O Moralismo e a Alienação das Classes Médias

Transcrito de Cadernos de Nosso Tempo, 2 (2): 150-9, jan./jun. 1954. Republicado em Simon Schwartzman, editor, O Pensamento Nacionalista e os "Cadernos de Nosso Tempo". Brasília, Câmara dos Deputados e Biblioteca do Pensamento Brasileiro, 1981, pp. 32-38.

As campanhas de moralização

UM DOS FATOS mais característicos da vida pública brasileira, nos últimos meses, é a exacerbação e proliferação dos movimentos que se constituem sob a bandeira da recuperação moral. Como veremos a seguir, tais movimentos, dentro de certas condições, constituem, independentemente de suas vinculações de classe e de grupo, uma sadia manifestação de inconformismo político ou de ortodoxia moral, e, a despeito da alienação que grava todas as manifestações de moralismo político, são um importante fator para a manutenção da vitalidade social. Não é disto que se trata, porém, no atual caso do Brasil. As campanhas de moralização que ora se processam não são fenômenos corretivos marginais. São movimentos que adquirem uma intensidade e uma extensão de grande proporção, ao ponto de se constituírem na forma mais importante e ativa de oposição ao governo (omitida a oposição ademarista, que é velada), passando as campanhas de moralização a se substituir, como instrumento de ação, ao principal partido oposicionista brasileiro — a UDN — e provocando efeitos de tanto alcance quanto o recente golpe branco desfechado pelas altas patentes do Exército.

Cronologicamente, o atual surto de moralismo se originou na luta travada contra o jornal "Ultima Hora" e seu grupo. Convertido em escândalo nacional o "caso" Ultima Hora", através de uma polêmica em que os adversários do referido vespertino mobilizaram, para a luta, todos os recursos publicitários do país, coligando a imprensa, o rádio e a televisão, transformou-se, igualmente, esse escândalo, no maior problema brasileiro. Com isto, formou-se o clima para o moralismo. Todos os problemas nacionais foram transferidos para o plano moral. E nesse plano, polarizados em termos de mal e de bem absolutos. Tudo o que estava ligado a "Última Hora" se transformou em mal absoluto. Tudo o que lhe era adverso, em bem absoluto.

Chegadas as coisas a esse ponto, resultou, como um efeito inevitável, que os fatos originários da polêmica perderam importância, a dinâmica do movimento de moralização ultrapassando o seu objeto imediato ou aparente. Não interessava mais o fato de o jornal "Ultima Hora" transferido para o controle de outro grupo, haver liquidado suas obrigações com o Banco do Brasil, assim atendendo ao que constituíra o motivo inicial do protesto. O que agora se impunha, para a campanha moralista, era a moralização de todo o país, entendida, naturalmente, segundo as normas fixadas pêlos próprios moralizadores. Daí a formação de outros movimentos, como a "Aliança Popular contra o Roubo e o Golpe". Daí o indefinido alargamento dos propósitos moralizantes, que passaram a visar a deposição do Sr. Getúlio Vargas — considerado fonte de todos os males do pais, causa de todas as corrupções e ameaça permanente à legalidade—e lograram conduzir as Forças Armadas a deslanchar um verdadeiro golpe branco no presidente da República, que só se mantém no governo em razão das dificuldades que experimentaram os chefes militares paia promover sua substituição, sem alterar o regime constitucional, mas que ficou, praticamente, prisioneiro em palácio.

Percorreram, assim, as campanhas de moralização, no espaço de alguns meses, um imenso caminho. Originadas no nível moral da luta privada entre dois jornais, e acompanhadas, de início, por um reduzido público, que seguia as peripécias da polêmica como um espetáculo divertido, lograram se transformar num estado de espírito de âmbito nacional, instrumentado por forças poderosas e já agora, em virtude do golpe desfechado pelas altas patentes do Exército contra o Sr. Getúlio Vargas, exercem, quase abertamente, o controle do país.

