade? Hipocrisia?'
Como hipocrisia terá sido, certamente, a aproximação de Vargas com a Igreja:
"No dia 23, às 11 horas, Te-Deum na São José. Fiquei perto
do Getúlio. Getúlio, Olegário, Afrânio, Capanema. D. Cabral oficiou, João
Rodrigues falou: apostit illum regnare. 1, Cr., XV, 25. Getúlio
não ajoelhou. Protestante? Dizem que tem um filho chamado Lutero. Positivista,
talvez. Talvez nada."
É claro que esta era a perspectiva de 1934, Capanema destituído da interventoria
de Minas Gerais, que exercia interinamente desde a morte súbita de Olegário
Maciel, e substituído pelo inesperado Benedito Valadares; e sem nenhuma
idéia clara do lugar que lhe caberia no futuro governo. A nomeação para
o Ministério da Educação e Saúde reataria a continuidade de sua carreira
política e lealdade a toda prova ao chefe de governo
Francisco Campos e a Legião de Outubro
Francisco Campos foi o mentor político e intelectual de Capanema neste período.
Campos havia sido Secretário do Interior em Minas no governo Antônio Carlos,
e nesta posição teve uma atuação importante nas articulações que colocaram
Minas do lado vencedor da Revolução de 30. Além disto, a pasta do Interior
incluía a responsabilidade pela área de Educação, e Campos foi responsável
por uma série de iniciativas inovadoras nesta área, incluindo a realização
da Segunda Conferência Nacional de Educação em Belo Horizonte, em 1928,
assim como a vinda de alguns educadores europeus que trouxeram para o estado
uma filosofia pedagógica inovadora. Um dos primeiros postos de Capanema
foi, exatamente, o de professor de psicologia infantil na Escola Normal
de Pitangui, durante a gestão de Campos. E aí, sem dúvida, que se dá o primeiro
contato de Capanema com as novas correntes de reforma educacional, da qual
ele assumiria o papel principal anos mais tarde.
Com a revolução, Campos vai para a esfera federal, como fiador da aliança
entre Vargas e Olegário, deixando Capanema em seu lugar. Assim, é natural
que as viagens de Capanema ao Rio sejam geralmente para encontrar Campos,
e com ele sejam traçadas as grandes estratégias. Nesta época, apesar da
intensa atuação de Campos na área de Educação, são os temas políticos que
predominam, pelo menos do ponto de vista de Capanema.
A posição de representante do governo Olegário Maciel junto ao Governo Provisório
não ê, evidentemente, cômoda para Francisco Campos, que procura se identificar
com os setores mais radicais do novo regime, e a partir daí construir sua
própria base de sustentação em Minas Gerais, que independesse da velha e
ainda intocada estrutura de apoio do Partido Republicano Mineiro. Isto era
formulado em termos de uma ideologia que afirmava a necessidade de criar
um governo forte, dotado de uma ideologia social bem definida, e que pudesse
se livrar do peso morto da politica oligárquica tradicional sem, no entanto,
cair no que ele considerava serem as ilusões ultrapassadas da democracia
liberal. Esta estratégia, ao ser traduzida para a realidade da política
brasileira e suas bases de sustentação em Minas Gerais, tinha duas conseqüências.
Uma era a necessidade de enfraquecera política tradicional do estado e substitui-la
por uma estrutura politica própria, cujo principal instrumento seria a Legião
de Outubro. A outra era a de envolver a Igreja Católica como fonte de inspiração
ideológica e legitimação política para a nova ordem que se buscava estabelecer.
A similaridade entre este projeto político e os regimes fascistas e totalitários
que começavam a se instalar na Europa nesta época não é, evidentemente,
casual. Diferentemente dos exemplos alemão e italiano, ,no entanto, o projeto
de Francisco Campos buscava uma vinculação com a Igreja Católica que só
seria tentada mais tarde em Portugal e, principalmente, na Espanha. Além
disto, e apesar da Legião de Outubro, os esforços de substituir as bases
tradicionais de poder oligárquico não conseguiram chegar nunca às formas
de mobilização radical que eram a marca registrada do nazi-fascismo nascente.
Em suas notas retrospectivas, Capanema revela como foi, pouco a pouco, sendo
envolvido no esquema político de Campos:
"Minha primeira viagem ao Rio foi a cinco de dezembro,
sexta-feira, Na Estação Pedro II o Campos esperava-me. Fui no seu automóvel,
com ele, até Copacabana, e fiquei hospedado em sua casa. No caminho, o
Campos já tratou do assunto comigo: liquidar o Bernardes. Fiquei espantado,
julguei isso um absurdo. Eu estimava Bernardes. O plano inicial de Campos
não era a fundação da legião ou de outro partido em Minas. Era a reorganização
da Comissão Executiva do PRM, com a liquidação de Bernardes. Achei difícil
e arriscado. Além de tudo, ingrato e injusto. O Campos objetava com os
tenentes, o Getúlio, a salvação de Minas, os ideais revolucionários. Depois
de vários dias de conversa, regressei. Regressei a 11 de dezembro, chegando
a Belo Horizonte a 12, sexta. Vim disposto a falar ao Olegário. No fundo,
vim do Rio disposto a auxiliar o Campos na trucidação do Bernardes."
Os detalhes do jogo político que se seguiu já são conhecidos e não precisam
ser repetidos aqui. A hostilidade a Artur Bernardes cresce progressivamente.
A Legião de Outubro é criada em Minas com o objetivo de alterar suas bases,
com a participação de lideranças mineiras tradicionais em oposição a Bernardes,
principalmente Antônio Carlos. Em certo momento (agosto de 1931), o próprio
governo Olegário Maciel vacila ante uma tentativa de deposição tramada do
Rio de Janeiro. O conflito é contornado no início de 1932 pelo chamado "acordo
mineiro," que dá a Bernardes o direito de indicar alguns nomes para
o secretariado do estado. O movimento constitucionalista de São Paulo consolida
a cisão, que se transformará no confronto entre o velho PRM e o novo Partido
Progressista, que domina as eleições para a Constituinte de 1934.(2)
O envolvimento de Capanema com a legião foi feito a contragosto, com relutância.
Recordando o inicio de 1931, Capanema escreve que, em fevereiro, "o
Campos já havia entregue ao Olegário um plano para a Legião: coisa vasta,
com uma parte civil e outra militar. Osvaldo e Góis. Coisa cheia de bobagens.
Não me lembro quando tais bases (?), mas vieram bem antes. O Osvaldo estava
então com um prestígio extraordinário. Herói nacional. Foi com tal força
que depois se atirou contra nós."
De qualquer forma a linha de ação definida por Campos estava traçada, e
não havia como fugir dela. "No dia seguinte, 25 de fevereiro, ia ter
nova ocupação, novos motivos de inquietação: o manifesto da Legião. Foi
escrito pelo Carlos, revisto por mim, emendado, acrescido. O Lanari só no
dia 26 tomou conhecimento. Olegário não queria que eu assinasse o manifesto.
Bernardes andava queixoso de mim, o Olegário não queria mais motivos de
aborrecimento com ele. Foi o Campos que, a custo, conseguiu que minha assinatura
saísse."
