América Latina: Universidades em Transição

Simon Schwartzman

Publicado em castelhano como América Latina: Universidades en Transición. Washington, Organización de los Estados Americanos, Colección INTERAMER, nº 6, 1996


Capítulo 2: As Universidades na América Latina

Origens

As universidades latinoamericanas são freqüentemente descritas como "napoleônicas", refletindo a idéia de serem instituições nacionais, ou pelo menos controladas e supervisadas pelos governos conforme normas uniformes, e dotadas de um mandato para a emissão de certificados profissionais de validade legal. Apesar das grandes modificações e variações havidas em relação a este modelo geral, da forte presença da Igreja Católica, e de que as primeiras universidades na região tivessem sido criadas pela coroa espanhola, ainda no século XVI, sob o controle estrito da Igreja, permanece uma clara predominância de universidades públicas e não confessionais, se não em quantidade, pelo menos em prestígio e reconhecimento.

As atuais instituições, em sua maioria criadas ou profundamente transformadas depois dos movimentos de independência no início do século XIX, pretendiam ser uma reação contra a herança colonial, que incluia a Igreja e suas universidades. O objetivo era transformar as antigas colônias em estados-nações, dotadas de elites profissionais formadas em instituições supervisionadas pelo poder público conforme os conhecimentos jurídicos e técnicos mais atuais, e livres do pensamento religioso tradicional. Haveria que ensinar mais ciências naturais do que filosofia; a engenharia, entronizada na França como a grande profissão dos Estados modernos, passava a disputar a primazia com a medicina e o direito entre as profissões das elites. Em alguns países, como no Chile e na Argentina, as universidades públicas deveriam ter um papel de coordenação de amplos sistemas educacionais.

O projeto mais abrangente e ambicioso talvez tenha sido o da Universidade do Chile, parte de um amplo projeto de organização de um sistema de educação nacional:
By the end of the 1830s, the government [of Chile] was in fact strongly determined to implement the constitutional mandate concerning national education. In its annual report to the Congress in 1840, Egaña presented a plan for the development of primary, secondary, and higher education. Primary education was presented as universal, meaning that members of all social classes should benefit from it, including Araucarian Indians. Education would presumably introduce morality among the population and demonstrate the advantages of civilization to all. Secondary education had traditionally been viewed as elite education, a view that Egaña reaffirmed when stated that it was 'indispensable for the superior classes as it provides for the education of a person of distinction'. Egaña also announced that the state-run Universidad de Chile, as a superintendency of public instruction, would supervise all national education.(1)
A ambição modernizadora e a valorização da educação popular e técnica, no entanto, nem sempre produziam os efeitos esperados. Ao abandonar a tradição escolástica, se perdia muitas vezes também as tradições de estudo e da busca do conhecimento que, em seus melhores momentos, haviam sido preservadas pelas universidades tradicionais, e recuperadas com novos conteúdos pelas melhores universidades européias. É o que ocorre com a Universidade de Buenos Aires:
"Desde su fundación, entonces, la Universidad de Buenos Aires ve amenazado su destino como centro de saber por las urgencias inmediatas de la sociedad en que nace, que exige de ella, antes que una actividad científica real, el cumplimiento de ciertas funciones sociales que el progreso de Buenos Aires hace ineludibles: el abandono de la tradición universitaria que remonta a la Edad Media y se consolida en la España de la Contrarreforma no significa, entonces, necesariamente para la Universidad de Buenos Aires, la adopción de una actitud más moderna frente a los problemas del conocimiento, sino un abandono del interés por ese problema; lejos de implicar necesariamente un enriquecimiento, puede traducirse - y de hecho se traducirá durante extensos períodos - en un empobrecimiento científico y cultural".(2)
No Brasil(3), a transição da universidade escolástica para uma educação orientada à formação profissional tem suas origens no projeto de transformação da Universidade de Coimbra realizado ao final do século XVIII para livrá-la do predomínio do ensino jesuíta e da tradição da contra-reforma, projeto trazido por membros da corte D. João VI, rei de Portugal, em sua vinda para o Brasil em 1808. Esta transformação, conhecida como "Reforma Pombalina", por referência ao Marquês de Pombal, primeiro ministro da Corte Portuguesa, buscou introduzir em Portugal, e mais tarde no Brasil, o ensino técnico e os conhecimentos práticos, sem a estrutura universitária que havia ficado demasiado identificada com a corporação religiosa, e que só seria implantada no Brasil na terceira década do século XX. Como observa Antônio Paim,
A Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, levada a cabo em 1772, e a maneira pela qual se deu início à organização do ensino superior com a mudança da Corte para o Rio de Janeiro, marcaram em definitivo a posição que a cultura brasileira iria adotar em relação à universidade. Pombal pretendeu desfechar um golpe de morte contra o verbalismo da cultura portuguesa e fez da universidade, voltada para a ciência aplicada, seu principal instrumento. Os homens que cercavam D. João VI e tiveram a missão de implantar as instituições de cultura, inexistentes na Colônia, haviam sido formados na nova mentalidade e prescindiam de todo da universidade. O menosprezo pela instituição, subjacente a semelhante atitude, iria finalmente explicitar-se com a ascensão do positivismo. Já agora a universidade é combatida como elitizante e promotora do saber ornamental."(4)
As idéias inovadoras que as elites latinoamericanas traziam da Europa e incorporavam aos movimentos de independência e construção dos estados nacionais haviam transformado profundamente as universidades européias na passagem do século XVIII para o século XIX, sem, no entanto, romper completamente com as tradições do passado. Havia pouco o que preservar, no entanto, em Portugal, Espanha e mesmo na França, destruída por décadas de revolução e turbulência. Em contraste com o ocorrido poucas décadas antes com a criação da Universidade de Humboldt em Berlim, em 1809, as universidades latinoamericanas não abriram espaço para a pesquisa empírica, que pudesse servir de base para a educação técnica nas faculdades profissionais. Em contraste com a Inglaterra, tampouco havia espaço para a educação geral na tradição das "liberal arts", que ficou restrita às escolas secundárias, último bastião da tradição educacional católica. E, em contraste com a própria França, pouco foi desenvolvido em termos de uma educação de elite propriamente dita, típica das "grandes écoles" francesas, que protegiam as instituições de melhor nível das mudanças e incertezas dos sistemas mais amplos de educação superior(5).

