
Tecnologia
Desacorrentada Simon Schwartzman
Comentário sobre David S. Landes, Prometeu Desacorrentado:
transformação tecnológica e desenvolvimento industrial na Europa ocidental,
desde 1750 até a nossa época. Editora Nova Fronteira, 1994, 664 páginas.
Tradução de Vera Ribeiro. Publicado na Folha de São Paulo, 18 de
setembro de 1994.
Prometeu Desacorrentado é uma obra de porte, um manifesto clássico
a favor da modernização industrial e tecnológica, publicado em 1968 nos
Estados Unidos a partir de um texto original de 1954. A tradução de Vera
Ribeiro é primorosa, e a edição extremamente bem cuidada (apesar da falta
de um índice remissivo e de uma bibliografia, indispensáveis para quem queira
usar o livro como fonte de referência e de estudo). Quanto das idéias de
Landes subsidem ainda hoje, nestes tempos de pós-modernismo e crítica da
civilização industrial? Que significa a publicação desta obra no Brasil
de hoje, vinte e cinco anos depois?
O livro de Landes se lê como um romance, da revolução industrial inglesa,
da criação e desenvolvimento das novas tecnologias, sua propagação pela
Europa, e sua saga até os nossos dias. Como explicar esta revolução? Porque
na Inglaterra, e não na França ou na Holanda, países em tantos aspectos
mais desenvolvidos do que a Inglaterra no século XVIII (sem falar na Espanha
e Portugal, os grandes impérios dos séculos XVI e XVII)? Como explicar o
desenvolvimento da economia moderna ao longo do século XIX, continuando
neste século apesar de duas guerras devastadoras?
A resposta é complexa, mas a idéia é simples, e está contida no mito de
Prometeu, antes acorrentado pelos deuses por ensinar aos homens o uso do
fogo, mas agora livre para propagar cada vez mais os segredos da natureza..
O que explica a industrialização e a modernização é a capacidade de criação
das pessoas, e as condições sociais, culturais e institucionais que permitiram
cortar as amarras de Prometeu. A industrialização, ou, melhor dito, a modernização,
depende da iniciativa individual, da eliminação dos preconceitos aristocráticos,
da valorização da eficiência e da racionalidade. Depende, em outras palavras,
da existência de indivíduos dotados da ética do trabalho e da eficiência
que Max Weber havia identificado, no princípio do século, como a ética do
puritanismo protestante, e que serve de base ao comportamento empresarial
do capitalismo. Boa parte do livro consiste em demonstrar como este comportamento
encontrou um terreno propício para se desenvolver na Inglaterra, e chegou
aos poucos, com dificuldades, para outros países. E, de passo, para refutar
outras explicações alternativas para o sucesso do capitalismo inglês - a
exploração colonial, a acumulação primitiva, a capitalização proporcionada
pelo ouro trazido pelos espanhóis e portugueses das Américas.
Historiador, Landes não se limita a brandir argumentos, mas utiliza de forma
magistral a evidência histórica acumulada, sobretudo no exame detalhado
dos processos industriais que se desenvolveram na Inglaterra naqueles anos,
na fabricação de tecidos de algodão e lã, na química, na siderurgia e no
desenvolvimento da máquina a vapor. O estudo da evolução da tecnologia permite
que, de passo, uma série de idéias convencionais sobre a revolução industrial
inglesa, e sobre a economia moderna, sejam postas de lado. Três grandes
temas parecem preocupar o autor, e ressurgem ao longo de todo o livro.
O primeiro são as relações entre a ciência, a tecnologia e o processo produtivo.
Historiador moderno, Landes acredita no desenvolvimento contínuo da ciência,
mas sabe que suas relações com o sistema produtivo não são simples. Ao contrário
do que muitas vezes propagam os cientistas, a revolução tecnológica se deu
no interior da própria indústria, e, pelo menos no início, teve pouco a
ver com o que ocorria no âmbito da ciência básica e acadêmica. Não é verdade
que a ciência, por si mesma, gere automaticamente benefícios econômicos
e sociais. Para isto, ela depende fundamentalmente dos processos aplicados
e de engenharia, que respondem a lógicas institucionais e econômicas próprias,
e desenvolvem culturas técnicas independentes. A história detalhada destas
culturas técnicas e processos industriais é sem dúvida a parte mais rica
do livro, cujo valor transcende o das eventuais interpretações e conclusões
que Landes apresenta.
O segundo tema é o papel das condições estruturais nos processos econômicos.