O "Manifesto aos Mineiros", assinado por Francisco Campos, Gustavo
Capanema e Amaro Lanari (então secretário das Finanças de Minas Gerais)
é um documento extenso, de sete páginas, e altamente retórico, que descreve
os males do Brasil antes de 1930, a participação de Minas na revolução,
e a necessidade de consolidá-la. O Arquivo Capanema conserva a versão original,
datilografada, redigida presumivelmente por Carlos Drummond, com as emendas
e correções feitas pelo punho de Capanema, dando-lhe a forma final. É significativo
observar o que é suprimido e o que é acrescentado ao texto inicial:
"Fizemos uma revolução de duplo e marcado caráter", dizia o texto
inicial, "pugnando ao mesmo tempo pelo restabelecimento das franquias
legais e pela recuperação de nossa economia, gravemente comprometida pelos
que não souberam ou não quiseram enfrentar de ânimo claro os problemas práticos
e urgentes do trabalho agrícola e industrial, do crédito e da produção cafeeira,
do aproveitamento e circulação de nossa riqueza". Esta expressão tão
tímida de compromisso com um programa de recuperação econômica do país é
suprimida, e em seu lugar, ao final do manifesto, Capanema dá sua própria
síntese do que foi a revolução brasileira e o que a legião se propõe, ou
seja, defender a vitória da revolução e realizar seus ideais. E explica:
"Defender a vitória da revolução brasileira é combater
contra todos os seus inimigos, que são de três categorias: inimigos oriundos
do velho regime (os governantes depostos, os aderentes hipócritas e os
viciados e corruptos de toda a espécie); inimigos existentes no seio da
própria revolução (os revolucionários sem convicção, os revolucionários
preguiçosos ou céticos e os revolucionários violentos); e inimigos de
origem externa (todos os propagandistas e pregoeiros e apóstolos de doutrinas
políticas exóticas e inadaptáveis á solução dos problemas brasileiros)
. Realizar os ideais da revolução brasileira é desenvolver em busca deles
uma dupla ação, a ação política e a ação educativa".
A ação política incluía, além do apoio ao governo e ao programa da Aliança
Liberal, "organizar e mobilizar a opinião pública para que ela seja
capaz de conhecer os problemas nacionais e de propor para eles as soluções
adequadas e oportunas; e ser intermediária entre o povo e o governo, para
estabelecer entre eles o necessário equilíbrio e harmonia." A ação
educativa consistia, essencialmente, em "manter e fortalecer o espírito
de unidade nacional e pregar e desenvolver os altos sentimentos e as grandes
virtudes humanas".
Organizações de mobilização social no estilo da Legião de Outubro têm algumas
características bem definidas. Elas não são, simplesmente, organizações
governamentais, já que a participação em seus quadros é voluntária, e o
grau de envolvimento das pessoas é muito maior do que o de simples burocratas
ou cidadãos no cumprimento de suas atividades rotineiras. Elas não são,
tampouco, organizações da sociedade civil, já que dependem do apoio de pessoas
dotadas de poder político, e de proximidade com a estrutura militar da sociedade.
Nos regimes fascistas europeus, os grupos de mobilização - camisas pretas,
camisas pardas - funcionavam como instrumentos de vigilância e controle
sobre a própria maquina administrativa e militar do governo, e de combate
a tentativas de organização independente e competitiva por parte de outros
grupos da sociedade civil.
Ocupando a Secretaria do Interior, que controlava a polícia do estado, Capanema
estava em posição privilegiada para tentar montar uma estrutura deste tipo.
A experiência estrangeira não foi, evidentemente, ignorada. "Eccellentissimo
Signor Dottore", escreve a Capanema o representante italiano no Rio
deJaneiro, V. Cerruti, em 1931, "Ho 1'onore di trasmetter Le, que unita,
la bolleta di spedizione di una cassetta contenente alcuni volumi relativi
alla legislazione fascista in modo che Elia possa avere il cuadro completo
dell'opera ingente cumpiuta dal Governo fascista nei suoi nove anni di esistenza.
Mantengo pure la promessa fattale durante il graditissimo mio soggiorno
a Belo Horizonte d'inviarLe copia di una Memoria iliustrativa suila
Milizia Volontaria por la Sicurezza Nazzionale. In qualunque cosa io
possa esserLe utile, voglia, La prego, dispore libremente di me che sarà
lieto di farLe cosa gradita" (28 de agosto, 1931).
A convocação para as atividades da legião é feita pelo uso explícito da
autoridade governamental. Em fevereiro de 1931, telegramas circulares são
enviados aos líderes políticos e chefes locais em todo o estado, de maneira
a não deixar dúvida de que suas lealdades são requeridas. "Temos a
satisfação comunicar-lhe que nesta data organizamos Legião de Outubro no
Estado de Minas Gerais, devendo ser publicado amanhã no órgão oficial o
apelo que dirigimos ao povo mineiro no sentido de apoiá-la material e moralmente",
começava o texto enviado ao coronel José Venâncio Augusto de Godói, de Além
Paraíba, idêntico aos enviados aos demais detentores de cargos públicos.
Depois de descrever rapidamente as atividades da legião, o telegrama terminava:
"Designamos V. SA. para delegado da Legião nesse município, com incumbência
de aí organizar núcleo legionário. que represente o pensamento e aspirações
do município. Seguirão instruções minuciosas. Pedimos sua resposta por telegrama.
Saudações cordiais. (aa) Francisco Campos, ministro do Governo Provisório;
Gustavo Capanema, Secretário do Interior; Amaro Lanari, Secretário das Finanças."
Para líderes políticos sem responsabilidades administrativas diretas, telegrama
mais curto era enviado. pedindo apoio e colaboração: "Apelamos prezado
amigo sentido colocar toda sua influência e prestigio a serviço da grande
causa legionária de cuja rápida e vitoriosa organização depende a segurança,
a estabilidade e o êxito das iniciativas do novo regime republicano".
O projeto era ambicioso e incluía não só a substituição do tradicional PRM
e sua liderança pela legião, como também a organização de uma estrutura
militar que respondesse, não ao governo do estado, mas à liderança da legião.
Em maio de 1931 o jornal A Batalha publica uma carta supostamente
enviada a Francisco Campos por um seu correligionário, segundo a qual "A
marcha da Legião vai indo às mil maravilhas (...) O PRM vai desmoronando
como um castelo de cartas. No dia da parada, que será grandiosa, o PRM exalará
o último suspiro e será impossível ressuscitá-lo." Nesta carta há também
referências à idéia de substituir a Força Pública no interior do estado
por uma "guarda cívica" que obedeceria ao chefe da legião. Esta
intenção provoca, naturalmente, reações entre os oficiais da Força Pública.
Um manifesto anônimo, circulado entre eles, dá o tom:
"Os bravos soldados que galhardamente se bateram nas várias
frentes mineiras pelo ideal da liberdade, serão abandonados, ao desamparo,
nada valendo, para os homens que querem dominar o Estado, o sangue que
generosamente derramaram (...). A formação de milícias fascistas, espalhadas
pelos vários municípios do Estado, visa substituir a Força Pública de
Minas. Para isto, muito embora não se paguem aos funcionários, nem aos
fornecedores das repartições públicas, há dinheiro bastante para a enorme
encomenda de armamento que está a chegar e é destinado à milícia fascista.
