Universidade, Ciência e Ideologia: a Política do Conhecimento, Simon Schwartzman. Zahar, 166 páginas, Xr$350, 1981.

Matéria publicada no Jornal do Brasil, 21 de março de 1981

O ópio dos Intelectuais

Reportagem / entrevista

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Há um fato auspicioso a registrar na vida intelectual brasileira: o retorno, ainda que lento, do matiz aos livros de análise da realidade nacional, numa gradual substituição ao preto e branco das abordagens maniqueístas. Ciência, Universidade e Ideologia, de Simon Schwartzman (autor de São Paulo e o Estado Nacional e Formação da Comunidade Científica no Brasil), vem acrescentar algumas pinceladas de cor a esse quadro ainda em parte dominado pela monotonia.

O tema que enlaça os sete ensaios reunidos no volume é a política do conhecimento. E três deles, pelo menos, falam diretamente da situação brasileira. Um faz propostas específicas com vistas àquilo que o autor considera a melhor maneira de equacionar o problema do planejamento científico e tecnológico; outro acompanha a crise da universidade brasileira a partir do momento em que perdeu a clareza quanto aos seus objetivos; o terceiro trata da liberdade acadêmica, tomando como ponto de referência um fato que durante meses esteve nas páginas dos Jornais, o caso da PUC do Rio de Janeiro.

A ponta da meada que percorre os vários textos será encontrada no último, "Miséria da Ideologia." Se o leitor quiser, poderá começar por ele, e não sem proveito.

Na verdade, esse texto explica e aprofunda uma passagem encontrada na apresentação do livro, quando o autor, depois de destacar o ponto básico da sociologia do conhecimento (a ausência de vácuo social na formação e desenvolvimento da ciência, das ideologias, das religiões), observa: "A preocupação com essas questões deixa de ser um campo fértil para o entendimento da realidade social e se torna uma fonte de confusão e caos conceitual quando se passa da busca de relações ao reducionismo do conhecimento ao nível dos interesses econômicos e políticos dos diversos setores e classes sociais."

Noutras palavras: enquanto a sociologia do conhecimento propõe que ciência, ideologia e religião são determinadas, de maneira geral, por condições históricas e sociais. a moderna ideologia afirma que há um vínculo direto e imediato entre essas condições e qualquer fato ligado a ciência, à religião, etc. Algo muito semelhante à noção de que Deus não apenas criou o mundo, mas também de que nem uma folha se move se não pela sua vontade.

Por que labirintos se chegou a esta simplificação é algo que o autor explica comparando a noção pejorativa que Marx tinha de ideologia e o sentido completamente diverso que ela adquiriu na escolástica em que se transformou o marxismo. Parece claro, aliás, que o marxismo acabaria por conduzir a algo assim, desde que se apresentou com um método no qual estaria a chave para tudo, desde "a ciência socialmente relevante" à arte "esteticamente avançada" e à "participação política mais eficaz e eticamente mais aceitável".

Essa nova pedra filosofal se tornaria extremamente fascinante ao intelectual ansioso por resolver o conflito entre o individual e o coletivo, principalmente porque a possibilidade da eliminação de tal diferença chegava a ele com roupagem científica. O conhecimento científico de tal possibilidade, entretanto, foi substituído por sistemas de "intérpretes e porta-vozes autorizados", que tratam de dar ao leigo as "interpretações mais justas e corretas" " do pensamento dialético.

O pensamento científico e globalizante torna-se ideologia. O que era afirmação provisória ganha o status de dogma, o particular é tomado pelo geral, a verdade de certas proposições passa a ser justificada pelas conseqüências a racionalidade é substituída pelo voluntarismo. A ideologia, a principio transformadora, revolucionária, degrada-se em convencionalismo, conservadorismo e mistificação, paira no nível da convicção e da crença, sacraliza-se. "Utilizada como critério de identificação de companheiros ou adversários políticos", perde o caráter verificador, foge da complexidade, deixa de ser ciência.

Aplicando ao atual momento brasileiro suas reflexões sobre a politização de todas as esferas vida, Schwartzman mostra que a tentação de romper impasses sociais através de um processo político avassalador pode conduzir a uma situação catastrófica na área da cultura, com o abandono de toda a experiência acumulada. Diante dessa perspectiva, cumpre ao intelectual " 'manter e defender o quanto possível a independência e a lucidez" em sua atividade.

