Simon Schwartzman
Trabalho preparado para o Seminário internacional sobre "O Brasil na Década Perdida: O que Aprendemos?", realizado pelo Núcleo de Análise Interdisciplinar de Políticas e Estratégias da Universidade de São Paulo, com o apoio do United Nations Research Institute for Social Development, São Paulo, 3 e 4 de maio de 1993. Publicado em "Ciência e Tecnologia na Década Perdida: o que aprendemos?", in Lourdes Sola and Leda M. Paulani, (editors), Lições da Década de 80, São Paulo, EDUSP - UNRISD, 1995, 241-266.a. Ciência Colonial2. As instituições de apoio à pesquisa no Brasil
b. Ciência Imperial
c. Ciência Aplicada em agricultura e saúde
d. As universidades e o nacionalismo: os anos 30
e. "A modernização pela ciência" (1945-1964)
f. "O Grande Salto à Frente" (1968-1980)
g. Ciência e Tecnologia como Grupo de Pressão (1980-1990)
h. Ciência para o Desenvolvimento Competitivo Industrial
i. O Governo Itamar Franco
Quadro 1A - Despesa Realizada da União em C&T 1981/1991 (em US mil de 1991)3. Culturas organizacionais dos centros de pesquisa
Quadro 1B - Recursos disponíveis pelas agências programas federais e FAPESP (em milhões de dólares)
Quadro 2 - Bolsas de Estudo disponíveis para pós-graduação no Brasil e no Exterior
Quadro 3 - Formas de institucionalização da pesquisa científica e tecnológica4. As lições a aprender
- na área do ensino superior, em 1934 é criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1935 a Faculdade de Ciências da Universidade do Distrito Federal, e em 1939 a Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Em todas elas, havia a idéia de que deveria haver um espaço universitário para a pesquisa científica, dentro de uma legislação estabelecida no início da década, mas com orientações extremamente distintas. A Universidade do Distrito Federal reuniu os principais intelectuais do Rio de Janeiro e de outras partes do país, ao redor de um projeto acadêmico impregnado pelo iluminismo, o pensamento laico e o anti-fascismo, em uma iniciativa que acabou fechada no período mais autoritário do governo Vargas. A Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil foi criada pelo Ministério da Educação no clima repressivo do Estado Novo, ideologicamente controlada e sofrendo influências políticas na nomeação de professores, e nunca desenvolveu uma atividade de pesquisa mais significativa, apesar de algumas exceções isoladas. A Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, criada pela liderança do Estado dentro de um quadro mais amplo de resistência ao governo federal, e constituída por professores europeus, se estabeleceu rapidamente com a principal instituição de pesquisa científica e universitária do país.Em resumo, é possível dizer que, enquanto a Universidade de São Paulo conseguiu se estabelecer com relativa autonomia e independência, a pesquisa governamental propriamente dita acabou sofrendo nas mãos da centralização e das tentativas de racionalização administrativa, e se frustrou.
- na área de pesquisa tecnológica e aplicada, duas tendências podem ser observadas. A primeira é o desenvolvimento de centros de pesquisa tecnológica voltados para o apoio à indústria e à atividade extrativa, como o Instituto Nacional de Tecnologia e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo. O segundo é o desenvolvimento cada vez maior de um sistema administrativo federal burocratizado, que acaba por sufocar a capacidade de iniciativa e de ação própria das poucas instituições de pesquisa governamentais. O Instituto Manguinhos sofre nestes anos uma de suas piores fases, e o Instituto Nacional de Tecnologia, depois de um início relativamente auspicioso, se transforma em uma espécie de "cartório" de certificações e laudos técnicos para a burocracia governamental(3). Também data destes anos (1935) a criação do primeiro órgão nacional de pesquisa científica, a Diretoria Nacional de Pesquisas Científicas, junto ao Ministério da Agricultura, que no entanto não conseguiria se institucionalizar.