O plano vai ser executado pela mesma forma pela qual pretenderam afastar
de Minas os bons Mineiros que lutaram pelo nosso progresso, ao lado de
nossa gente(...). O Presidente Olegário já não delibera. Há um Rasputin
a seu lado fazendo a desgraça de Minas. OFICIAIS: POR MINAS E PELO BRASIL
- REAGIR ENQUANTO É TEMPO."
O aspecto visual e simbólico deste tipo de movimento é importantíssimo,
e Francisco Campos se preocupa com todos os detalhes. Em 28 de março de
1931 envia um telegrama a Capanema, que já dá o texto de um outro telegrama
a ser enviado aos chefes municipais da legião convocando para uma grande
Parada Legionária em Belo Horizonte, para o dia 21 de abril. Cada município
deveria "enviar pelo menos vinte milicianos com o uniforme da milícia
legionária isto é, camisa cáqui e gorro do mesmo pano", e o telegrama
informava, também, que "as estradas de ferro Central e Leopoldina concederão
grande abatimento nas passagens". Em outra correspondência, Campos
trata com Capanema a questão do hino da legião e da filmagem do grande acontecimento:
"O portador lhe entregará também o hino da legião, cuja música foi
feita pelo Souto, autor do hino João Pessoa. A letra não vale nada: a música,
porém, me parece muito melhor do que a do hino feito ai. Seria o caso de
adotá-la oficialmente como hino da legião, tanto mais que está sendo gravada
pela Casa Édison em milhares de discos. É indispensável que seja filmada
a parada. Não há em Belo Horizonte quem filme bem. A Botelho Films pede
cinco contos para a filmagem. É capaz, porém, de reduzir o preço. Consulte
ao Lanari se posso contratar pelo menor preço possível." (Uma outra
carta mostra que o filme, com 540 metros, acabou ficando por 5:400 mil-réis.)
Apesar destas intenções, o projeto da legião já nasce debilitado pelo seu
próprio processo de criação. A força propulsora dos movimentos fascistas
europeus sempre foi a mobilização de uma pequena burguesia decadente, de
uma classe média acuada e sem perspectivas, que encontrava nesses movimentos
um lugar onde dar vazão a suas frustrações e seus desejos de participação.
Em Minas, este componente social é ignorado ou inexistente, e os líderes
convocados para chefiar a legião nos municípios são seus chefes tradicionais
de sempre. Para eles, aderir à legião era simplesmente aderir mais uma vez
ao governo. As antigas lealdades ao velho PRM são quebradas na medida do
possível, prefeitos são substituídos quando necessário, mas a política mineira
não se altera substancialmente, até que o acordo mineiro restaura, por um
tempo, o poder da velha geração.
A Legião de Outubro seria a precursora do Partido Progressista, fundado
em 1933 por Olegário Maciel, e que comandaria a política de Minas até a
Constituinte de 1934. Assim sumariza Helena Bomeny sua análise da Legião
de Outubro em Minas Gerais:
"Da Legião de Outubro guardou-se, na memória dos políticos
mineiros e de historiadores, uma lembrança tênue: somente os figurantes
permaneceram e algumas referências pitorescas de seu comportamento na
nova agremiação. Acreditamos, porém, que representou mais do que uma figuração:
a legião foi responsável por todo um movimento político iniciado em Minas
Gerais que acabou definitivamente com o predomínio do PRM no estado. Mais
ainda: influenciou no processo. de reorganização partidária do estado
que resultou na formação de um partido com características distintas das
suas e das do. Partido. Republicano Mineiro. O Partido Progressista, como
partido do interventor, guardará uma relação de compromisso com o governo
central, que o PRM não conhecera."(3)
Deste novo partido estava excluído Francisco Campos, marginalizado do jogo
político nacional e do processo de conciliação e recomposição política que
se inicia após a Revolução Constitucionalista de 1932. Seu rompimento com
Capanema é pessoal e amargo, e ocorre na disputa dos votos de Pitangui,
base política de ambos, para a Constituinte de 1934.
"Capanema," escreve Campos, "V. não tem o privilégio do serviço
de investigação e vigilância. Estou inteiramente a par das providências
tomadas por V. em relação a Pitangui. Não. estranho que V. peça votos para
o PP e peça votos contra mim. Está no seu direito. Nem lhe peço nenhum tratamento
de favor. O que, porém, me surpreende é que V. pretenda capitular de crime
qualquer ato de nobreza da população de Pitangui para comigo". E, mais
adiante: "V. intima Pitangui a me negar pão e água, como a um aventureiro
de estrada. V. exige que eu não tenha entrada na casa paterna; que, nela
e entre os meus, eu seja tratado como inimigo e como réprobo." O grande
inimigo agora é Antônio Carlos, que havia sido um dos fiadores da Legião
de Outubro: "O que mais me comove, porém, Capanema, é que V., valendo-se
de sua situação ocasional, queira impor a Pitangui um ato de tamanha indignidade,
como e de, em troca dos vinténs que V. lhe pode dar, entregar ao Antônio
Carlos a sua alma e o seu coração, considerando indigno de reprovação e
de castigo aquilo, exatamente, que distingue uma sociedade de homens de
um aglomerado de animais". ( ...)" Você intima Pitangui a ser
ingrato, insensível e brutal. V. não lhe reconhece o direito de ter alma.
Privando-o de alma, V. terá dado à vingança de Antônio Carlos a mais completa
satisfação." A carta termina no mesmo tom amargo: "que inveja
teria de V., se não fosse a pena que sinto de Pitangui e, particularmente,
de sua mocidade e inteligência. Que dia não anuncia esta madrugada? Do amigo
e admor., Francisco Campos."
A resposta de Capanema, de 29 de abril de 1933, é formal e conciliadora:
"Doutor Campos," diz ela, "a sua carta me acusa de uma vilania.
Não a cometi. (...) Não trabalhei direta ou indiretamente para que as portas
do lar pitanguiense lhe fossem fechadas ou para que os votos do reconhecimento,
da amizade ou da admiração lhe fossem negados na sua, na nossa terra. Muito
menos pronunciei uma palavra que significasse desapreço pela sua admirável
figura ou desrespeito pelos seus preclaros antepassados. O que fiz e estou
fazendo, com firmeza e claridade, é dizer aos meus conterrâneos, correligionários
do Partido Progressista - de que sou um dos chefes -, que a orientação que
lhes dou é a de votarem integralmente na chapa desse mesmo partido. (...)
Estou cumprindo o meu dever o qual é ainda mais belo porque é mais duro
de cumprir e porque contraria os impulsos do coração. O senhor está envenenado
pela intriga e exacerbado pela paixão. É pena que um homem de seu gênio,
talhado para conduzir uma geração inteira de moços de ação e de cultura,
não seja capaz da apolínea serenidade de um verdadeiro homem de Estado."