Isto significa que poderá, inclusive, ficar durante algum tempo à margem dos acontecimentos. Não significa, porém. que a crítica da ideologia deva substituir a vida política ou eliminar a necessidade do "confronto de objetivos e valores dentro da sociedade". Naqueles momentos em que a política corre o risco de perder a sensatez e a lógica, mais do que nunca o intelectual deve ter presente que "o caminho do conhecimento e da razão não passa necessariamente pelo do poder, e vice-versa". A ideologia, como ópio dos intelectuais, não permite ver justamente isso, que política e conhecimento devem coexistir; que o conhecimento, com as suas complexidades e especificidades, não deve diluir-se na política.


Reportagem / entrevista: ciência não é política

Esquecer as fronteiras entre o conhecimento e a ação pode levar à frustração e ao caos

SIMON Schwartzman, professor da Fundação Getúlio Vargas do IUPERJ, onde é atualmente coordenador de ensino, conhece Educação suficientemente para falar de universidade. Cientista social com doutorado em Berkeley, EUA, passagens pela Noruega e Argentina, sabe de Ciência mais do que o necessário para tratar do assunto. E reuniu essas duas matérias, mais ideologia, em título e conteúdo de um livro recém-lançado por Zahar Editores, com o subtítulo de A Política do Conhecimento.

- Uma das discussões centrais do livro é o suposto, difundido no século XX, de que a ciência viria substituir a política. Claro que isso é impossível. E no entanto funciona como justificativa para a própria ciência, que se fortalece a partir desse mito. A política, então, fica vinculada a idéia de sujeira, facilmente substituível por uma atividade mais racional. Acontece que política é um conjunto de valores e princípios, irredutíveis, humanamente, a processos racionais. E ai estabelece a discussão. Há razões históricas profundas para isso. Coisas como o papel de liderança que os intelectuais sempre se atribuíram, baseados no conhecimento que sabem ter e que, pensam eles, torna-os superiores aos demais. Então, se eles detêm o conhecimento, suas idéias devem dar o tom, preponderar. No Brasil, no entanto, essa situação não ocorreu com freqüência. Para começar, o cientista nunca teve seu prestígio reconhecido, a não ser em alguns setores. A nossa sociedade nunca acolheu com muita simpatia o cientista; e mesmo no seio da própria universidade ele sempre foi marginal, já que ela se orienta sobretudo para a formação de profissionais liberais, médicos, advogados ou engenheiros que possam exercer suas profissões imediatamente. É uma característica cultural.

Muita coisa poderia ser usada como desculpa do pouco interesse manifestado em relação à chamada "comunidade científica". O fato de o Brasil ser um país de desenvolvimento tecnológico recente, por exemplo. Simon Schwartzman, no entanto - olhos azuis brilhando por trás de óculos de aro fino - refuta esse tipo de desculpa.

- O Japão começou a modernização em 1870, já com um trabalho de criação de tecnologia moderna implantado, educação para toda a população. A Alemanha, a grande potência científica do século XIX, sempre esteve muito voltada para a posição científica, quero dizer, muito antes da unificação política. A ordem das coisas não tem que ser, necessariamente, primeiro o desenvolvimento e depois a ciência. Pode ser ao contrário, também. O Brasil não compreendeu que o cientista existe para procurar alternativas, não para produzir um tipo de coisa simples, imediata e a curto prazo. Pergunta-se a um físico: você serve para quê? Se a resposta não vem rápido, a conclusão passa à frente: "Então não serve para nada."

Contrariamente a muitos países, a comunidade científica brasileira de que Schwartzman tratou extensamente numa pesquisa publicada em 1979 (sob o título deFormação da Comunidade Científica no Brasil) é pouco prestigiada, muito isolada, não chegando a apresentar todo o leque de variantes da pesquisa mais pura até a mais aplicada. A tecnologia própria não é multo valorizada. O cientista só é ouvido dentro da universidade, às vezes fora do país. As associações profissionais, como a SBPC, servem de veículos para a troca de idéias, uma troca que não se estende a toda a população

- O sistema universitário não valoriza a pesquisa, ela não chega a se constituir numa alternativa aberta para os jovens. Quando uma profissão tem papel social importante, normalmente atrai as pessoas. Mesmo bem mais ampla que antes, a seleção de inteligências dotadas e motivadas para esse tipo de trabalho fica prejudicada. No meu livro, quando trato de universidade, falo pouco de ciência. O aspecto científico é uma parcela ínfima do universo do campus. Claro que existem pontos de contato. Existe o mito criado pelo Governo de que ciência e ensino estão ligados Mas é só olhar país afora para ver que isso na realidade não se dá. E nem deve se dar.