Infra-estrutura do moralismo

As campanhas de moralização são um fenômeno tipicamente pequeno-burguês. A pequena burguesia, sobretudo a partir da mecanização do capitalismo, é a classe que manobra os meios de produção sem ter a propriedade deles. O que caracteriza as classes médias, portanto, é seu status. O pequeno-burguês é um proletário com status assemelhado ao do burguês. Essa dependência para com o status constitui, psicossocialmente. um poderoso condicionamento para uma visão idealista do mundo, no sentido marxista do termo. Em outras palavras, constitui um estímulo para acreditar que a vontade é o fundamento único do ser. As coisas são isto ou aquilo porque alguém assim as quis. Assim sendo, as coisas serão boas ou más conforme sejam o produto de uma vontade honesta e esclarecida, ou de seu oposto. Tudo depende, portanto, de os homens que dirigem os acontecimentos serem bons ou maus. Tal é o fundamento do moralismo.

O que seja o bem e o mal é coisa que, em abstrato, interessa pouco ao moralismo. Conforme as condições de espaço e tempo, o moralismo tem caráter dogmático ou relativista. Mas o moralismo de que estamos cogitando, não é o filosófico, e sim o político, embora essas duas formas tendam a se associar. Para o moralismo político, chamado a optar em condições concretas, não importam, todavia, os problemas axiológicos e gnoseológicos do moralismo filosófico. As definições do bem e do mal, em concreto, se fazem, quanto à forma, segundo as crenças vigentes e, quanto ao conteúdo, segundo os interesses da classe, dos grupos ou das pessoas. O que empresta ao moralismo a sua fisionomia particular, porém, é o fato de implicar, essencialmente, no desconhecimento das motivações reais que conduziram a determinada opção. As ações são apresentadas como praticadas por serem boas em si mesmas e em função do bem absoluto e não porque atendam aos interesses do agente. Daí a necessidade de transportar todas as coisas para o plano moral, uma vez que, supostamente, todas as opções seriam uma escolha entre o bem e o mal.

Essas características gerais do moralismo, acima indicadas, não bastam, todavia, para explicar o surgimento e o êxito das atuais campanhas de recuperação moral. Tanto mais que, na mais superficial análise das forças que promovem ou ajudam essas campanhas moralistas, se verifica que por trás delas não se encontram apenas pequeno-burgueses, mas todo um setor da burguesia brasileira — o mais influente e ativo — que é o comércio.

Analisando-se as condições e causas do atual êxito do moralismo, no Brasil, verifica-se, no que diz respeito às primeiras, que elas se relacionam com o crescente desajustamento material e  espiritual das classes médias diante da situação econômico-social do país e da política do Sr. Getúlio Vargas. Conforme o havíamos previsto (Cadernos do Nosso Tempo, n° l, pág. 96), o Sr. Getúlio Vargas, a despeito de por duas vezes (1930 e 1937) dever às classes médias a conquista do poder ou sua permanência no mesmo, subestimou a importância dessa classe e a necessidade de satisfazer suas exigências mínimas. Economicamente, a pequena burguesia — parte da qual havia votado em 1950 no Sr. Getúlio Vargas — se indispôs com o governo conforme se veio acentuando o descompasso entre os ordenados da classe média e o custo de vida. Enquanto os salários do proletariado urbano, embora com atraso em relação aos preços, foram tendo reajustamentos parciais, os ordenados da classe média permaneceram estacionários. É certo que durante o atual governo Vargas já houve um reajustamento do vencimento dos servidores públicos, civis e militares. Mas esse reajustamento beneficiou, quase exclusivamente, as camadas inferiores da classe média, hoje semiproletarizadas. E é justamente nessas camadas que persiste a popularidade do Sr. Getúlio Vargas (em concorrência com a do Sr. Ademar de Barros), enquanto a hostilidade contra o mesmo se faz sentir especialmente nas camadas superiores da classe média. Nesse sentido, é sintomático o fato de uma das mais sérias reivindicações, Ilidas no memorial dos coronéis, ter sido a de não se permitir que os vencimentos militares fossem igualados aos salários operários. Ademais, a classe média, particularmente is camadas superiores, tem uma noção muito clara de que seu problema econômico não resolúvel mediante simples aumento de ordenados, e sim através de uma efetiva contenção do processo inflacionário, ou, pelo menos, através de uma eqüitativa distribuição, entre as classes sociais, dos ônus da inflação. A crescente perda de poder aquisitivo dos ordens, e a manutenção de um regime econômico dentro do qual todo o peso da inflação li sobre os rendimentos fixos, portanto, suscitaram uma profunda indisposição da pequena burguesia contra o governo.