De fato, a aventura da legião está terminada, os tempos são outros, e a
Campos só resta, pelo menos no momento, a indignação e a ira. Não perde,
porém, a lucidez. Sua candidatura à Constituinte é mantida até o último
momento, e defendida em um documento denominado "Uma análise enérgica
do momento político, cuja publicação a censura impediu". Nele, Campos
coloca o dedo no aspecto crucial do estilo politico que passaria a dominar
a política mineira a partir de então, e renuncia à independência e a um
projeto político próprio em troca das benesses do poder:
"Até hoje, onde e sobre que problemas se ouviu a voz oficial
de Minas? Qual o seu pensamento em tudo quanto se tem deliberado em todas
as questões, sejam de ordem política, sejam de ordem econômica e financeira?
Qual a contribuição oficial de Minas nos debates oficiais relativos à
reconstrução das nossas instituições políticas? As suas exigências, os
seus interesses, as suas tendências, as suas opiniões, que expressão já
encontraram nos conciliábulos e nas combinações de que, entre os responsáveis
pelo governo e pela direção do Brasil, têm sido objeto os rumos a se imprimirem
nos negócios nacionais? A todas essas cogitações têm estado ausentes o
governo de Minas e o seu partido. Minas não se interessa por essas vagas
abstrações; não será por questões de idéias, de princípios e de doutrinas
que Minas há de mover-se dos seus cômodos. O que aquele governo reclama
é o que costuma reclamar uma Prefeitura - nomeações e demissões de coletores,
agentes fiscais e inspetores de ensino. Eis o seu quinhão e os sinais
de seu prestígio. A Prefeitura de Minas não tem outras aspirações a satisfazer.
Talvez a de Patos seja mais exigente nas suas reivindicações..."
Esta, em síntese, a grande diferença entre Capanema e seu mentor de início
de carreira. Campos foi, sempre, um intelectual na política, no sentido
de que toda sua atuação se fazia a partir de determinadas idéias e concepções
que lhe pareciam mais apropriadas para a época e para o jogo político no
qual se envolvia. Capanema, sem deixar de ser também um homem de cultura,
parecia mover-se muito mais pelas contingências do dia-a-dia, em uma estratégia
de conservação e acúmulo de poder que, no final, se mostraria mais realista
e mais efetiva, ainda que tivesse que pagar o preço da perda de autonomia
e independência. Sempre haveria algum espaço, nos anos de carreira pública
que se seguiriam, para que o intelectual pudesse se manifestar, no cultivo
das relações pessoais, no apoio pessoal a homens de talento, e, mais tarde,
nos projetos mais ambiciosos de reforma educacional. Mas se o estilo é o
do intelectual, o que predomina é o político com seu instinto pelo poder.
É o oposto de Campos, e isto talvez explique o sucesso de um e o fracasso
do outro.
O pacto com a Igreja
Se a estratégia de mobilização política de Campos não teve muito futuro,
sua outra estratégia, a de estabelecimento de um pacto com a Igreja, parece
ter tido uma permanência e repercussões muito mais profundas. A Igreja Católica
deveria oferecer ao novo regime uma ideologia que lhe desse substância e
conteúdo moral, sem os quais, intuía Campos, não conseguiria se consolidar.
Não importa, aqui, a convicção religiosa pessoal de Campos, mas o papel
político e instrumental que ele percebia para a Igreja em seu projeto político.
Este papel fica bastante explícito na carta enviada por Campos a Amaro Lanari
em março de 1931. Nela, era enfatizada a necessidade de "pedir à Igreja,
não somente inspiração, mas também modelos e quadros de disciplina e ordem
espiritual". Nesta carta Campos faz um pequeno histórico de sua atuação
pregressa a favor da Igreja, lembrando que, "antes de proposto o projeto
de reforma constitucional em larga entrevista a A Noite e ao Rio
Jornal, levantei a questão das relações entre a Igreja e o Estado no
Brasil, defendendo o ponto de vista de que a Constituição deveria reconhecer
a religião católica como a da maioria dos brasileiros, e portanto, tirar
a ideologia política brasileira desse reconhecimento os corolários implícitos"
[sic] "O meu ponto de vista transformou-se nas chamadas emendas religiosas,
das quais fui o. autor espiritual e que apoiei na Câmara dos Deputados.
Mais tarde, sendo eu Secretário do Interior do Governo Antônio Carlos, foi
facultado o ensino religioso nas escolas primárias do Estado." A seguir
Campos lista três itens que, segundo ele, deveriam fazer parte do programa
da legião, e que atendiam, evidentemente, a reivindicações da Igreja: "O
reconhecimento de efetivos civis às sanções aplicadas pela Igreja aos sacerdotes
do culto católico"; "a sanção civil para o casamento religioso,
não somente por motivos religiosos, como também por motivos de ordem civil
e social, pois a maioria dos matrimônios no Brasil é celebrada na Igreja";
e, finalmente, "o ensino facultativo da religião nos estabelecimentos
de ensino primário e secundário."
O pacto ganha forma na carta que Campos envia ao presidente Vargas em abril
do mesmo ano, acompanhando a proposta de introdução do ensino religioso
facultativo nas escolas públicas de todo o pais, e tendo que vencer, para
isto, a resistência tanto da tradição positivista quanto de grupos protestantes,
principalmente do sul do pais
"Permito-me acentuar a grande importância que terá para
o governo um ato da natureza do que proponho a V. Exa. Neste instante
de tamanhas dificuldades, em que é absolutamente indispensável recorrer
ao concurso de todas as forças materiais e morais, o decreto, se aprovado
por V. Exa., determinará a mobilização de toda a Igreja Católica ao lado
do governo, empenhando as forças católicas, de modo manifesto e declarado,
toda a sua valiosa e incomparável influência no sentido de apoiar o governo,
pondo a serviço deste um movimento de opinião de caráter absolutamente
nacional". Assinando o decreto, prossegue Campos, "terá V..'Exa.
praticado talvez o ato de maior alcance político do seu governo, sem contar
os benefícios que da sua aplicação decorrerão para a educação da juventude
brasileira". "Pode estar certo", conclui, evidentemente
com conhecimento de causa, "que a Igreja Católica saberá agradecer
a V..'Exa. esse ato, que não representa para ninguém limitação à liberdade,
antes uma importante garantia à liberdade de consciências e de crenças
religiosas".
É desta época, sem dúvida, que datam os contatos do grupo mineiro do qual
Capanema fazia parte com Alceu Amoroso Lima, líder leigo do movimento católico
da época, e que teria influência tão grande nas futuras atividades de Capanema
como ministro da Educação. Esta vinculação é clara na carta que Alceu envia
a Mário Casassanta em 1932, a propósito de seu livro Razões de Minas,
que começa, significativamente, com uma crítica indireta a Campos:
"Inquietou-me um pouco o 'panteísmo' goethiano do prefácio,
esse primado da ação sobre o ato, que é um dos pecados mais graves do
'mobilismo' contemporâneo. Creio que uma orientação fascista, como teve
o movimento legionário em boa hora iniciado pelo Capanema, pelo Campos,
por V., pelos novos mineiros, só pode ser útil a Minas e ao Brasil, se
mantiver o 'primado da inteligência' como meio de defesa da supremacia
da Fé. De outro modo, através do hegelianismo, do primado da ação, continuaremos
apenas no evolucionismo, no relativismo que provocam o ceticismo e que
numa nacionalidade como a nossa, sem estrutura certa, sem ideais definidos,
sem unidade geográfica e sem critério político, poderá ser o nosso desastre
definitivo".