Uma característica importante da educação superior latinoamericana foi sempre o predomínio das escolas profissionais de direito, medicina, engenharia e das academias militares. Na Europa, estas escolas profissionais geralmente se situam fora das universidades, ou pelo menos se organizam de forma independente do núcleo acadêmico central, normalmente orientado para a educação geral, as humanidades e as ciências básicas. Mas a educação superior na América Latina, desde seus inícios, foi definida quase sempre como sinônimo de educação para as profissões. Desta maneira, alguma qualidade foi preservada, nas melhores escolas de engenharia e medicina; mas foi também um fator de resistência às inovações oriundas de novos grupos sociais que aspiravam a uma educação superior mais acessível, à abertura de novas disciplinas, e a tentativas de mudança vindas de governos e movimentos reformistas.

Nem todos os países latinoamericanos se desenvolveram da mesma maneira, e os diferentes vínculos que as elites latinoamericanas mantinham com as universidades européias explicam muito das diferenças entre suas instituições de ensino superior. Estes vínculos podiam consistir na tradição de completar os estudos em universidades européias, na vinda de professores para ensinar nas universidades locais, ou ainda na forte presença de filhos de imigrantes europeus entre estudantes e professores. A influência européia trazia os conhecimentos e a vivência de instituições que tinham se modernizado ao longo do século XIX, e sobretudo a valorização da educação e do conhecimento técnico como instrumentos de mobilidade social, atitudes que pressionavam os sistemas universitários locais para melhorar sua qualidade e incorporar os conhecimentos mais modernos. Lugares com forte presença de imigrantes europeus, como Buenos Aires e São Paulo, desenvolveram melhores instituições do que os que se mantiveram mais isolados, como o México ou Rio de Janeiro.

Outra diferença significativa entre países foi como evoluiu o conflito entre o Estado e a Igreja sobre o controle dos sistemas educacionais, que ocorreu praticamente em todos os países da região. México e Argentina, com suas grandes universidades nacionais, públicas e leigas, devem ser vistos em contraste com Chile e Colômbia, onde universidades católicas e leigas coexistiram historicamente umas ao lado das outras. Não por acaso, onde esta coexistência se deu, a educação superior privada avançou mais, ainda que não necessariamente como educação religiosa. México e Argentina tipificam o padrão de sistemas universitários dominados por uma universidade nacional central (como é o caso, também, do Peru, Uruguai e muitos outros países da região), em contraste com os sistemas descentralizados do Chile, Colômbia e também Brasil (no qual as primeiras universidades católicas só surgiram a partir de 1940 mas onde a Igreja sempre preservou sua influência). Estas diferenças históricas ajudam a entender as diferentes respostas de cada país às pressões pelo aumento da oferta de educação superior que se aceleraram a partir da segunda metade deste século. México e Argentina responderam abrindo as portas de suas universidades nacionais, que se transformaram nas maiores do mundo em número de estudantes; enquanto que Brasil, Colômbia, e mais recentemente Chile, responderam abrindo espaço para a criação de um grande número de instituições de ensino superior privadas.

Criaturas dos novos estados nacionais, seria de se esperar que as universidades latinoamericanas vivessem sob a supervisão e o controle constante de políticos e governantes, e tivessem poucas condições de se desenvolver como órgãos autônomos e independentes. Esta, no entanto, é só parte da história. A principal conseqüência da grande proximidade entre as universidades e o poder talvez tenha sido a intensa politização dos estudantes e professores universitários, que fez com que os choques entre as elites governamentais e as acadêmicas fossem constantes, e levassem a formas inusitadas de autonomia universitária. Na medida em que os projetos modernizadores eram postos de lado pelos governantes, eles eram incorporados por contra-elites que se formavam nos bancos acadêmicos, e ensaiavam desde cedo a oratória e a militância político-partidária que os levariam ao poder.

Que tipo de universidade resultou desta história, sumariada aqui? Uma comparação sistemática entre os processos de modernização das universidades na América Latina, Japão, Índia, África, a Rússia do século XIX e a Europa Ocidental traz ensinamentos preciosos(6). Em nenhum país as universidades deixaram de mudar. Em todos os casos elas tiveram que abrir espaço para novas idéias, novas gerações, e em muitos casos compartir o poder com novos grupos. Somente em alguns casos, no entanto, elas conseguiram se transformar de maneira tal que pudessem reter sua função histórica de centros geradores e transmissores de conhecimento. Em outros, elas terminaram ocupadas por outros grupos, com outros interesses, e nunca conseguiram ir muito além de suas funções clássicas de agentes de legitimação de posições de status e poder adquiridas por meios que têm pouco a ver, na realidade, com o conhecimento enquanto tal.

Cultura

A expansão dos sistemas universitários ocorrida na América Latina veio acompanhada também de importantes mudanças nos valores e percepções das pessoas a respeito do que deve ser a universidade e a atividade profissional, tudo aquilo que cabe dentro da denominação de "cultura" universitária ou acadêmica. Ainda que mais difícil de precisar do que informações sobre matrículas, número de instituições ou custos, a dimensão cultural talvez seja a mais importante de todas, porque é ela que dá sentido e orienta as ações das pessoas, dentro das condições e dos recursos que dispõem.

Já nos referimos em parte a esta questão quando observamos que as instituições de ensino superior criadas na América Latina a partir do século XIX pretendiam se contrapor à universidade católica tradicional, trazida pelos espanhóis no início da colonização, e introduzir os conhecimentos técnicos e práticos que faziam parte do iluminismo europeu, e que se expressavam com vigor nas ideologias e nas novas instituições desenvolvidas na França após a Revolução.

As antigas universidades tinham um perfil cultural bem definido, dado pelo uso do latim e pela referência a um conjunto relativamente limitado de autores clássicos, cujo estudo levava ao conhecimento da sete "artes liberais", o trivium (gramática, lógica e retórica) e o quatrivium (aritmética, astronomia, geometria e música) . Sobre esta base se dava a formação profissional, para as carreiras de direito, teologia e medicina. A reforma protestante, o desenvolvimento das ciências empíricas, a criação dos estados nacionais europeus e a consolidação de suas línguas, todo este processo se deu no início à margem das antigas universidades, que passaram por longos períodos de decadência e estagnação, até serem reorganizadas a partir do século XIX pela introdução da ciência empírica, da formação profissional moderna, e pela adoção das línguas nacionais no ensino, escritos e publicações. A universidade européia reformada desenvolveu novas culturas acadêmicas, distintas em cada país, com alguns elementos comuns. Na Alemanha, seu valor central era a Wissenschaft, um ideal de conhecimento profundo e abrangente que incluía tanto as ciências naturais quanto a filosofia, e que deveria ser o fundamento do conhecimento empírico e da moral; na França, science tinha um sentido muito mais claramente cartesiano, com ênfase na matemática e na ordenação sistemática dos conhecimentos e da informação, servindo de base a um novo tipo de profissional, o engenheiro; na Inglaterra, a mesma palavra, science, tinha um sentido muito mais pragmático, coexistindo com a educação humanística e literária típica dos colleges tradicionais(7).