Essa indisposição econômica foi agravada pela orientação que vem.adotando a política ostensiva do Sr. Getúlio Vargas e pelas contradições que a caracterizam. Enquanto, de ?0 até 1942, o Sr. Getúlio Vargas fez uma política de classe média, no curso de seu atual governo procurou atender, simultaneamente — e quase sempre contraditoriamente —  ao patronato  e ao proletariado, predominando, durante o primeiro ministério, a política patronal (a longo prazo, o Plano Lafer; .a curto prazo, as facilidades de crédito dadas pelo Sr. Jafet) e, no atual ministério, a política proletária (formação de uma CGT, defesa de greves, elevação do salário mínimo).

Na primeira fase do governo, a classe média sofreu as restrições econômicas ditadas pela  política Lafer, sem se beneficiar das facilidades propiciadas pelo Sr. Jafet, e sem nem menos ter a compensação espiritual de se sentir participando de um sério e inteligente esforço de desenvolvimento econômico. O governo aparecia, aos seus olhos, sob o contraditório aspecto de um implacável mecanismo arrecadador, avaro na fixação dos vencimentos, e de um benevolente favorecedor de grupos, para os quais distribuía benesses e facultava negociatas de que se achava excluída a classe média. Daí o ressentimento que facilmente pôde ser despertado contra o grupo Wainer, apresentado como o protótipo dos beneficiários de escandalosos favores governamentais.

Na segunda fase do governo, a atual, a classe média, sempre mais angustiada economicamente, se depara com um governo que lhe parece como só se interessando pelo proletariado, que procura arregimentar para fins eleitorais, em nome de princípios e segundo processos que se lhe afiguram subversivos. Educada pelas tendências fascistas da era 40, tradicionalmente hostil ao proletariado, do qual se sente psicológica e socialmente tanto mais afastada quanto mais, economicamente, dele se está aproximando, a classe média vê o governo agitar as mesmas bandeiras que, anos atrás, eram consideradas subversivas e contra as quais o mesmo Sr. Getúlio Vargas, em 1937, a convocou para lutar, instituindo o Estado Novo.

Tais condições, portanto, conduzem a classe média, material e espiritualmente, a se divorciar do Sr. Getúlio Vargas e postar-se em atitude hostil ao mesmo. Isoladamente, porém, essas condições não seriam bastantes para provocar o êxito tão rápido e generalizado das campanhas de moralização. O que causou esse êxito célere e amplo foi o apoio dado pelas forças latifúndio-mercantis, especialmente por estas ultimas, aos movimentos moralistas (financiamentos, imprensa, rádio, televisão).

Diversamente do que se passa com a classe média, a burguesia, notadamente a burguesia mercantil, não é moralista por convicção. O sentimento burguês da vida repousa sobre a propriedade dos meios de produção e conduz, como ocorre com o proletariado que atinge ao nível da autoconsciência, a uma visão realista do mundo. Dá-se, apenas, que o. realismo burguês é psicológico, enquanto o realismo operário é sociológico. Reduzido â condição de máquina que aciona máquinas, cujo trabalho é uma coisa que se compra e vende, como as coisas que dele resultam, o proletariado, na medida em que vence;'o entorpecimento mental de sua condição e atinge a um razoável nível de consciência, concebe o mundo em termos realistas, mas orienta o seu realismo em termos sociológicos, porque a sua experiência pessoal é a da inanidade do indivíduo e a da sua dependência para com o meio social. Diversamente, a burguesia, cujo realismo decorre da consciência do poder condicionante das coisas, desenvolve o seu realismo em termos psicológicos, porque sua experiência pessoal é a da manipulabilidade dos negócios e da medida em que estes dependem da capacidade individual ou das oportunidades favoráveis. Tal psicologismo se desenvolve especialmente na burguesia mercantil, em que o negócio surge desligado do processo de produção das coisas, enquanto a burguesia industrial contrabalança sua experiência da manipulabilidade dos negócios pela sua dependência para com os fatores de produção. É sintomático dessa diferença o psicologismo da economia inglesa, calcada sobretudo numa experiência comercial, e o sociologismo da alemã, produto de uma experiência principalmente industrial.