E mais tarde, referindo-se ao movimento constitucionalista de São Paulo
de 1932:
"Quanto aos ideais, estavam tão errados os de 30 como
os de 32: o liberalismo democrático, a 'pureza' dos princípios constitucionais
de 91, como queria a Aliança Liberal ou como hoje quer São Paulo. Portanto:
afirmação de varonilidade vital e de ilusão ideológica em 30 e em 32.
Hoje São Paulo será provavelmente vencido. Qual o resultado desse desfecho
diverso em face de premissas idênticas? É o que eu procurei nos fatos
e nos livros como o seu, de espíritos capazes de ver o fundo dos acontecimentos."
A importância desta carta é que ele já define, desde o início, os termos
nos quais a Igreja, através de seu líder intelectual mais categorizado,
via a colaboração com o novo regime e com o projeto politico de Francisco
Campos. Havia uma identidade de pontos de vista quanto à falência do regime
liberal, e também concordância, evidentemente, quanto à importância dos
valores religiosos como fundamento ideológico para a consolidação moral
do país. Mas havia, também, uma divergência profunda. Apesar de considerar
"útil" a orientação fascista do movimento iniciado por Campos,
Alceu deixa clara sua divergência profunda com um dos princípios básicos
do fascismo e do pensamento político de Francisco Campos, que é a crença
na supremacia da ação e da vontade sobre o uso da razão. Pensador católico,
Alceu Amoroso Lima não se afasta da idéia clássica de que é possível estabelecer
uma ordem social de base moral erigida de acordo com os princípios da filosofia
racional, cujas conclusões coincidirão, necessariamente, com as verdades
reveladas da religião cristã. É esta racionalidade que permitiria sair do
relativismo, do ceticismo, da falta de critério. É ela que permitiria substituir
a debilidade de princípios que Alceu via no liberalismo democrático por
uma ordem social fundada em princípios cristãos bem definidos. Para Francisco
Campos, no entanto, os princípios cristãos pareciam ser, principalmente,
um instrumento de mobilização política, e não um valor em si. Isto talvez
explique por que, apesar da aproximação inicial, o relacionamento da Igreja
Católica como o tipo de política preconizado por Francisco Campos jamais
tenha se aprofundado.
Alceu Amoroso Lima e o Ministério da Educação.
Alceu Amoroso Lima foi certamente a influência mais importante sobre Capanema
nos 11 anos (1934-1945) em que ele permaneceu à frente do Ministério da
Educação e Saúde. Em março de 1934 Capanema, marginalizado pela inesperada
nomeação de Benedito Valadares à interventoria de Minas, busca através de
Alceu uma volta à vida politica, mas sem grandes esperanças. "Infelizmente",
lhe escreve Alceu do Rio de Janeiro, "nada de novo posso comunicar-lhe,
sobre o assunto de que aqui falamos antes de sua partida. O meio oferece
grandes dificuldades por estarem ocupadas todas as posições. Creio que,
em Belo Horizonte, será mais fácil o prosseguimento de sua tarefa de advogado,
à espera de dias melhores. Continuo, entretanto, atento, e à mínima oportunidade
lhe comunicarei o que houver. Conversei, aliás, com o Negrão de Lima, que
me comunicou já ter V. recomeçado a advogar." E mais adiante: "a
situação política continua delicada e envolta em uma atmosfera de grandes
apreensões. Tudo é possível em um momento como este, mas qualquer alteração
da ordem seria agora um desastre para todo o Brasil. Continuo em grande
atividade para encaminhar as emendas religiosas que, espero em Deus, ver
vitoriosas, para bem de todo o povo brasileiro".
Em abril a situação ainda é difícil, e o apoio moral de Alceu é certamente
importante para um político no ostracismo: "não é sem sacrifícios que
se consegue a autoridade para conduzir os povos e é na adversidade que se
forjam os caráteres chamados a essas difíceis posições de mando. O momento
que V. está atravessando corresponde ao da adolescência, isto é, aquele
em que mais facilmente somos vitimas das paixões e em que tudo o que fazemos
marca para toda a vida. Você teve a infância de sua vida política coberta
de rosas. Chegaram agora os espinhos, e você provará se pode passar além,
vencendo as circunstancias como anteriormente fora por elas conduzido. Por
isso digo que o momento é o mais delicado de sua vida de homem público.
Deus o ilumine e ampare."
Em 1935, no entanto, Capanema já está instalado no Ministério da Educação
e Saúde, enquanto se trava, nos meios culturais e políticos do pais, a grande
batalha sobre o sentido e a orientação do sistema educacional brasileiro.
De um lado, os educadores do chamado movimento escolanovista, com Anísio
Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e alguns outros à frente,
buscando uma revolução pedagógica e uma educação igualitária sob a responsabilidade
do Estado. Do outro, o movimento católico, propugnando pelo ensino religioso
e livre da tutela do Estado. Entre os extremos, Capanema jamais se decide
de maneira totalmente explícita, mas o peso da influência de Alceu é, sem
dúvida alguma, o predominante.
Data de julho de 1935 uma carta vigorosa e combativa, em que Alceu expõe
sem rodeios a filosofia política da reação católica que liderava. Sua grande
preocupação é a Universidade do Distrito Federal, formada sob a liderança
de Anísio Teixeira, e que terminaria fechada alguns anos depois por Capanema.
E um documento que merece citação extensa:
"A recente fundação de uma Universidade Municipal, com
a nomeação de certos diretores de Faculdades, que não escondem suas idéias
e pregação comunista foi a gota d'água que fez transbordar a grande inquietação
dos católicos. Para onde iremos, por este caminho? Consentirá o governo
em que, à sua revelia mas sob a sua proteção, se prepare uma nova geração
inteiramente impregnada dos sentimentos mais contrários à verdadeira tradição
do Brasil e aos verdadeiros ideais de uma sociedade sadia? (...) Os católicos,
meu caro Capanema, não querem do governo nem privilégios, nem subvenções,
nem postos de responsabilidade política. Não temos a ambição do Poder,
nem é por meio da política que esperamos desenvolver nossos trabalhos.
Estamos, portanto, perfeitamente à vontade para colaborar com o Estado,
em tudo que interessa ao bem comum da nacionalidade. Esse interesse coletivo,
que tanto preocupa ao Estado como à Igreja, nós o queremos alcançar por
meios diversos, se bem que não antagônicos. (...) O que desejamos, portanto,
do governo é apenas:
1. Ordem pública, para permitir a livre e franca expansão
de nossa atividade religiosa na sociedade;
2. Paz social, de modo a estimular nosso trabalho
de aproximação das classes, que é, como você sabe, o grande método de
ação social recomendado invariavelmente pela Igreja:
3. Liberdade de ação para o bem, mas não para o mal,
para a imoralidade, para a preparação revolucionária, para a injúria pessoal.
4. Unidade de direção de modo a que a autoridade se
manifeste uniforme em sua atuação e firme em seus propósitos".