Sociólogo, quando fala de universidade Simon Schwartzman não deixa de falar na "profissionalização" da carreira que escolheu. E que multas vezes é a eleita de quem não sabe matemática, não passou em outra matéria qualquer, ou acredita que o caminho para a participação social passa necessariamente pela politica e pelo conhecimento desta, através da Sociologia.

- É o problema do ensino gigantesco que não atende às necessidades do mercado de trabalho e sim a pressões de toda espécie. Psicologia, por exemplo, por ser curso de instalação relativamente barata, dispensando laboratórios, está em todas as universidades, principalmente as particulares. O Governo desistiu de enfrentar o problema da educação. Então adia a solução. Há médicos desempregados e há falta de médicos; há sociólogos a quem não se pode entregar uma pesquisa, porque, supostamente formados por profissionais de Sociologia, jamais aprenderam como se faz uma. Vive-se a demanda de títulos universitários, que é cada vez mais uma realidade passada. Há um sistema que parece ser democrático, mas que acaba favorecendo as boas e ricas famílias. Quanto melhor a família, melhor a universidade, e gratuita Ao pobre, resta a má educação, paga, peça importante de um jogo de cartas marcadas. Em vez de se cortar na entrada, no vestibular, corta-se na saída da universidade. Só se dá emprego ao economista que tem pós-graduação. E o pesquisador não tem mesmo importância. Porque um fator importante como a pesquisa industrial, por exemplo, inexiste no Brasil. A industria é importada, o pacote vem pronto, basta o técnico que saiba ler o manual.

A pesquisa que se leu - e nada resolveu. Quantas vezes ouvimos falar nisso. Simon Schwartzman tem uma explicação. A confusão entre o que são problemas políticos e econômicos e os que são quede outra ordem. A doença tropical é um desses problemas que jamais serão resolvidos só com pesquisas. É muito mais de ordem social e econômica.

- Esse tipo de situação gera uma frustração muito grande. Cria-se, assim, a solução mental para o problema que não tem solução na realidade. E aí simplifica- se muito, tudo passa a ser preto e branco, capitalismo versus socialismo. Há a fuga para o ideológico, a avaliação de pessoas a partir de condições politicas e não da realidade. Como as soluções mentais não têm muita consistência, cedo o estudante as esquece. Quando escrevi alguns artigos sobre universidade e ideologia, criticando esse tipo de redução ao ideológico, muita gente concordou comigo, mas me alertou: você vai ser criticado por estar entregando o ouro ao bandido.

CIÊNCIA, Universidade e Ideologia. Uma ciência que não admite a destruição, através de mudança política, como aconteceu na China. Que espera uma continuidade estrutural, como houve na União Soviética. Como houve de certa maneira no Brasil.

- Quem acha que se pode reconstruir uma ciência a partir do zero, está enganado. No Brasil houve a expulsão de cientistas de Manguinhos, fechamento de centros da USP, na década de 70. Mas esse tipo de medida só atingiu os nomes conhecidos e por motivos que variavam da política à incompatibilidade pessoal, os discípulos ficaram. O sistema não chegou a ser desmontado. Mesmo porque paralelamente surgiu a pós-graduação. Quer dizer, enquanto um grupo determinado de pessoas do Governo fazia urna coisa, outro grupo fazia justamente o contrário.

Uma universidade que apesar de aparecer ao lado da ciência no título de seu livro, Simon Schwartzman não admite ver jogada no "mesmo bolo".

- É preciso separar a atividade cientifica da política, pesar as coisas. Um dos problemas do pensamento ideológico é misturar ações e conhecimento. É verdade que não dá para separar totalmente, é difícil estabelecer a fronteira, pois quem conhece o problema quer modificar a situação. Mas também não podemos "embolar". Senão, nada recebe o tratamento apropriado, a ciência se mistura com a universidade, que por sua vez segue o modelo econômico e por ai vai. É tempo de "desembolarmos" um pouco. <