Ora bem, esse realismo da burguesia, e sua variante psicologista da burguesia mercantil, que é o setor liderante da burguesia brasileira, hão conduziriam a burguesia a exprimir, em termos moralistas, seu antagonismo ao governo. Por que o faz? A explicação desse fato dá-nos a chave final para compreender a infra-estrutura das atuais campanhas de moralização. Essa explicação é muito simples e se resume em duas palavras: estratégia e tática.

A burguesia mercantil, para a qual as origens populares da eleição do Sr. Getúlio Vargas já constituíam uma ameaça, colocou-se, como classe, contra o governo, a partir do momento em que, durante o ministério precedente, se caracterizaram as intenções dirigis-ta» e intervencionistas da atual administração. Não importa o fato de que o Sr. Jafet, pelo Banco do Brasil, tenha proporcionado excelentes negócios a diversos e importantes grupos da burguesia mercantil. Os beneficiários, e seus grupos, individualmente, ficaram solidários com o governo, enquanto este os favoreceu.

Como membros da classe, porém, participaram da mesma hostilidade geral da burguesia mercantil contra o governo porque o dirigismo e o intervencionismo econômico deste constituía um obstáculo para suas pretensões de lucro incontrolado.

Inaugurada a segunda fase do governo Vargas, com o atual ministério, a burguesia mercantil, no primeiro momento, manifestou-se muito favorável à nova política econômica instituída pelo Sr. Oswaldo Aranha, em nome do liberalismo e da liberdade de comércio. Foi de curta duração, no entanto, este entusiasmo. De um lado, porque o Sr. Oswaldo Aranha, em boa hora, corrigiu os excessos mercantilistas de seu plano, restaurando a seleção governamental para os investimentos essenciais. De outro lado, porque, à medida em se aproximam as eleições de outubro, a política do Sr. Getúlio Vargas passou a se caracterizar por suas tendências trabalhistas. Confirma-se, assim, e se consolida, a oposição dos interesses da burguesia mercantil para com a política do Sr. Getúlio Vargas. Ora, a burguesia mercantil, de todas as classes brasileiras (entendido o termo em sentido restrita é a que tem maior consciência de seus interesses, a que se encontra melhor organizada para defendê-los e a que dispõe de mais recursos para os fazer valer. Essa é, sem dúvida, a razão pela qual a burguesia mercantil, a despeito do extraordinário surto de industrializo do país, tem conseguido se manter na liderança social, reduzindo a burguesia industrial, contra os próprios interesses desta, à posição de caudatária do comércio. Assim equipada, a burguesia mercantil pôde levar adiante, com grande êxito, seu esforço de neutralização e de desmoralização do governo, esforço esse que culminou com o golpe branco dos coronéis (atrás dos quais agiu um grupo de generais) e está agora orientado para a definitiva deposição do Sr. Getúlio Vargas.