Passando dos princípios gerais a problemas concretos, todos eles, na visão
de Alceu da época, de infiltração socialista e comunista: "Devo apenas
advertir-lhe que os progressos recentes da Aliança Nacional Libertadora,
a feição socialista que vai assumindo o governo municipal do Rio de Janeiro,
bem como a impregnação comunista de muitos sindicatos e de alguns elementos
do Ministério do Trabalho vem trazendo à opinião pública do pais motivos
da mais profunda inquietação. E os católicos esperam do governo uma atitude
mais enérgica de repressão ao Comunismo, que assumiu a figura desse partido
acima mencionado (ALN) para agir hipocritamente à sombra de nossas leis".
Alceu se mostra satisfeito pela nomeação para a pasta da Guerra e da polícia
do Distrito Federal de "dois homens de bem, de ordem e de coragem,
que são no momento dois esteios da ordem pública" (Eurico Dutra e Felinto
Müller) e formula "nossos votos para que seja cada vez mais prestigiada
e auxiliada a atuação destas duas autoridades". Em outras áreas, no
entanto, a situação parece menos auspiciosa, e cabeças precisam rolar: "expurgar
pois o Exército e a Marinha de elementos políticos revolucionários, reforçar
a polícia, excluir dos sindicatos e dos quadros do Ministério do Trabalho
elementos agitadores, organizar a educação e entregar os postos de responsabilidade
nesse setor importantíssimo a homem de toda a confiança moral e capacidade
técnica (e não a socialistas como o diretor do Departamento Municipal de
Educação) - tudo são tarefas que o governo deve levar adiante imediata e
infatigavelmente, pois delas dependem a estabilidade das instituições e
da paz social". Depois de descrever em detalhe os propósitos da Ação
Católica, conclui:
"Os católicos serão os aliados naturais de todos os que
defenderem os princípios da justiça, da moralidade, de educação, de liberdade
justa, que a Igreja Católica coloca na base de seus ensinamentos sociais.
Vejam eles que o governo combate seriamente o comunismo (sob qualquer
aparência ou máscara para disfarçar) - súmula de todo o pensamento anti
espiritual e portanto anti-católico; que combate seriamente o imoralismo
dos cinemas e teatros pela censura honesta; organiza a educação com a
imediata colaboração da Igreja e da Família - vejam isso os católicos
e apoiarão, pela própria força das circunstâncias, os homens e os regimes
que possam assegurar ao Brasil esses benefícios".
Sem repudiar o pacto político que Alceu lhe oferecia, Capanema busca também
manter seus vínculos com o outro lado. Em dado momento trata de convidar
a Fernando de Azevedo para o cargo de Diretor Nacional de Educação, o que
provoca reação enérgica e imediata de Alceu:
"Nada tenho contra a pessoa do Dr. Azevedo, cuja inteligência
e cujas qualidades técnicas muito admiro. Ele é hoje, porém, uma bandeira.
Suas idéias são conhecidas, seu programa de educação é público e notório.
Sua nomeação seria, por parte do Governo, uma opção ou uma confusão. E
tudo isso, eu teria que dizer de público." (...) "Como prezo
muito as posições definidas e já dei, há muito, a conhecer qual a minha
atitude, em matéria pedagógica, não me seria possível continuar a trazer,
ao Ministério da Educação, a pequena mas desinteressada colaboração que
até hoje lhe tenho dado, na hora grandiosa que você está empreendendo
nesses domínios, caso se confirmasse essa nomeação, a meu ver errada e
inoportuna." (Carta de 19 de março, sem indicação de ano.)
Se Alceu veta a Fernando Azevedo, muitos nomes aparecem em suas cartas,
como recomendados a postos de importância na área educacional: Guilherme
de Azevedo Ribeiro ("latinista emérito, elemento de primeira ordem");
J. A. Souza Viana ("mineiro. Modestíssimo. Cabeça sólida. Enorme cultura
cientifica"); Everardo Backheuser ("presidente da Confederação
Católica Brasileira de Educação Grande experiência"); Euríalo Canabrava
("grande cultura. Elemento a impulsionar'); Raul Leitão da Cunha ("grande
valor moral e intelectual. Extrema independência"); Leonídio Ribeiro;
Hamílton Nogueira ("moral irrepreensível; pessoa de absoluta confiança");
José Buckle de Figueiredo ("excelente juiz; muito prestígio");
Iodice Alves ("ex-diretor de instrução municipal na Bania. Perseguido,
no Rio, pelo Anísio, por ter se oposto a seus sectarismos"); Artur
Gaspar Viana ("Inspetor Escolar no Rio... Pessoa de Confiança");
Wagner Antunes Dutra ("meu secretário particular. ... Alma puríssima
e auxiliar precioso, como conselheiro diplomata... observador. Oficial-de-gabinete
ideal. Absoluta confiança"); Álvaro Vieira Pinto ("professor de
biologia e filosofia. Moral ótima. Rapaz digno e paupérrimo"). (Nomes
constantes de um papel com o título "pessoas que eu recomendaria vivamente
para qualquer cargo em matéria pedagógica"). Outra carta sugere Murilo
Mendes, Almir de Castro e Vinícius de Morais, "cada um dos quais é
um valor autêntico, do ponto de vista intelectual como moral, dos melhores
que temos no Brasil"; outra ainda indica José Maria Belo para o lugar
de Diretor Nacional de Educação. Uma carta de 1936 indicava a Mário Casassanta
para o mesmo cargo. Outra apóia o padre Hélder Câmara; e assim por diante.
Capanema e a Cultura
Seria incompreensível a tentativa de Capanema de indicar a Fernando de Azevedo
para a Diretoria Geral de Educação com o beneplácito da Ação Católica, prezasse
ele, tanto quanto Alceu Amoroso Lima, as "posições definidas"
das quais este último fazia questão. No entanto, o estilo pessoal do ministro
era outro. Capanema buscava o convívio, a amizade e a colaboração dos intelectuais,
tratando de colocar-se, tanto quanto possível, acima e alheio ao fragor
dos combates ideológicos nos quais todos estavam engajados, e que envolviam
seu ministério. Se era uma atitude de respeito profundo à inteligência e
à criatividade enquanto tais, por cima das ideologias, ou um desprezo íntimo
pelas querelas acadêmicas dos escritores e pintores, é impossível saber.
De qualquer maneira, era certamente mais fácil buscar esta neutralidade
nas artes do que na Educação. Se a influência de Alceu predomina e dá o
tom da política educacional de seu ministério, nas letras e, particularmente,
nas artes plásticas, havia ampla margem para o cultivo da cultura enquanto
tal.
O projeto de construção do edifício sede do Ministério da Educação é a grande
oportunidade de colocar esta atitude em prática. Em uma carta de outubro
de 1945, Lúcio Costa sintetiza os ideais que envolviam o projeto do edifício
do ministério, e as condições que permitiram sua construção:
"Foi, efetivamente, neste edifício onde, pela primeira
vez, se conseguiu dar corpo, em obra de tamanho vulto, levada a cabo com
esmero de acabamento e pureza integral de concepção, às idéias mestras
porque, já faz um quarto de século, o gênio criador de Le Corbusier se
vem batendo com a paixão, o destemor e a fé de um verdadeiro cruzado".