Estes conteúdos culturais e normativos ainda estão presentes nos sistemas de ensino superior destes países, embora transformados e influenciados pelos processos de massificação ocorridos nas últimas décadas, e que tiveram sua expressão mais evidente nos movimentos estudantis de 1968. Em geral, países que contam hoje com instituições educacionais bem constituídas contaram em seu passado com grupos sociais significativos que fizeram da educação e da cultura seu principal instrumento de coesão interna e mobilidade social. Na América Latina, assim como em outras regiões onde governos trataram de importar suas instituições acadêmicas de outros contextos, esta história prévia não existia, ou tinha um sentido totalmente distinto, e não havia como recriar estes conteúdos pela simples promulgação de leis, regulamentos e controles criados pelos governos para suas instituições educacionais. O estudo da história dos movimentos culturais e sociais associados às instituições educacionais é a única maneira de entender e determinar a existência destes conteúdos, que não se dão na simples letra da legislação, dos programas dos cursos, ou mesmo das credenciais acadêmicas dos professores. Quando os conteúdos são débeis, rotinas vazias e jogos de poder ganham precedência, e a substância do trabalho educacional se esvazia.

A história da introdução dos conteúdos profissionais e intelectuais das modernas profissões e do conhecimento técnico e científico na América Latina pode ser sumariada como um processo com três etapas bem diferenciadas(8). Em um primeiro momento, os "novos conhecimentos" eram apropriados por pequenas elites que os utilizavam como instrumentos de conquista de posições sociais e políticas de liderança. Médicos ofereciam o controle das epidemias e tratamentos para as enfermidades sociais, engenheiros prometiam as maravilhas da reforma urbana e das grandes estradas, e os advogados apresentavam suas fórmulas de reforma constitucional e reorganização do Estado. Pessoas de formação universitária eram parte de uma intelligentsia que se afirmava, sobretudo, pelo valor simbólico da Ciência e da Técnica, mais do que pela competência técnica efetiva que pudessem ter. Típico deste período foi a difusão da ideologia positivista entre engenheiros e militares, que consistia sobretudo em um discurso contra a Igreja e de justificação das aspirações hegemônicas de novos grupos em ascensão. Em muitos casos, a jovem intelligentsia era formada pelos filhos das antigas aristocracias locais, de origem freqüentemente rural, e a tensão entre o novo e o velho era suave; em outros, ela tinha um caráter mais urbano, com menos raízes tradicionais, e o potencial de conflitos era maior. Vale a pena examinar este período com algum detalhe, a partir do que ocorreu no Brasil, e que deve encontrar similaridades com o ocorrido em muitos outros países.

Tecnocracia: os planos dos engenheiros

A noção de que a sociedade poderia ser planejada e gerida por engenheiros estava bem de acordo com a tradição francesa, e teria grande impacto no Brasil. Enquanto na tradição inglesa a engenharia sempre fora uma ocupação menor e sem foros de nobreza, a École Polytechnique foi, desde o início, o lugar onde a elite administrativa francesa era educada. Lá, a educação militar era ministrada juntamente com o treinamento da mente em matemática e física; pensava-se que esta combinação prepararia as melhores mentes cartesianas, prontas para construir pontes, comandar exércitos e dirigir a economia. Esta descrição, e as diferenças entre as tradições anglo-americana e francesa, ainda hoje são válidas.

As mudanças de nome e de objetivos da antiga escola militar do Rio de Janeiro ao longo do século XIX são uma boa indicação sobre os papéis que lhe eram atribuídos. Quando foi fundada, em 1810, como Real Academia Militar, esperava-se que oferecesse um "curso completo de ciências matemáticas, de ciências de observação, quais a física, química, mineralogia, metalurgia e história natural, que compreenderá o reino vegetal e animal e das ciências militares em toda sua extensão, como a de tática como de fortificação e artilharia". A profissão militar nunca desfrutou de muito prestígio no Brasil, exceto talvez no sul do país, e os aspectos civis sempre prevaleceram na Escola. Em 1858 a Academia Militar mudou de nome, passando a chamar-se Escola Central, e finalmente em 1974 adotou a denominação francesa de Escola Politécnica. Hoje, ela faz parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e abriga a Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia - COPPE, o mais importante do país.

O fato de que a engenharia civil predominasse a partir de meados do século XIX não significava que a Escola fosse particularmente competente enquanto local para a formação especializada nas técnicas mecânicas ou de construção, ou para o estímulo da competência nas ciências físicas e naturais. Adotavam-se livros-texto ultrapassados, quase não havia aulas práticas nem experimentais, o trabalho de pesquisa era praticamente inexistente. Tudo isto não fazia muita diferença, diante das limitadas necessidades tecnológicas da sociedade brasileira da época. A Escola de Minas de Ouro Preto, criada sob supervisão francesa em 1875, não teve um desempenho especializado muito melhor ao longo do tempo, apesar de ter iniciado suas atividades dentro de padrões acadêmicos muito mais estritos. O solo de Minas era rico, mas faltavam as condições econômicas para o desenvolvimento de uma indústria de mineração que fizesse uso dos talentos especializados que a velha Escola de Minas deveria formar(9). Somente em São Paulo, onde a Escola Politécnica local foi criada em 1814 para acompanhar de perto a expansão do sistema ferroviário para o interior do território cafeeiro, atingiu-se um nível mais técnico e especializado de ensino.

O que deu sentido à Escola Politécnica do Rio de Janeiro (bem como à Escola de Minas e, em certa medida à Politécnica de São Paulo) foi o papel que desempenhou na criação de uma nova linhagem de intelectuais de elite, capazes de por em cheque a cultura estabelecida dos bacharéis e da Igreja, em nome da ciência moderna. A doutrina positivista deu aos engenheiros a certeza de que tinham o direito e a competência de gerir a sociedade, que se tornaria melhor e mais civilizada se o poder estivesse em suas mãos. Os positivistas se mobilizaram contra a monarquia, defenderam a educação para todos e melhores salários para a classe trabalhadora, fizeram oposição à Igreja e a todas as formas de organização corporativa da sociedade (e se opuseram, por isto, à criação de universidades), combateram a vacina obrigatória, e, sobretudo, se organizaram em sociedades secretas e conspiraram para a tomada do poder. A marca de sua vitória, "Ordem e Progresso", está até hoje registrada na bandeira do país.