Não podia o comércio, todavia, lutar contra o governo em nome de seus verdadeiros interesses. Estrategicamente, impunha-se à burguesia mercantil conquistar o apoio de uma classe combativa e influente, utilizando-a como massa de manobra. Essa classe só podia  ser a pequena burguesia. Taticamente, era indispensável utilizar os apelos que fossem capazes de mobilizar  as massas pequeno-burguesas, e de levantar, especialmente, a adesão do setor militar da classe média. Essa tática só podia ser o moralismo. E aí se encontram as razões profundas da ativa participação da burguesia mercantil nos movimentos de recuperação moral, participação essa que poderia, à primeira vista, causar uma natural estranheza, ante o paradoxo de a bandeira da moralidade ser desfraldada pelos comerciantes. Atrás desse moralismo, no entanto, o comércio defende propósitos muito realistas e imediatos. Evidentemente, como sempre ocorre em tais circunstâncias, grande parte, senão a maioria da burguesia mercantil, não tem perfeita consciência de sua própria duplicidade. nem se dá conta de que o moralismo que professa, para se opor ao governo, e que não professa nos seus próprios negócios e nas suas demais atividades, é um instrumento ideológico a serviço dos próprios interesses. Isto não importa. O que importa é a verificação a que se chega, mediante uma análise objetiva dos fatos, de que, ao se mobilizar contra a CEXIM, sob a alegação de que esta era um mecanismo de corrupção do governo, o que realmente importava ao comércio não era a corrupção daquele órgão — corrupção, aliás, somente possível porque dela era agente e beneficiário o próprio comércio. O que importava, para o comércio, era a extinção dos controles governamentais, era o livre acesso aos saldos cambiais da exportação, de sorte a permitir lucros maiores e mais fáceis. E como hoje não seria mais possível — a despeito das desesperadas tentativas que se vem fazendo para restaurar o liberalismo — combater os controles governamentais em nome de um suposto direito natural à liberdade de comércio, impunha-se a necessidade de emprestar à luta contra o dirigismo estatal a aparência de uma reivindicação moralista contra a corrupção dos agentes do poder público. Outra não é a razão pela qual a burguesia mercantil, através da imprensa — de que ela tem o absoluto controle, por ser a principal fonte de publicidade — , tem procurado generalizar a teoria da "corrupção do Estado", a fim de obrigá-lo a suspender todas as formas de controle e de intervenção na economia.

Moralismo e alienação

Decorre o moralismo, como já se indicou, de uma concepção idealista do mundo, segundo a qual a vontade é o fundamento do ser, razão pela qual as relações sociais dependeriam das decisões individuais dos dirigentes. Daí a transposição de todas as coisas para o plano moral e seu julgamento em termos de bem e de mal. Daí, por outro lado, a recíproca de que toda visão moral das ações humanas se deve processar em termos moralistas, ou seja, em termos de bem e mal absolutos.

Não é este o local para se criticar, teoricamente, o moralismo político. Limitemo-nos a salientar que, do ponto da sociologia do conhecimento, o moralismo político representa uma superestrutura ideológica de classe média. Considerado no mérito de suas postulações, o moralismo político sofre as limitações decorrentes do idealismo de seus pressupostos, ignorando o que Scheler denominava condicionamentos reais da vida social.

Na verdade, como pressentem os moralistas, as relações políticas apresentam, também, uma dimensão moral e não podem ser julgadas sem referências a essa dimensão. A esse respeito, contudo, há que fazer duas importantes ressalvas à colocação moralista do problema. A primeira diz respeito à fundamentação dos fat.os políticos. Diversamente do que julgam os moralistas, os fenômenos políticos não se originam, exclusiva ou mesmo principalmente, das manifestações da vontade individual, senão que de um sistema de causas e condições dentro do qual a vontade individual é apenas um fator.e um fator em grande margem condicionado. A segunda ressalva se relaciona com a valoração moral das manifestações da vontade. O elemento moral, nas relações políticas, não constitui uma opção entre o bem e o mal absolutos. O que é absoluto, na opção moral, é a escolha entre fins que se apresentam no mesmo plano de condicionamento, para a vontade, e a escolha de meios que se apresentam no mesmo plano de eficácia possível, para a razão. Tanto os fins como os meios, todavia, são condicionados. Esse condicionamento, externamente ao agente, decorre do sistema de crenças vigentes (condicionamento ideal), das condições econômico-físicas do meio social e natural (condicionamento real) e das possibilidades de interferência (condicionamento pelo acaso). Internamente, o condicionamento resulta da estrutura psicofísica da personalidade do agente.

