
O IBGE, o
IPC-r, a Inflação e as Eleições Simon Schwartzman
Publicado no Jornal do Brasil, 15 de setembro
de 1994, p. 11.
O episódio do IPCr de agosto, reacendendo o fantasma da inflação em meio
a uma campanha presidencial centrada nas virtudes e defeitos do plano real,
foi uma prova de fogo para o país e para o IBGE, em relação à capacidade
de todos de entender a importância de manter uma base de credibilidade e
seriedade sem a qual nada pode ser construído. A estabilização da moeda
é só o início de um processo muito mais amplo de estabilização da sociedade
como um todo, sem a qual nada pode ser construído em áreas cruciais como
a educação, a saúde, o emprego e tantas outras. É claro que foi ótimo ganhar
a Copa, mas um efeito negativo da vitória pode ter sido a falsa confirmação
de que o destino do país pode ser resolvido em um momento de sorte, em uma
grande cartada, em um chute de pênalti que significará a vitória ou a derrota
definitiva. Um índice alto ou baixo, uma frase infeliz, o resultado da última
pesquisa eleitoral, uma matéria paga com frase de efeito nos jornais, e
tudo estará ganho ou perdido. O principal problema do IBGE, nesta fase conjuntura
difícil, não tem sido tanto o de defender a qualidade de seu trabalho, mas
o de manter a perspectiva de longo prazo e defender a instituição das pressões,
de fora e inclusive de dentro, que pretendem jogá-la no conflito partidário
e político-eleitoral.
Dito isto, é conveniente colocar a questão do IPCr em uma perspectiva adequada.
Os índices não são números cabalísticos, retirados de alguma cartola, nem
o produto de alquimias inacessíveis processadas nos computadores de Mangueira.
Os índices de preço são o resultado de metodologias muito bem conhecidas
pela imprensa, pelos economistas e outros profissionais do governo, das
universidades e da assessoria dos principais candidatos. Quando muda a moeda
e os preços se realinham, existe sempre a discussão sobre que variações
os índices captam, e sobre quem ganha e quem perde com a adoção deste ou
daquele índice para um ou outro fim. É legítimo divergir sobre a conveniência
ou não de adotar o IPCr como indexador dos salários. Foi uma decisão de
governo, tomada em consulta com o Congresso, e cabe ao governo decidir se
pretende ou não alterar esta política. Mas não houve erro, manipulação ou
ocultamento.
Com a introdução do real, havia basicamente três opções para realizar a
transição de uma moeda para a outra em relação aos índices de preços. A
primeira, adotada em planos de estabilização anteriores, seria fazer um
índice "ponta a ponta". Isto significaria coletar os preços no
início de julho (o "vetor") e compará-los depois com os preços
do final do mês. A virtude seria que não haveria contaminação com os preços
anteriores. Havia, no entanto, dois problemas. O primeiro era que os preços
de um ou poucos dias podem ser atípicos e sujeitos a erros, quando comparados
com o cálculo de médias de preços por um período de 30 dias, como o IBGE
faz normalmente. O segundo era que um índice ponta a ponta estaria sujeito
à crítica de que ignoraria a inflação das semanas anteriores à sua adoção.
A outra solução seria transformar os valores dos reais em cruzeiros reais
e continuar a medir a inflação na antiga moeda, até que as comparações pudessem
ser feitas todas na mesma moeda. A virtude seria manter a série na mesma
moeda. O problema seria a ausência de uma referência de preços na nova moeda,
que era realmente o que interessava.
A solução do IBGE foi trabalhar de forma consistente com o Plano Real e
comparar os preços em real, a partir de 1 de julho, com os preços em URV
do período anterior. A virtude desta opção residia no fato de que haveria
uma base natural de comparação entre os dois períodos. Esta opção foi discutida
extensivamente e adotada com a aprovação da equipe econômica. Ela não traz
nenhuma contaminação do cruzeiro real, que foi totalmente eliminada pela
conversão para URV. O que os altos índices de agosto revelam é que houve
um aumento acelerado de preços em URV no final de junho, ao qual se somou
o efeito do realinhamento tardio e dos aumentos reais dos aluguéis, que
fizeram com que muitos tivessem que pagar aluguéis bem maiores em agosto
do que em julho. Existem diferentes maneiras de colocar os preços dos aluguéis
nos índices, que poderiam dar resultados ligeiramente diferentes - todas
as alternativas foram examinadas. O fundamental é que houve um aumento efetivo
de gastos com moradia entre julho e agosto. Este resultado é consistente
com o encontrado por todos os outros institutos.
Quanto à divulgação, o IBGE decidiu, em conjunto com o governo, conforme
amplamente anunciado no início de agosto, suspender a divulgação de informações
prévias sobre os índices baseadas em estimativas de resultados parciais
do Rio de Janeiro e de São Paulo. Estas informações prévias podiam ser necessárias
em períodos de alta inflação, mas são inúteis quando a moeda se estabiliza
e os índices começam a perder sua importância. O IBGE continuou, no entanto,
a publicar dois índices a cada 15 dias (o IPC-r e o IPCA-E, referidos ao
período de 15 a 15, e o INPC e o INPCA, referidos ao período de 1 a 30 de
cada mês, comparados aos períodos anteriores) sem qualquer restrição ou
interrupção. O IPC-r e o IPCA-E são indexadores utilizados pelo governo,
e podem ser suspensos ou alterados por decisão legal. O INPC e o INPCA constituem
uma referência fundamental para o acompanhamento da economia brasileira,
cuja existência data do final dos anos 70, e não pode ser alterada ao sabor
de contingências de curto prazo sem graves prejuízos. As informações econômicas
e sociais básicas não são do governo, mas da sociedade como um todo, e já
se foi o tempo em que governos manipulavam impunemente os dados, quebrando
os termômetros para não ver a febre.
Esta pequena incursão nos detalhes técnicos dos índices é suficiente para
mostrar que não é possível tratar estas questões em termos de simples oposições
entre "o certo" e "o errado", no calor dos embates político-eleitorais,
sob o holofote da imprensa, sem o risco de grandes simplificações. Existe
sempre um leque de possibilidades e alternativas, e cada uma traz seus benefícios
e suas desvantagens. A responsabilidade de instituições que produzem dados
de grande interesse social é manter a integridade de seu trabalho, mostrando
as alternativas e mantendo a sociedade informada sobre os procedimentos,
as virtudes e as limitações dos dados que produz. A maneira correta de fazer
isto é não se furtar a dar todas as explicações e informações que lhe forem
solicitadas, manter a opinião pública informada e esclarecida e, sobretudo,
manter uma abertura e um diálogo constante com os técnicos e especialistas
oriundos dos diferentes setores da sociedade e do espectro político, de
tal maneia que o consenso sobre a solidez de seu trabalho se construa e
se mantenha.
O sucesso do processo de estabilização e reordenamento econômico não depende
de um ou outro índice isolado, mas de uma mudança de atitudes e perspectivas
de muito maior alcance e profundidade. O IBGE passou bem por esta prova
difícil, e isto é um indício de que o futuro pode ser melhor. Sua contribuição
continuará sendo a de dar ao país os dados de que necessita, com toda a
transparência e a melhor qualidade possível, por menos agradáveis que eventualmente
possam ser.
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