- a reforma universitária de 1968, com a criação dos programas de pós-graduação e a adoção parcial do modelo organizacional norte-americano para o ensino superior;Quatro características principais marcam as iniciativas deste período. A primeira foi a abundância de recursos, graças às altas taxas de crescimento econômico que caracterizaram os anos 70. A segunda foi o formato extremamente flexível e descentralizado pelas quais estas iniciativas se desenvolveram, graças sobretudo à política adotada pelas agências da Secretaria de Planejamento (FINEP, CNPq) de conceder apoio diretamente aos responsáveis pelo trabalho de pesquisa, efetuando um bypass deliberado das estruturas administrativas e universitárias tradicionais. A terceira foi a tensão que sempre existiu entre a política científica e tecnológica, de cunho predominantemente nacionalista e estatista, e a política econômica, que buscava uma linha de desenvolvimento mais aberta ao capital multi-nacional e à importação de tecnologias. O resultado desta tensão foi que os eventuais produtos da pesquisa científica e tecnológica (com a exceção, a ser examinada em maior profundidade, das áreas de agricultura e informática), tenderam a ficar sobretudo nas prateleiras dos centros de pesquisa, nas teses de pós-graduação, ou na literatura internacional. A quarta, finalmente, foram os critérios relativamente frouxos de avaliação e acompanhamento dos projetos de pesquisa financiados pelas agências governamentais. Da mesma forma que, na economia, se defendia a idéia de que indústrias nascentes deveriam ser protegidas da concorrência predatória internacional, também na área científica se argumentava que os centros e programas emergentes deveriam ser protegidos da competição internacional, ou dos centros academicamente mais fortes do país. Este tema foi objeto de constante disputa entre cientistas e administradores nas agências governamentais e centros emergentes, levando freqüentemente a soluções de compromisso, e ao financiamento de centros e projetos de qualidade não muito clara.
- a colocação da área de ciência e tecnologia sob a responsabilidade das autoridades econômicas, seja através da entrada do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico no apoio à Ciência e Tecnologia, seja pela subordinação do CNPq e na Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), uma nova agência criada pelo BNDE, ao Ministério (mais tarde Secretaria) de Planejamento, o que significou um aumento substancial dos recursos disponíveis;
- a criação de centros de pesquisa tecnológica e pós-graduação de grande porte, como a Coordenação dos Programas de Pós-Graduação e Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE) e a Universidade de Campinas, como instituições voltadas para a pesquisa tecnológica aplicada de ponta, em áreas como a física de estado sólido e a utilização industrial de raios laser.
- o estabelecimento ou desenvolvimento de vários programas de pesquisa militar, como o programa espacial e o programa nuclear "paralelo";
- o acordo nuclear com a Alemanha, que visava à criação de uma capacidade nacional autônoma de construção de reatores e reprocessamento de combustível nuclear;
- a criação de uma política de reserva de mercado para a informática e a microeletrônica, com o apoio ao desenvolvimento de uma indústria nacional especializada.
- a elaboração, pelo governo federal, de Planos Nacionais de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
- a criação de centros de pesquisa tecnológica junto às principais empresas estatais do governo federal, como a Petrobrás, a Telebrás, a Companhia Vale do Rio Doce e outras.
- a ampliação e fortalecimento do sistema de Pesquisa Agropecuária, EMBRAPA, sob o Ministério da Agricultura.
- a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia no início do Governo Sarney, no início sob o controle do setor do partido PMDB mais identificado com os interesses da comunidade científica e tecnológica do período anterior. Saudado por segmentos significativos da comunidade científica como a consagração dos velhos ideais de que a ciência deveria se colocar nos níveis decisórios mais altos do país, o Ministério acabou, na prática, por isolar a atividade científica dentro de um governo que a tratava com indiferença, quando não com hostilidade.h. Ciência para o Desenvolvimento Competitivo Industrial (Governo Collor). Os anos do governo Collor foram caracterizados pela tentativa de colocar a atividade científica e tecnológica mais diretamente a serviço de um desenvolvimento industrial competitivo, em uma economia em processo de abertura internacional, e em um período de escassez de recursos, alta inflação e depressão econômica. As principais iniciativas, algumas datando do período anterior, incluem:
- a lei de informática ao final do Governo Figueiredo, que estabelece a reserva de mercado para os produtos de computação, mas veta a criação de instituições de pesquisas próprias e a atribuição de recursos específicos para a pesquisa no tema.
-a expansão de recursos para algumas áreas específicas, como bolsas de estudo, e a criação de agências estaduais de ciência e tecnologia, recursos estes freqüentemente distribuídos por critérios de política clientelística.
- Aumento dos atores que entram na disputa pelos recursos e controle institucional das agências de ciência e tecnologia - interesses político-partidários, sindicatos de professores e funcionários das organizações estatais, sociedades científicas, grupos organizados da comunidade científica e tecnológica.
- a continuidade ao Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico, criado com recursos do Banco Mundial, e orientado para o desenvolvimento de pesquisas em áreas aplicadas, como novos materiais, biotecnologia, e outras;A crise econômica, à qual se somaria, mais tarde, a crise política e de credibilidade, não permitiu que a maioria destes projetos fosse além das intenções, e contribuiu para a agravar ainda mais o isolamento, a incerteza e a falta de recursos que marcaram a área de ciência e tecnologia naqueles anos.