O positivismo foi apenas a primeira e mais evidente manifestação da propensão dos que estavam ligados à tecnologia e às ciências exatas a concluir que tinham a competência requerida, e por isto o direito, de liderar as sociedade. Os militares, que ao longo de sua história permaneceram como uma espécie de carreira de engenharia de segunda classe, foram os que se ativeram mais fortemente, e por mais tempo, a esta ideologia; faziam-no, sobretudo, no âmbito do Exército, que sempre teve um componente menos técnico do que a Marinha ou, mais recentemente, a Aeronáutica. Isto não significa, evidentemente, que estas corporações não fossem também politizadas, e até mais; mas é no Exército que se desenvolveu uma visão articulada do papel messiânico das forças armadas, consubstanciada na doutrina de segurança nacional(10).

Também o marxismo, no Brasil, resultou em grande medida das tradições militares e de engenharia. Traduzido do francês, distanciado de movimentos operários organizados e despido de sua inspiração hegeliana, o marxismo não diferia muito de uma variante do evolucionismo positivista. No começo do século XX, imigrantes italianos, espanhóis e da Europa Central trouxeram para o Brasil os ideais da organização e ação política das classes trabalhadoras. Entre eles prevalecia o anarquismo, e alguns aderiram aos princípios do socialismo científico e do internacionalismo comunista. A velha guarda comunista do país seria inteiramente suplantada, no entanto, pelo grupo militar liderado pelo capitão Luís Carlos Prestes. Se a insurreição de 1935 foi um fiasco como movimento político, ela teve como resultado, no entanto, que Prestes e seu grupo de jovens tenentes permanecessem à frente do Partido Comunista no Brasil até meados da década de 70, impedindo, desta forma, a emergência de uma liderança marxista alternativa, fosse ela sindical ou intelectual.

Os engenheiros também trataram de assumir uma posição mais direta de comando através do controle do habitat humano das cidades. A criação de Belo Horizonte como nova capital para o antigo Estado de Minas Gerais, que deveria renascer com o advento da República, manteve-se como símbolo que ressurgiria quando um ex-prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitscheck, resolveu dar nova partida à história brasileira com a construção de Brasília. No início do século XX o Brasil passou por sua experiência mais significativa de renovação urbana, que foi a transformação do Rio de Janeiro numa cidade ao estilo francês, durante a gestão de Pereira Passos. Só agora historiadores e sociólogos começam a estudar como se deram estas experiências, quais eram seus pressupostos e como as pessoas se encaixavam ou não nos planos que saiam das pranchetas dos engenheiros e arquitetos. As três experiências tiveram em comum pelo menos uma característica, ou seja, a noção de que havia um plano a ser seguido, linhas retas a serem transferidas para o mundo real, e que as pessoas deveriam ser convencidas, educadas, ou simplesmente obrigadas a aceitá-los. Em Belo Horizonte, construída numa região montanhosa, as elevações de terreno não aderiam de bom grado aos triângulos e quadrados do arquiteto Aarão Reis, não por acaso um positivista que estudara na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Os mineiros aprenderam a lição, e construíram Brasília em um planalto. No Rio de Janeiro, a velha cidade portuguesa, suja e apinhada, foi posta abaixo, e as pessoas obrigadas a abandonar suas casas, expulsas para subúrbios distantes, em um processo que voltaria a se repetir já nos anos 60, com a remoação de favelas da Zona Sul(11).

Brasília recorda que em nenhum outro lugar foi tão evidente a existência de laços paradoxais entre o iluminismo dos engenheiros e o autoritarismo político quanto na moderna arquitetura brasileira. O país entrou no mundo da arquitetura moderna nos anos mais negros do Estado Novo, quando se experimentavam as idéias de poder totalitário que pareciam prevalecer na Europa. Para os tenentes que acompanharam Vargas à tomada do poder em 1930, os regimes soviético, alemão e italiano eram igualmente fascinantes, e não muito diversos uns dos outros(12). Um país em construção, poderoso e moderno, precisava de grandes obras, e Le Corbusier disputou palmo a palmo com o italiano Marcelo Piacentini, arquiteto de Mussolini, pelo privilégio de construir o grande sonho do Ministro Capanema, a Cidade Universitária do Rio de Janeiro(13). Le Corbusier e seus seguidores brasileiros, liderados por Lúcio Costa, saíram derrotados, mas tiveram a oportunidade, mais tarde, de construir a sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Essa disputa dos anos 30, que pode ser vista como um simples confronto entre grupos profissionais e estilos arquitetônicos, desenvolveu-se num âmbito muito mais amplo, no qual o conflito entre os jardins e rodovias suspensas de Le Corbusier e as colunas romanas de Piacentini aparece como a encarnação do conflito entre socialismo e fascismo.

A construção do edifício do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, concluído em 1945, contribuiria para dar ao regime Vargas, e especialmente ao seu Ministro da Educação, uma aura progressista bastante questionável. Escrevendo em 1945 sobre este edifício, Lúcio Costa o descreve como "linda e pura flor do espírito, prenúncio certo de que o mundo para o qual caminhamos inelutavelmente poderá vir a ser, apesar das previsões agourentas do saudosismo reacionário, não somente mais humano e mais justo, senão, também, mais belo"(14)

Enquanto no Rio discutiam-se os grandes projetos, o prefeito de Belo Horizonte encarregava Oscar Niemeyer e Cândido Portinari, arquiteto e muralista do Ministério da Educação, de projetar e decorar as edificações que iriam circundar a lagoa da Pampulha. Mais tarde, Lúcio Costa assinaria o plano mestre de Brasília, Niemeyer projetaria os edifícios e todos jurariam mais uma vez, pelo menos por algum tempo, que a arquitetura moderna na cidade nova seria um novo início de uma nova era de progresso para o Brasil.

A Politécnica também produziu empresários. O capitalismo brasileiro em São Paulo deriva principalmente da combinação do dinheiro das plantações de café com o impulso trazido pelos imigrantes europeus. Os engenheiros oriundos da Politécnica do Rio de Janeiro vinha de uma outra linhagem. Filhos de políticos ou da nobreza do Império, adquiriam competência para saber onde encontrar as riquezas minerais do país, ou que tipos de grandes projetos o governo poderia se interessar em empreender. Sabiam francês, às vezes alemão e inglês, e eram capazes de lidar com capitalistas e governos estrangeiros. Além disto, estavam equipados com os sobrenomes que convinha, e tinham os contatos necessários para obter as licenças, autorizações e concessões necessárias para seus projetos. Este tipo de empresário era, decididamente, um defensor da iniciativa privada, mas só tinha condições de se desenvolver à sombra do Estado. Esta associação "neo-mercantilista" entre Estado e interesses privados não era, naturalmente, nenhuma novidade na tradição brasileiro-portuguesa de administração colonial. Mas não há dúvida que impõe certas conotações pouco comuns à imagem convencional de um empresário capitalista(15).

