
Resenha de Sérgio Miceli, História
das Ciências Sociais no Brasil, volume 1, São Paulo, Vértice, Editora
Revista dos Tribunais, IDESP, 1989, 490 pp.
Simon Schwartzman
Publicado na Folha de São Paulo, 23 de dezembro
de 1989.
Ao contrário das ciências naturais, que vivem no presente, as ciências sociais
se desenvolvem sobretudo como tradição cultural e intelectual, refletindo
e reelaborando sobre as experiências do passado, que iluminam e dão sentido
às questões do dia. O livro de Sérgio Miceli, ao abrir o primeiro grande
painel da história das ciências sociais no Brasil, dá uma contribuição fundamental
para a constituição desta tradição intelectual e cultural sem a qual estas
disciplinas jamais poderiam fincar raízes em nosso meio.
A lição que aprendemos ao longo das diversas contribuições a este volume,
todas elas ricas de informações e fatos novos, é que esta história se desenvolve
em pelo menos três planos separados. Primeiro, o que as ciências sociais
pretendem ser - os programas, os projetos, os currículos de curso, as proclamações.
Depois, o que elas podem efetivamente se tornar - os espaços existentes,
os mercados de trabalho e de produtos culturais que se formam, as tradições
que são herdadas ou transplantadas. E, finalmente, o que resulta: os trabalhos,
as contribuições intelectuais, os movimentos, as idéias. E aprendemos, acima
de tudo, que estes três níveis se relacionam de forma precária: nem sempre
o que se pretende é o que é possível fazer, e nem sempre o que é feito se
explica pelo contexto.
O principal valor este livro está no que nos diz sobre os dois primeiros
planos. Por um lado, estão os projetos grandiosos que levaram à constituição
dos cursos de ciências sociais na Universidade de São Paulo, na Escola Livre
de Sociologia e Política, e nas diversas instituições por onde passaram
os fundadores das ciências sociais no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte
e em Recife. Por outro, os dados de realidade: a incapacidade que teve a
Faculdade de Filosofia da USP de competir pelos filhos da elite do Estado,
abrindo espaço, inadvertidamente, aos imigrantes, mulheres e gente do interior,
tendo como resultado, segundo Miceli, o "arrombamento" do projeto
inicial. Na Escola Livre de Sociologia, são as pretensões de implantação
de uma ciência social prática, aplicada e científica que fracassam ante
a realidade do conteúdo acadêmico das formas de conhecimento importadas
dos Estados Unidos, por Donald Pierson acima de tudo. Em São Paulo, de qualquer
forma, uma universidade se implanta, e um espaço se abre; no Rio é a política
que domina, e as ciências sociais permanecem, acima de tudo, usinas de ideologias.
No Nordeste o mercado universitário é escasso, e a política sem transcendência;
Gilberto Freire é capaz de montar uma grande burocracia no Instituto Joaquim
Nabuco, mas os conteúdos não vão além de sua própria obra pessoal.
O caso mineiro seria excelente para examinar as descontinuidades entre os
três níveis, tivesse a autora tido mais empatia com seu tema. Quem lê o
capítulo poderia pensar que a organização da Faculdade de Ciências Econômicas
da UFMG foi um projeto da elite mineira semelhante ao da Escola de Sociologia
de São Paulo, sem perceber que foi a obra de uma figura isolada e visionária,
deposta nos inícios dos anos 60 por uma greve estudantil liderada por muitas
de suas criaturas; que havia desde o início uma diferença profunda entre
o que ocorria na área da economia e o que se passava nas ciências sociais,
onde a preocupação pragmática, técnica e aplicada nunca chegou a ter maior
presença entre professores ou alunos; e que, além de ter dado origem a uma
nova tradição de trabalho acadêmico em sociologia no pais (cujas principais
características talvez tenham sido a familiaridade com a literatura anglo-saxã
e o contato com as tradições mais estabelecidas de São Paulo e do Rio de
Janeiro) a Faculdade de Ciências Econômicas de Belo Horizonte foi ainda
o berço de parte importante da liderança intelectual do movimento estudantil
brasileiro nos anos 60, em suas vertentes católica e marxista, que ainda
hoje mostram sua marca.
O próximo volume desta história promete entrar de pleno no terceiro nível,
o dos conteúdos propriamente ditos, e assim completar este afresco a partir
do qual a reflexão futura sobre nosso passado deverá prosseguir.
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