(...) "Neste oásis circundado de pesados casarões de aspecto uniforme
e enfadonho, viceja agora,m irreal na sua limpidez cristalina, tão linda
e pura flor - flor do espírito, prenúncio certo de que o mundo para o
qual caminhamos inelutavelmente, poderá vir a ser, apesar das previsões
agourentas do saudosismo reacionário, não somente mais humano e socialmente
mais justo, senão, também, mais belo".
Feita a grande obra, a Europa se curva diante do Brasil:
"São agora os mestres arquitetos dos Estados Unidos da
América e do império britânico que se abalam dos respectivos países para
virem até aqui, apreciar e aprender... Que estranho encadeamento de circunstância
tornou possível um tal milagre?"
A resposta, para Lúcio Costa, estava em uma conjunção feliz de pessoas bem
dotadas, a começar pelo próprio Capanema: "amparado, apenas, inicialmente,
na intuição poética e no discernimento critico de intelectuais como os senhores
Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Rodrigo Melo Franco de Andrade,
dentro em pouco sua consciência da legitimidade dos princípios fundamentais
defendidos nesta obra adquiria tal força de convicção que, apesar dos interesses
políticos em jogo e do seu natural apego ao cargo que exerce com tamanha
dedicação, o senhor soube arrostar bravamente a maré montante das críticas,
correndo todos os riscos sem jamais transigir nem esmorecer no propósito
de levá-las a bom termo". Ê Capanema que promove a vinda de Le Corbusier
ao Brasil em 1937, e "foi graças a esse convívio de apenas três meses
que o excepcional talento do arquiteto Oscar Niemeyer - Oscar de Almeida
Soares, conforme, no meu apego à tradição lusitana, preferia vê-lo chamar,
que este é o seu legitimo nome - até então inexplicavelmente incubado, revelou-se
em toda a sua plenitude".
Não seria aqui o lugar para uma avaliação critica mais aprofundada desta
escola de arquitetura que se firma com o edifício do Ministério da Educação
e chega à sua consagração e apogeu com a construção de Brasília. Basta a
distancia do tempo para darmo-nos conta de que o atual Palácio da Cultura
do Rio de Janeiro, menos do que o prenúncio do mundo "mais humano,
socialmente mais justo" além de mais belo, é pouco mais do que uma
relíquia arquitetônica perdida no caos urbano do Rio de Janeiro, monumento
aos ideais de um grupo de intelectuais que encontrava acesso e guarida em
um ministro poderoso. Se o edifício do ministério - tanto quanto, anos mais
tarde, Brasília - não contribuíram em nada para este mundo mais humano e
mais justo, eles contribuíram certamente para a glória de seus idealizadores,
parecendo confirmar a idéia de que o milagre do apoio à cultura acima das
idéias, tanto quanto a redenção do homem através da forma, era possível
e realizável.
Algo da maneira pela qual o grande projeto do ministério foi realizado pode
ser visto na correspondência de Capanema com Cândido Portinari. Capanema
tinha idéias definidas sobre o que Portinari deveria fazer:
"No salão de audiência, haverá os doze quadros dos ciclos
de nossa vida econômica, ou melhor, dos aspectos fundamentais de nossa
evolução econômica". "Na sala de espera, o assunto será o que
já disse - a energia nacional representada por expressões de nossa vida
popular. No grande painel, deverão figurar o gaúcho, o sertanejo e o jangadeiro.
Você deve ler o III capítulo da segunda parte de Os Sertões de
Euclides da Cunha. Ai estão traçados da maneira mais viva os tipos do
gaúcho e do sertanejo. Não sei que autor terá descrito o tipo do jangadeiro.
Pergunte ao Manuel Bandeira" (carta de Capanema a Portinari, sete
de dezembro de 1942). Em uma carta sem data, Portinari mostra como a orientação
ministerial era acatada: "Não escrevi antes por andar muito cansado
e desanimado, mas agora com a notícia de que o Sr. quer novos e imensos
murais estou novamente em forma e á espera da documentação para dar início
aos estudos. Gostaria que o Sr. me enviasse o seu discurso. As vidas de
Caxias, Tiradentes e José Bonifácio. Foram os motivos que o Sr. sugeriu.
Gostaria de permanecer aqui ainda algum tempo e creio que seria até bom
fazer os primeiros estudos aqui fora do barulho do Rio. Mesmo que eu não
fizesse estudos definitivos pelo menos iria lendo o que o Sr. me mandar
e me impregnar do assunto até transformá-lo em cores. Em todo caso estou
a sua disposição. Se o Sr. achar melhor eu estou ali, é só mandar avisar.
Do seu amigo certo, Portinari."
Esta amizade certa tinha uma importante história anterior, que foi a defesa
e a proteção de Capanema ante as acusações que sofria Portinari de esquerdista
ou comunista. Existe pouca informação a este respeito no Arquivo Capanema,
a não ser uma carta escrita de Nova Iorque, onde Portinari havia obtido
grande sucesso com suas exposições. "Tive notícias ontem que me deixaram
muito triste. Parece que publicaram artigo na Nação Armada - explorando
o velho tema. Enquanto isto tinha sido tratado aqui como se eu fosse um
grande homem" (...). "É dizendo que o presidente Getúlio é querido
pelo povo, que as nossas leis trabalhistas são as mais avançadas do mundo,
que ele criou o ministério da Educação e Saúde, o Ministério do Trabalho.
Que o presidente é um grande patriota que tem defendido o Brasil dos exploradores
e coisas do gênero. Acho injusto o que estão fazendo comigo. Falo assim
com o Sr., porque tem sido o seu apoio que me tem levantado até conseguir
o sucesso que obtive aqui" (carta de Portinari a Capanema, 20 de novembro
de 1940).
Se Portinari cresce e viceja sob a proteção do ministro, um outro talento
da cultura brasileira não conseguiria senão fenecer. Era Mário de Andrade,
expelido do Departamento de Cultura de São Paulo, e desde então angustiado
e incapaz de encontrar-se novamente. Do Rio, Capanema lhe oferece vários
tipos de trabalho e emprego, que Mário de Andrade eventualmente aceita,
mas sem jamais se conformar.
"Depois de nossa conversa", escreve Mário de Andrade em 26 de
junho de 1938, "me pus refletindo muito sobre o meu caso. E sou obrigado
a lhe confessar mais uma vez que o posto de diretor do serviço teatral eu
não posso mesmo de forma alguma aceitar. E um lugar de projeção muito brilhante
e muito violenta, vou lutar certamente muito e vou certamente fracassar.
A sua oferta me encontra derreado, despido de muitas das minhas ilusões
e sem o menor desejo de me vingar de ninguém. Preciso de trabalho e estou
sempre disposto a trabalhar. Mas não quero lutas fortes, não quero gritaria
em torno de mim." Mário de Andrade pleiteia um lugar na universidade,
mas não consegue. Em troca, Capanema lhe oferece um lugar na direção do
projeto de uma grande enciclopédia a ser publicada pelo Instituto Nacional
do Livro, que Mário de Andrade recusa, dando algumas de suas razões e sentimentos:
"Tenho uma espécie de defeito de alma que me põe sempre demasiadamente
subalterno diante das pessoas altamente colocadas. Por mais amizade que
lhe tenha e liberdades que tome consigo, sempre é certo que diante de você
não esqueço nunca o ministro, que me assusta, me diminui e me subalterniza.