- a transformação da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) em uma agência voltada quase que exclusivamente para o financiamento da pesquisa tecnológica industrial, com o virtual desaparecimento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que financiava a pesquisa básica e universitária;
- o desmantelamento do Programa Nacional de Informática, com o fim da reserva de mercado
- propostas de apoio ao desenvolvimento de "parques de tecnologia" junto às principais universidades;
- propostas de criação de sistemas de incentivo indireto à pesquisa aplicada nas universidades, pela atribuição de recursos de pesquisa para que o setor industrial possa contratar serviços das universidades e centros de pesquisa.
- extinção ou "fasing out" de grandes programas de pesquisa tecnológica governamental, inclusive militares, como o programa nuclear e o programa espacial.
- as tentativas de obter financiamento internacional para estabelecer uma rede de laboratórios de pesquisa nacionais de alta qualidade, dotados de financiamento estável e de longo prazo.
- lideranças científicas estabelecidas, vs. desenvolvimento institucional. Enquanto que algumas instituições de pesquisa são organizadas sob a liderança de pesquisadores já formados, outras são criadas com a intenção de abrir espaço para que esta liderança se desenvolva. A experiência parece sugerir que a existência prévia de uma liderança científica e técnica de boa qualidade é o principal determinante do sucesso no estabelecimento de instituições científicas. No outro extremo, a política comum a vários órgãos de fomento, de dar recursos para instituições e grupos desprovidos de lideranças bem definidas, principalmente em regiões mais pobres, na expectativa de que elas possam vir a se desenvolver com o tempo, parece mostrar resultados consistentemente negativos.5. Conclusão
- trabalho disciplinar vs. trabalho interdisciplinar. Associado ao anterior é a questão da existência de uma definição disciplinar clara para os grupos de pesquisa. Grupos ou instituições de pesquisa que trabalham dentro de disciplinas científicas bem estabelecidas abrem espaço para lideranças científicas de qualidade, e estão sujeitos a critérios razoavelmente claros de avaliação; instituições "interdisciplinares" têm perfis muito menos definidos, não possuem parâmetros de avaliação claros, e correm com freqüência o risco de se perder. O trabalho multidisciplinar mais autêntico tende a se desenvolver a partir de disciplinas científicas bem constituídas, e não pela justaposição de especialistas de diversos campos, como ocorre em muitas instituições e grupos que se definem, desde o início, como "interdisciplinares".
- atividades múltiplas vs. "missões". A experiência parece indicar que as instituições de pesquisa que desenvolvem atividades múltiplas dentro do processo científico -- pesquisa básica, pesquisa aplicada, desenvolvimento, difusão -- têm melhores resultados do que aquelas que se especializam em um momento único deste processo. Grupos de pesquisa de qualidade são normalmente capazes de trabalhar em todo o espectro da atividade científico-tecnológica, enquanto que grupos mais especializados correm o risco de ficar "congelados" do domínio de determinadas técnicas, procedimentos e tradições.
- orientação cosmopolita vs. "vocacionamento" local e regional. Esta distinção é semelhante à anterior, e se refere ao dilema entre dar aos grupos de pesquisa uma vocação local e regional bem definida, ou uma orientação mais cosmopolita. Muitos centros de pesquisa na América Latina terminam por se constituir em filiais de instituições científicas internacionais sem nenhuma capacidade de se vincular a questões e temas locais, o que leva à noção de que seria importante vinculá-los mais diretamente a temas e atividades de interesse local bem definidos. A experiência parece indicar que, havendo demanda, centros de orientação mais "cosmopolita" têm melhores condições de responder a demandas locais e regionais do que aqueles que se constituem com as restrições de um vocacionamento prévio.
- pequenos grupos vs. grandes instituições. A natureza eminentemente "empresarial" da atividade científica não se compatibiliza bem com grandes organizações, a não ser aquelas que sejam suficientemente descentralizadas para não coibir o trabalho de suas unidades e sub-unidades. As organizações universitárias têm mais condições de trabalhar de forma descentralizada do que grandes institutos, ainda que isto nem sempre se dê.
- financiamento regular parcial vs. financiamento total, ou falta de financiamento. A noção, aqui, é que o financiamento regular parcial da atividade estimula a ida ao "mercado" para busca de recursos adicionais, e, assim, o estabelecimento de lideranças "empresariais". Este estímulo não existe quando o financiamento é total, e termina por desaparecer quando o apoio às atividades de funcionamento basal dos grupos de pesquisa deixa de existir. O "mercado" da pesquisa científica e tecnológica não é, simplesmente, o mercado da venda de serviços, mas inclui a disputa por prestígio no mundo acadêmico, bons alunos, publicações em revistas de qualidade, verbas de agências de apoio nacionais e internacionais, doações filantrópicas, e assim por diante.