Um último derivado da tradição da Politécnica foram as ciências exatas. A matemática, a física e a astronomia surgem na antiga Politécnica, graças a uns poucos indivíduos de talento que se beneficiavam de contatos estreitos com a França, e tentavam inaugurar um espaço intelectual e institucional para a pesquisa pura, que estivesse livre tanto dos aspectos pragmáticos da engenharia quanto das restrições ideológicas do positivismo. Estes intelectuais criticavam as limitações da educação profissionalizante, escreviam artigos complexos demonstrando os erros científicos do positivismo, e se envolviam na organização das primeiras universidades do país, em São Paulo no Rio de Janeiro. Para eles, a ciência moderna e a matemática eram ingredientes necessários da cultura moderna, e queriam trazer este elemento para o Brasil(16)

Depois da II Guerra Mundial, a ciência pura ficaria praticamente sem defensores. A nova geração de jovens físicos, iniciada pelos professores estrangeiros da Universidade de São Paulo na década de 30 e 40, estava convencida de que tinha um papel muito mais importante a desempenhar. Estes cientistas acompanhavam os avanços da tecnologia nuclear, se entusiasmavam com o uso da racionalidade técnico-econômica na transformação da União Soviética em grande potência, e consideravam que seu papel era trazer para o Brasil as vantagens da energia nuclear e os benefícios do planejamento racional(17). Para alguns, isto significou militar em partidos políticos comunistas ou socialistas; para outros, significou participar de projetos governamentais ambiciosos, ainda que quase sempre frustrados, na área de tecnologia avançada. Além disto, envidaram esforços para transformar as universidades brasileiras em instituições de base científica, abertas para todos, geridas democraticamente e altamente envolvidas com a solução dos problemas urgentes do país. Identificados com a esquerda, diversos dos mais conhecidos dentre esta geração de cientistas entrariam em conflito com os governos militares instituídos depois de 1964, e tiveram que partir para o exílio. Isto não impediu, no entanto, que muitos deles defendessem a orientação nacionalista e estatizante que os militares também personificavam, como o programa nuclear paralelo, a indústria de armamentos, o programa espacial e a reserva de mercado para a informática, além da criação do Ministério da Ciência e Tecnologia wm 1985, vista como a consagração destas lutas.

Prevenção: A cura dos médicos.

A idéia de que as ciências médicas não deveriam se limitar à função curativa, mas desempenhar um papel mais social, preventivo, instalou-se solidamente nos círculos médicos brasileiros no século XIX, a partir, principalmente, da grande tradição sanitarista de Louis Pasteur(18). Antes disto, como depois, o médico lidava basicamente com indivíduos que o procuravam em busca de ajuda, e que tinham condições de pagar por seus serviços. As grandes epidemias - peste, lepra, varíola, tuberculose, tifo, doenças venéreas - eram em geral da alçada das autoridades públicas e religiosas, que isolavam os atingidos, confortavam os moribundos, enterravam os mortos e exortavam os saudáveis a não viverem em promiscuidade. No início do século, provavelmente pela primeira vez no Brasil, solicitou-se aos médicos que tratassem de entender as causas das doenças que grassavam no Rio de Janeiro, e que sugerissem medidas para curá-las. Os médicos encontraram problemas no ar, na arquitetura, no fornecimento de alimentos à população, na moral social . . . Suas recomendações eram sobretudo de cunho urbanístico, legal e moral, antes que estritamente médicas, e requeriam a aprovação e o empenho de autoridades mais altamente posicionadas. Nas décadas seguintes, porém, os médicos tentariam desempenhar um papel mais importante. A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, criada em 1829, dedicar-se-ia persistentemente ao objetivo de colocar a sociedade sob a supervisão científica da profissão médica e, ao mesmo tempo, lutaria com todas as suas forças contra as formas não institucionalizadas de trabalho médico, da homeopatia à medicina caseira e tradicional.

A profissão médica nunca teve, no Brasil, a mesma força que tiveram os engenheiros na defesa de suas propostas ambiciosas. Uma das explicações é que o mercado para a prática privada da medicina sempre foi melhor do que o que cabia aos engenheiros, e por isto os médicos tinham melhores condições de abraçar mais de perto os cânones de uma profissão liberal. Só os médicos mais ligados a hospitais gerais, os sanitaristas e os médicos militares, tentariam desempenhar um papel mais abrangente. Suas maiores realizações deram-se no inicio do século XX, quando os especialistas em medicina sanitária se uniram aos engenheiros para a reorganização e saneamento dos portos e do espaço urbano das principais cidades, sobretudo do Rio de Janeiro.

Se os médicos, enquanto grupo organizado, nunca detiveram muito poder, eles se aproximaram mais das ciências sociais do que os engenheiros, e tiveram um importante papel na definição das ideologias sociais preponderantes no país. A antropologia física surgiu no Brasil como um ramo da medicina legal. Nina Rodrigues, na Faculdade de Medicina da Bahia, trabalhava, na virada do século, com teorias biológicas que buscavam ligações entre formas físicas e comportamento criminoso. Essa literatura conduzia diretamente a questões sobre as qualidades (e sobretudo defeitos) raciais da população brasileira, e aos problemas de miscigenação e degeneração racial. As explicações para os problemas apresentados pelos brasileiros - preguiça, luxúria, indisciplina - se transferiam das antigas teorias climáticas e ambientais para as novas teorias biológicas, supostamente mais científicas(19).

Este diagnóstico teria que dar origem a um tratamento. A eugenia tornou-se questão importante nos círculos médicos brasileiros, e em 1920 realizava-se no Rio de Janeiro o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, com participantes de diversos países latinoamericanos, seguido pela criação, em 1931, da Comissão Brasileira de Eugenia(20). Propunham-se intervenções em muitas áreas, desde exames pré-nupciais, para controle de doenças venéreas, até a esterilização dos alcoólatras, sifilíticos e esquizofrênicos. Para alguns, o estoque racial brasileiro deveria eperfeiçoar-se naturalmente com o tempo, graças à superioridade do sangue branco. Outros, menos "otimistas", exigiam limitações estritas aos casamentos inter-raciais. Todos queriam que os imigrantes asiáticos e outros pertencentes a raças consideradas inferiores fossem isolados, e que se fizessem leis favoráveis à imigração de europeus ocidentais.