Isto aliás me deixa danado de raiva e esta é a razão por que fujo sempre
das altas personalidades. Por carta e de longe, posso me explicar com menos
propensão ao consentimento." Usando a distância, Mário aproveita para
protestar contra o fechamento da Universidade do Distrito Federal, no qual
Capanema havia tomado parte: "Não pude me curvar ás razões dadas por
você pra isso; lastimo dolorosamente que se tenha apagado o único lugar
de ensino mais livre, mais moderno, mais pesquisador que nos sobrava no
Brasil, depois do que fizeram com a Faculdade de Filosofia e Letras de S.
Paulo. Esse espírito, mesmo conservados os atuais professores, não conseguirá
reviver na Universidade do Brasil, que a liberdade é frágil, foge das pompas,
dos pomposos e das pesadas burocracias".
A recusa de Mário de Andrade de trabalhar na enciclopédia tem razões mais
específicas, que vão desde divergências quanto à própria concepção do projeto
até a existência de pessoas que teriam que ser deslocadas caso ele assumisse
o posto. E termina a carta:
"Tudo isso está perfeitamente certo, mas nos separa uma
distância irredutível de pontos de vista. As suas razões são razões de
ministro, as minhas são razões de homem. Você decide com o áspero olho
público, mas eu resolvo com o mais manso olhar da minha humanidade"
(carta de Mário de Andrade a Capanema, 23 de fevereiro de 1939).
A partir daí, só lhe cabem pequenos trabalhos e uma situação incerta, que
Mário aceita por falta de alternativas, com grande custo pessoal. Em junho
de 1939 Mário de Andrade trabalha precariamente para o Instituto Nacional
do Livro, e escreve a Capanema pedindo que lhe paguem pelo que produziu.
A situação é desesperadora: "venho pedir a você que me faça pagar isto
imediatamente, e por outra via possível aí do Ministério, pois estou em
uma situação insustentável, crivado de dívidas ridículas, sem cara mais
para me apresentar acertos amigos, que positivamente não têm a obrigação
de me sustentar. Felizmente não estou acostumado, em quarenta e cinco anos
de vida, a viver de expedientes e situação penosa. O resultado é um desespero,
uma inquietação, uma desmoralização interior que não mereço, da que, espero,
o Ministério não tem razão para me obrigar". Nesta época Mário de Andrade
aguardava uma nomeação prometida pelo ministro, que, entretanto, jamais
se corporifica: "muito mais agradável pra mim será trabalhar com você,
no Instituto do Livro, mas se não é possível, suplico mais este favor a
você de me dizer francamente o que há, pra que eu me arranje". Mário
de Andrade, no entanto, jamais "se arranjaria" de forma satisfatória,
e terminaria sua vida, enfermo e psicologicamente desgastado, alguns anos
após.
É difícil a posição de equilíbrio e integridade ante as contradições inevitáveis
da vida à sombra do poder. Se Capanema foi sempre, acima de tudo, o ministro,
seu principal auxiliar e conselheiro, Carlos Drummond, manteve-se todo o
tempo acima de tudo como intelectual. Quanto lhe custou a tensão do posto
que ocupava, e como conseguia manter unidas coisas ás vezes tão opostas,
só seu depoimento pessoal poderá esclarecer. O que é certo é que houve momentos
em que a conciliação não parecia mais possível. Em março de 1936, Capanema
convida Alceu Amoroso Lima para uma conferência no ministério sobre "A
Educação e o Comunismo", à qual Drummond resolve não ir, e, por lealdade,
coloca seu cargo à disposição do ministro:
"Meu caro Ministro e amigo", escreve o poeta, "às 5 horas
da tarde, subindo no elevador do Ministério, e cruzando com colegas do Gabinete
que desciam para assistir à Conferência do Alceu, fiz um rápido exame de
consciência e verifiquei que eu não poderia fazer o mesmo, ou antes, que
eu não devia fazer o mesmo. Uma outra conclusão, logo, se impôs: não podendo
participar de um ato público, promovido pela autoridade a que sirvo, e que
visava afirmar, mais do que uma orientação doutrinaria, um programa de ação
do governo, eu não só deixava de servir a essa autoridade como lhe criava
uma situação desagradável. É verdade que minha colaboração foi sempre prestada
ao amigo (e só este, de resto, lhe perdoaria as impertinências de que costuma
revestir-se) e não propriamente ao Ministro nem ao governo, mas seria impossível
dissociar essas entidades e, se eu o conseguisse, isto poderia servir de
escusa para mim, mas não beneficiaria o Ministro. É verdade, ainda, que
não tenho posição à esquerda, senão apenas sinto por ela uma viva inclinação
intelectual, de par com o desencanto que me inspira o espetáculo do meu
país. Isto não impede, antes justifica que eu me considere absolutamente
fora da direita e alheio a seus interesses, crenças e definições. E aí está
a razão por que me julguei impossibilitado de ouvir o meu amigo pessoal
Alceu. (...) Minha presença na conferência de hoje seria mais, talvez, do
que silenciar inclinações e sentimentos. Poderia ser tida como repúdio a
esses sentimentos e inclinações. Por isto não fui ao Instituto." Drummond
teme que sua atitude possa ser interpretada de forma prejudicial a Capanema,
e por isto prefere se afastar: "daí esta carta, que tem o mais razoável
dos propósitos: o de não permitir que, para não magoar o amigo, V. ponha
em risco a sua situação politica e, mesmo a sua posição moral em face ao
governo. O amigo está intacto e continua a desejar-lhe bem. Dispensado o
diretor de gabinete (e que irritante diretor de gabinete tem sido o seu),
você conservará o amigo, teimoso e afetuoso, que o abraça fraternalmente,
Rio, 25-3-36. Carlos."
A amizade prevaleceria, e a dispensa não seria concedida. Drummond continuaria,
até o final do Estado Novo, a servir de ponte e filtro nos contatos entre
a cultura brasileira e o ministério Capanema. Ambos, cada qual a seu estilo
e a partir de motivações tão diferentes, teriam enorme responsabilidade
sobre os caminhos contraditórios, fecundos e freqüentemente mistificados
que a educação e a cultura brasileira assumiriam nas décadas seguintes.
Notas
1. Não é isto que surge, no entanto, de uma análise independente
da atuação da Secretaria do Interior no período, onde abundam as queixas
quanto ao uso arbitrário da força à disposição da Secretaria do Interior
para a consecução de seus objetivos. Bomeny, Maria Helena Bousquet, "A
estratégia de conciliação: Minas Cerais e a abertura politica dos anos 30",
em Ângela Maria de Castro Comes, ed., Regionalismo e centralização política:
partidos e constituinte nos anos 30 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980).
2. Ver a respeito Bomeny, Helena Maria Bousquet, op.
cit.
3. Bomeny, op. cit. pp. 52-3.
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