Ao contrário do que pensavam os marxistas, a industrialização não se baseou
na expulsão dos trabalhadores do campo, nem esteve associada ao desaparecimento
das formas de organização econômica familiar, que continuaram a existir
e a ocupar a maior parte da população ativa. Estas não foram as causas,
e sim as conseqüências do processo de desenvolvimento da iniciativa capitalista
e da racionalização progressiva da atividade econômica, que acabou por transformar
de maneira tão profunda não só a sociedade inglesa, mas todo o mundo. De
um modo geral, Landes procura inverter as explicações históricas que fazem
do homem um ser sem iniciativa e liberdade, determinado e comandado pelas
suas condições e origens. Não é que Prometeu possa surgir a qualquer momento
e em qualquer lugar. Existiam condições na Inglaterra que a tornavam mais
propícia do que a França ou outros países para o primeiro surto da revolução
industrial, assim como existiram condições que favoreceram a entrada tardia
da Alemanha e, mais tarde, dos Estados Unidos no centro da economia moderna.
Landes está longe de ser um "idealista" ingênuo, que acredita
no poder ilimitado das idéias e valores, livres de seus condicionamentos.
Mas sua perspectiva é sempre a das pessoas como agentes e criadores de seu
próprio destino, a partir da realidade de suas condições. Uma idéia antiga,
talvez, mas completamente atual.
O terceiro tema é o do relacionamento entre o Estado, o planejamento da
economia e a liberdade e criatividade dos empresários. A posição básica
de Landes é a do economista liberal, que aposta na iniciativa empresarial
e descrê profundamente das ações do Estado, e suas tentativas de planejar
e condicionar a atividade econômica. Esta posição se sustenta de forma bastante
convincente até meados do século XIX, mas começa a se complicar com a entrada
da Alemanha no mundo das potências industriais, e a importância crescente
do nacionalismo e da ideologia ao longo do século XX. A tese central é que,
quando mais atrasada for a economia de um país, mais importantes seriam
os fatores políticos e ideológicos no desenvolvimento da economia, suprindo
o capital, mas sobretudo a iniciativa e a ambição de modernização que o
setor privado não tem. Na medida o setor privado se fortalece, o nacionalismo
e a ideologia se tornam contraproducentes, por não terem como substituir
a riqueza e a diversidade das iniciativas individuais. Landes não imaginava
como a ruína das economias socialistas reforçaria seus argumentos alguns
aos depois de publicado seu livro.
Existe uma área, no entanto, onde o setor público tem um papel reconhecidamente
fundamental, que é o de proporcionar a base de conhecimentos necessária
para que uma sociedade possa desenvolver sua capacidade de iniciativa, criatividade
e inovação. A educação é uma função pública essencial, uma atividade de
longo prazo que não poderia ser substituída pela iniciativa privada; e o
mesmo vale para a competência científica e tecnológica. A palavra chave,
aqui, é "capacidade", em contraste com suas aplicações técnicas
e científicas. A iniciativa privada é, em geral, muito mais competente do
que o Estado no treinamento técnico e no desenvolvimento de tecnologias
aplicadas, mas ninguém substitui o setor público na tarefa de tornar a sociedade,
e a economia, competentes para que a ação privada possa florescer.
O tema da ação do Estado no desenvolvimento econômico poderia ser tratado
melhor no livro do Landes, com discussões mais aprofundadas sobre questões
como a da organização dos mercados financeiros e dos sistemas de relações
jurídicas estáveis, tão importantes dos primórdios do capitalismo, e as
políticas de correção das desigualdades sociais, que foram fundamentais
na revolução modernizadora dos atuais "tigres asiáticos". Mas
isto seria pedir demais a uma obra grandiosa que, apesar de um pouco ultrapassada
pelos acontecimentos, ainda permanece de grande atualidade.
O significado atual deste livro é a mensagem de que o projeto simbolizado
por Prometeu, que é o da liberação da criatividade, iniciativa e inventividade
do ser humano, e que aparece muitas vezes com o nome de iluminismo e de
modernidade, continua intacto. Não se trata de ignorar os problemas trazidos
pela modernização, e a seriedade dos problemas atuais de uso descontrolado
dos recursos naturais, destruição do meio ambiente e profundas desigualdades
entre países e grupos sociais, com tudo o que isto acarreta. Se trata, simplesmente,
de perceber que, se todas estas coisas negativas foram causadas pela liberação
da inteligência humana, é só pela ação inteligente do ser humano que elas
poderão ser corrigidas. Parece uma conclusão óbvia, não fosse a grande sedução
que o irracionalismo, o autoritarismo e o nihilismo exercem sobre tantos.
Nada mais presente, no Brasil, do que a necessidade de resgatar este projeto.
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