Eugenia e raça deixaram de ser assuntos legítimos para a intelligentsia brasileira depois da II Guerra Mundial. Os avanços extraordinários da medicina curativa durante a guerra e nos anos que se seguiram, associados ao próprio sucesso das campanhas sanitárias e epidemiológicas das décadas anteriores, deixaram a profissão médica sem plataforma social e ideológica própria; emquanto isto, o crescimento da economia e a expansão dos centros urbanos abriam novas perspectivas para a clínica médica como profissão liberal privada. Esta situação começaria a mudar novamente nos anos setenta. A expansão do número de médicos nos grandes centros, o aumento dos custos de seus serviços, e a prolongada crise econômica na década de 80, tornaram a prática privada inviável para muitos dos novos médicos. Ao mesmo tempo reapareceram nos centros urbanos enfermidades contagiosas que pareciam ter sido eliminadas no passado. Com estas alterações, as novas gerações de médicos brasileiros são muito diferentes das antigas. Muitos se empregam em serviços públicos ou empresas de saúde, se organizam em em sindicatos, e recorrem à greve para defender seus direitos. Estes médicos têm uma percepção aguda de que os problemas de saúde que enfrentam dia a dia nos ambulatórios da Previdência não são fundamentalmente biológicos, mas sociais e econômicos. Mas a semelhança com o passado não é completa. A despeito de sua politização renovada, parece improvável que os médicos de hoje tentem, antes, desfraldar uma bandeira própria de reformas sociais. Veem-se basicamente como trabalhadores intelectuais, parte de um proletariado intelectual crescente, e tendem a agir de acordo com isso.

A administração do Estado: a ordem dos bacharéis

As profissões jurídicas não são propriamente portadoras de "conhecimento novo", no mesmo sentido que engenharia ou a medicina. As faculdades de direito, no entanto, sempre acompanharam de perto as inovações do direito positivo de outros países, principalmente europeus, e neste sentido cumpriram um papel modernizador significativo, com algumas características bastante especiais(21).

Na tradição administrativa portuguesa nunca houve separação clara entre os ramos executivo e judiciário, e os corpos legislativos, quando existiam, tendiam a ser débeis e subordinados ao governo central. Freqüentar uma faculdade de direito e colar grau não significava adquirir uma profissão especializada na assessoria ou advocacia jurídica, como tende a ser hoje. Os cursos jurídicos funcionavam como processo de socialização das novas gerações de elite, e preparação para ocupar as posições no governo que pudessem ser obtidas através de laços políticos e familiares. Quando não geriam a coisa pública diretamente, os advogados cuidavam da mediação entre o Estado e os interesses privados. Carreiras jurídicas baseadas na competência profissional especializada tendiam a ser raras, e só interessavam a uns poucos que não dispunham de outros trunfos.

Uma das conseqüências dessa proximidade entre direito e governo foi o desenvolvimento do direito administrativo como uma das mais significativas disciplinas dos cursos jurídicos. O direito administrativo é, em certo sentido, uma teoria da administração pública, em que a formalidade das leis escritas é o único elemento da realidade levado em conta. Num sentido mais doutrinário, o direito administrativo ocupa-se daquelas situações em que uma das partes em um contrato legal, o governo, não só tem mais direitos do que a outra, o indivíduo, como também controla partes substanciais do próprio sistema legal responsável por dirimir eventuais conflitos de interesse. Especialistas em direito administrativo se capacitam tanto para a advocacia de interesses privados junto ao Estado para a montagem de instituições e procedimentos governamentais. O direito administrativo implica num "positivismo" jurídico que se recusa a ir além do texto da norma, e neste sentido se choca com as doutrinas jusnaturalistas que sempre foram o cerne das ideologias de justificação da profissão jurídica no país. Ele tampouco abre espaço para uma sociologia do direito. Esta esquizofrenia entre a prática e a doutrina jurídicas ajuda a entender a dificuldade que os cursos de direito até hoje encontram, no Brasil, em se modernizar.

Uma versão mais grandiosa do direito administrativo, desenvolvida por um pequeno grupo de eruditos, é o chamado "constitucionalismo", que na tradição brasileira significa, não a competência em tratar dos aspectos constitucionais das questões legais, mas na própria capacidade de propor legislações abrangentes que afetam as definições legais básicas da organização institucional do país. Neste sentido, o constitucionalismo está para as ciências políticas como o direito administrativo está para as ciências administrativas e organizacionais. O Brasil passou por alterações constitucionais suficientes, ao longo de sua história, para manter sempre ocupado um punhado de competentes constitucionalistas (constituições promulgadas em 1824, 1891, 1934, 1937, 1945, 1967, 1988, com inúmeras emendas e atos constitucionais de entremeio). Os constitucionalistas funcionam como assessores de grupos políticos influentes em períodos de crise política, e dão forma legal para o ajuste das transições. Até hoje não se fez um estudo aprofundado deste tipo de tecnocrata e seu papel na política brasileira. Vale a pena mencionar, porém, os mineiros Francisco Campos, responsável pela maior parte da legislação autoritária brasileira desde a década de 30, e Afonso Arinos de Melo Franco, ativo nas constituintes de 1934 a 1987, como talvez os exemplos mais significativos desta pequena elite.

Os advogados foram, portanto, políticos, profissionais e tecnocratas de alto nível, "intelectuais orgânicos" no sentido gramciano do termo, mas raramente uma intelligentsia no sentido mais clássico. As faculdades de direito, porém, se tornaram famosas enquanto centros de ativismo político estudantil, fenômeno antigo na América Latina que prenuncia com grande antecipação processos semelhantes na Europa e nos Estados Unidos. Os estudantes de direito lideraram as manifestações pela entrada do Brasil na II Guerra Mundial, contribuíram decisivamente para o debilitamento e final derrocada do Estado Novo, e continuaram ativos nos anos áureos da União Nacional dos Estudantes, até a década de 60.

O direito continua sendo uma profissão de prestígio, mas passou por transformações importantes em épocas recentes. O diploma de advogado deixou de ser uma condição prévia para a carreira política, e certamente não a garante. Continua sendo verdade que, para quem tem as conexões e a origem social apropriadas, o diploma de advogado continua a ter sua utilidade; mas, na medida em que foi aumentando o número de detentores de diplomas, seu valor de mercado tendeu a diminuir.

Mais seriamente, o Direito enquanto disciplina intelectual jamais conseguiu trazer a si a imagem de um conhecimento novo. Houveram algumas experiências de modernização em cursos na Fundação Getúlio Vargas e na Universidade Católica do Rio de Janeiro, que deixaram suas marcas(22). Desenvolvidos com a cooperação de especialistas norte-americanos nos anos sessenta, estes cursos tinham como principal objetivo a preparação de advogados capazes de trabalhar com as questões legais típicas de um mercado capitalista moderno. Mas permaneceram como experiências isoladas, freqüentemente referidas, mas insuficientes para dar origem ao desenvolvimento de um campo novo de pesquisas e estudos de pós-graduação semelhante, aos que existem nas demais ciências sociais.