Se examinarmos, à luz dessas brevíssimas indicações, o objeto imediato e aparente das campanhas de moralização que ora se desenvolvem no Brasil, veremos que elas têm uma parcial justificação, na medida em que acusam a inautenticidade da ação político-administrativa do governo. Sejam quais forem os pressupostos ético-filosófïcos à luz dos quais se considere a ação político-administrativa do atual governo, é inegável, no puro plano da sociologia moral, que tal ação, de um lado, é suscetível de críticas, no sentido de que permite, e às vezes enseja, atos de favorecimento a pessoa ou grupos, contrariando princípios morais dotados de vigência média em nosso país. De outro lado, ressalta, ainda mais, o fato de que o governo padece de toda sorte de contradições, nas suas relações com os diversos estratos da população e inclusive nas relações internas dos membros e órgãos do governo, uns com os outros. Tais fatos prejudicam a autenticidade do governo, no sentido de afetarem a validade do seu poder e reduzirem, de muito, a eficácia de sua ação, assim lhe retirando as condições de exemplaridade e representatividade de que necessita-' lia para apoiar, num máximo de consenso, o exercício de suas funções de comando.

Ocorre, todavia, que o moralismo, parcialmente justificável nos limites acima referidos, é induzido a erro e se toma a si mesmo inautêntico ao ignorar a imensa margem de condicionalidade que limita a capacidade de autodeterminação do governo e ao presumir, de um lado, que se devem aos erros ou à malícia do governo as limitações de que padece o próprio governo e, de outro lado, que a simples mudança de homens importaria numa completa mudança da situação.

Na verdade, omitidas as variações individuais, que, numa visão macroscópica, perdem importância, a ação do governo, inclusive no plano em que ela é suscetível de apreciação moral, reflete condições reais e ideais a ele anteriores e sobre as quais a vontade individual dos governantes nada pode fazer. As práticas de favorecimento indébito, que tanto escandalizam os moralistas, são o produto da política de clientela, que decorre do subdesenvolvimento, que provém, por sua vez, do vigente regime de espoliação econômica. A falta de sisemática e de eficácia governamental, que tanto fazem bradar contra a interferência econômica do Estado, são o produto de um Estado cartonial, que decorre do mesmo subdesenvolvimento, oriundo, igualmente, da atual economia de espoliação. Se é legítimo e socialmente proveitoso o protesto contra essas manifestações de inautenticidade governamental, tal protesto só tem sentido na medida em que, partindo do diagnóstico da inautenticidade do governo, se aprofunde até as causas e condições dessa inautenticidade e tenda a promover as modificações estruturais capazes de suprimir os fatores que a provocam. É justamente isto o que deixa de fazer o moralismo. Inconsciente dos fatores condicionantes do processo político, erige os sintomas em causas e desta forma se restringe à crítica individual dos governantes e de seus atos. Tal é o motivo pelo qual, no caso brasileiro, todos os males de que padece o país são atribuídos à malícia do Sr. Getúlio Vargas,  o que, exasperando-se o clima moralista, conduziu ao propósito, parcialmente realizado, de se destituí-lo ilegalmente do poder.

O que há de grave nessa colocação, todavia, não é apenas, nem principalmente, o fato de violar a ordem legal. Considerada em si mesma, a ordem legal é adjetiva e se limita a emprestar valor jurídico à situação de fato vigente e ao equilíbrio de forças de que tal situação de fato é expressão. O que há de grave nas manifestações moralistas é seu caráter alienante. Pois, ao investirem contra os governantes, sob o fundamento de que são viciosos e maus, e ao se proporem a substituí-los por outros, as classes médias, ipso facto, deixam intactas as condições mesmas em virtude das quais elas se encontram material e espiritualmente desajustadas. Por esse motivo, o moralismo só tem sentido para os que o manipulam taticamente, ou seja, para aqueles que, estando realmente interessados em manter a situação vigente, ou seja, no fundo, um determinado regime sócio-econômico de produção, pretendem obter melhores condições de usufruiçâo de seus privilégios, ou assegurar a manutenção dos existentes.

As atuais campanhas de moralização, portanto, são, em última instância, um movimento pelo qual a burguesia mercantil se utiliza, para seus próprios propósitos, do idealismo das classes médias, alienando-as numa falsa revolução, cujo êxito importaria em consolidar as condições que asseguram o predomínio da burguesia mercantil e a espoliação das classes média e proletária, com o inevitável agravamento da inautenticidade do Estado e do governo.


 

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