Reforma ou revolução: as utopias das ciencias sociais.

As ciências sociais se firmaram no Brasil em uma contraposição entre o país formal, dos advogados, e suas duras realidades empíricas. Exemplar, neste sentido, foi a oposição entre dois grandes nomes, Rui Barbosa e Oliveira Viana. Rui Barbosa foi um escritor prolixo, erudito, e em 1910 foi candidato a Presidente da Repúbica contra Hermes da Fonseca, como representante dos valores civis e liberais. Perdidas as eleições, com grandes denúncias de fraude, Rui Barbosa passou a personificar o que de melhor o pensamento jurídico era capaz de produzir.

Oliveira Viana era sua nêmesis. Recusava-se a olhar o Brasil e os brasileiros através da lente do direito, e, tratava de ver a realidade sociológica subjacente. Comparava a textura da sociedade brasileira às das européias, e concluía que os brasileiros não tinham os ingredientes essenciais para a construção de uma ordem democrática. Suas explicações costumavam ser de fundo racial, na tradição inaugurada por Nina Rodrigues, e insustentáveis em termos das modernas ciências sociais; sua análise de como a sociedade brasileira se organiza em torno de clãs familiares e políticos, e de como a organização social do país partia dessa realidade, continuam sendo clássicas nas ciências sociais brasileiras(23). Nos anos trinta, Oliveira Viana defendia as tendências centralizadoras e modernizantes do regime Vargas, contra o pensamento liberal dos anos anteriores, que atribuía à tradição formal e legalista que Rui Barbosa simbolizava. Seria necessário, em lugar disto, trabalhar diretamente sobre a realidade social. Como conselheiro do governo, foi responsável por muitas inovações introduzidas na legislação social naqueles anos, e opunha-se às formas mais extremadas de conservadorismo de direita que com ele coexistiam.

Oliveira Viana foi apenas um entre diversos intelectuais, a maioria formados inicialmente em direito, que nas décadas de 20 e 30 tratavam de entrar em contato com o Brasil real: Gilberto Freyre, Ablerto Torres, Sérgio Buarque de Hollanda, Alceu Amoroso Lima, entre tantos outros. Além dos livros que escreviam, também tentaram influenciar diretamente o curso dos acontecimentos, seja pelo trabalho intelectual, seja pela atividade política, seja, na maioria dos casos, pela combinação das duas coisas(24). Dentre estes, um grupo que nos interessa mais de perto foram os que se dedicaram ao tema da educação.

Com um atraso de cem anos em relação ao Chile, o tema eduacional começou a entrar na agenda da sociedade brasileira nos anos 30, polarizado, logo de início, pela disputa entre católicos e leigos pelo controle das instituições e do conteúdo do ensino. A mobilização em torno das questões educacionais levou à formação de uma geração de cientistas sociais que ficaram conhecidos como "os educadores": Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo são os nomes mais conhecidos. No início dos anos 30 era divulgado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que pregava a educação universal e uma pedagogia participativa e pragmática, de inspiração norteamericana, que provocava arrepios na direita católica. Nos anos seguintes, esta geração de educadores se envolveu em uma série de projetos educacionais desenvolvidos pelos governos de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e pelo governo federal. Transformados de intelectais em administradores burocratas, eles estabeleram as bases do sistema educacional brasileiro tal como é hoje, e que tem como um dos principais vícios a centralização administrativa e burocrática e o formalismo de seu conteúdo. Nos anos cinqüenta, novamente sob a liderança de Anísio Teixeira, organizou-se no Rio de Janeiro o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Seus membros já não acreditavam que poderiam reformar o país pela educação, e por isto dedicaram-se a um amplo programa de estudos sociais que tivesse condições de contribuir para a compreensão e a transformação das condições gerais da sociedade brasileira(25). Esta passagem pode ter reforçado as ciências sociais, mas não foi tão boa para a educação, que perdeu muito de sua legitimidade enquanto campo específico de reflexão intelectual. À medida em que o sistema educacional brasileiro se expandia durante as décadas de 60 e 70, criaram-se faculdades e programas de pós-graduação em educação, e os educadores profissionais, que antes não passavam de um punhado, tornaram-se legião. Com o risco inevitável de qualquer generalização, é possível dizer que os educadores de hoje são bem organizados, seu mercado de trabalho é protegido pela legislação, mas seus salários são baixos, assim como seu prestígio ante a sociedade. Lutam com firmeza por melhores condições de trabalho, e tendem a acreditar que nada de muito importante pode ser realizado em prol do ensino brasileiro enquanto as condições sociais e econômicas mais gerais do país não forem radicalmente modificadas. Da mesma maneira que os médicos, já não têm uma utopia própria a apresentar.

Dois novos tipos de ciências sociais também emergiram nos anos 30, ambos em São Paulo. A Universidade de São Paulo, ou mais exatamente sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, foi o espaço para uma delas. A USP fora uma criação da elite do estado em uma época de intensa competição com o governo federal; o objetivo era dotar São Paulo de um lugar aonde seus filhos diletos pudessem estudar, e que os tornasse capazes de assumir, a longo prazo, a liderança nacional a que o estado estava destinado, graças seus recursos econômicos e empresariais. Considerado a uma distância de meio século, este projeto parece ter alcançado uma dose considerável de sucesso.

Uma série de professores franceses mais ou menos famosos foram trazidos para os cursos de ciências sociais e humanidades da USP a partir de 1935, incluindo nomes como Férdinand Braudel, o jovem Claude Lévy-Strauss e François Perroux, e outros menos conhecidos, como Roger Bastide, Pierre Daffontaines e Georges Dumas. A presença deste grupo parisiense criou uma grande excitação nos círculos intelectuais paulistas, e a permanência e as pesquisas desenvolvidas por alguns deles, como Roger Bastide, teriam um impacto duradouro.

Mais do que uma perspectiva sociológica coerente, os franceses trouxeram padrões e supostos implícitos a respeito da natureza do trabalho acadêmico, que foram sendo transmitidos nos contatos do dia a dia com seus alunos. Seu estilo de trabalho tendia a ser monográfico, baseado em pesquisas de campo extensivas, e incorporando elementos intelectuais da sociologia de Durkheim, do funcionalismo antropológico e das novas contribuições da psicanálise. Seus poucos discípulos brasileiros incorporaram estes padrões de trabalho e se prepararam, talvez pela primeira vez na história brasileira, para uma vida acadêmica profissional.

Não caberia aqui reconstruir a história das ciências sociais da Universidade de São Paulo, mas tão somente chamar a atenção para alguns de seus pontos mais salientes: os trabalhos mais antigos e na tradição funcionalista de Florestan Fernandes; os estudos monográficos sobre o Negro de Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni; o grupo de leitura de O Capital (que incluia, além de Cardoso e Ianni, o economista Paulo Singer e o filósofo José Arthur Gianotti e o sociólogo Juarez Brandão Lopes, entre outros). Da sociologia francesa ao marxismo, o grupo de São Paulo tratou de desenvolver um saber acadêmico que fosse também socialmente relevante, e ajudou a difundir a idéia de que as ciências sociais estavam destinadas a produzir um projeto de redenção social, que o cientista social tinha o dever de levar à frente.

A maneira pela qual cada um fez a passagem do acadêmico ao político foi uma questão de biografia pessoal. De uma maneira geral, foi possível para cada um incorporar a dimensão política sem perder a identidade acadêmica, e fazer desenvolver uma imagem pública de intelligentsia de esquerda sem perder os vínculos naturais com as elites, já que, com poucas exceções, os intelectuais da USP estavam muito mais próximos das elites políticas e intelectuais de seu estado do que seus professores franceses, ou do que sua legião de seguidores brasileiros. Na medida em que o sistema educacional brasileiro se expandiu, e os cursos de ciências sociais proliferaram, os cientistas sociais da USP passaram a desempenhar um papel paradigmático, não só em relação à temática e metodologia de trabalho, mas sobretudo, quanto ao papel intelectual a que o cientista social estaria destinado. A diferença, naturalmente, é que não seria possível repetir em tão grande escala a experiência elitizada dos primeiros tempos da Universidade de São Paulo.

Outro projeto que surgiu ao mesmo tempo que o da USP, e dentro do mesmo contexto histórico, foi o da criação da Escola Livre de Sociologia e Política. Seu fundador foi Roberto Simonsen, uma mistura de empresário bem sucedido, líder empresarial e historiador econômico. A Escola tinha por objetivo formar empresários, líderes políticos e estadistas, e não acadêmicos ou intelectuais. Enquanto a USP se abastecia na França, a Escola de Sociologia trazia uma série de especialistas norte-americanos que, pela primeira vez na história das ciências sociais brasileiras, começaram a falar em métodos quantitativos, ecologia urbana, estudos de comunidade(26).

Muitos filhos das elites paulistas cursaram a Escola, e foram influenciados por ela. A Escola sediou um número bastante grande de pesquisas sobre poder local, relações raciais, grupos imigrantes, Sua revista, Sociologia, foi por muitos anos a mais importante publicação de ciências sociais do país. Mas, apesar destes resultados, não seria incorreto afirmar que, como projeto intelectual, a Escola de Sociologia de São Paulo foi um fracasso. Jamais houve uma segunda geração de intelectuais oriunda dessa escola, numa indicação de que a sociologia no modelo americano, como uma disciplina acadêmica bem constituída e uma profissão diferenciada, nunca chegou a ter um futuro no Brasil. Como disciplina, ela não poderia competir com o charme intelectual trazido pela tradição francesa; profissionalmente, nem o Estado brasileiro nem o setor privado estavam preparados para aceitar e fazer uso da competência técnica e executiva que os sociólogos norteamericanos começavam a afirmar que possuíam.

As ciências sociais paulistas, organizadas em escolas, são postas frequentemente em contraste com as do Rio de Janeiro, muito mais centrada em personalidades. A cidade serrana de Itatiaia, entre Rio de Janeiro e São Paulo, foi durante algum tempo, no início da década de 50, o ponto de encontro para intelectuais das duas cidades. O grupo de Itatiaia incluía economistas, advogados, cientistas sociais de diversas extrações e percepções sobre os problemas e necessidades do Brasil. Todos estavam de acordo, porém, quanto ao fato de que tinham um papel importante a desempenhar. Publicaram alguns números de uma revista, Cadernos de Nosso Tempo(27), e, alguns anos mais tarde, durante o governo de Juscelino Kubitscheck, tiveram condições de organizar um instituto governamental, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, que estava destinado a ter um grande impacto sobre os círculos intelectuais.

Não eram pessoas predominantemente acadêmicas ou universitárias, mas intelectuais sem ligação institucional sólida. São Paulo, cidade provinciana apesar de sua importância econômica crescente, tivera condiçoes de criar um meio universitário bastante significativo; o Rio de Janeiro, em comparação, era a capital do país, foco da atenção nacional, mas jamais (quem sabe se por isto mesmo?) pudera desenvolver uma ciência social acadêmica comparável à de São Paulo. Quase todos os membros do grupo de Itatiaia eram do Rio de Janeiro, e, para eles, seu papel social enquanto intelectuais era muito mais significativo de que suas eventuais filiações institucionais ou acadêmicas. Seus modelos, enquanto papel, não eram os professores franceses, mas intelectuais como Oliveira Viana que, na década de 30, considerava ser sua tarefa pensar e fazer propostas para o futuro do país(28).

O ponto de união do grupo era a crença de que os intelectuais desempenhariam um papel central em qualquer transformação por que passasse o Brasil no futuro. Todos estavam familiarizados com o marxismo, mas sua percepção do papel das idéias na sociedade era diferente. Os intelectuais marxistas nunca pretenderam ter uma ideologia própria e diferenciada, mas sim contribuir para o desenvolvimento da consciência de classe do operariado, e neste sentido se viam a si mesmos como desempenhando um papel político secundário e auxiliar. Os intelectuais do ISEB, no entanto, estavam muito mais próximos de Karl Mannheim do que de Karl Marx. Não falavam de "classe trabalhadora", e muito menos de proletariado, e sim de "massa", "povo" e nação. A Ideologia, a ser elaborada pelos intelectuais, era o ingrediente essencial para dar forma a estas entidades que, por si mesmas, permaneceriam informes. Neste novo sentido, a ideologia surge como uma construção intelectual deliberada, uma combinação de interpretação social, valores e mitos políticos, a ser formulada e difundida por intelectuais.

O ISEB não sobreviveu enquanto grupo à polarização política dos anos 60. Alguns de seus membros decidiram tentar a sorte da política eleitoral; outros foram se posicionando cada vez mais à esquerda, aproximando-se do modelo tradicional dos intelectuais marxistas; outros ainda retiraram-se para a atividade privada ou para trabalhar em alguma agência de governo. Quando o regime militar decidiu fechar o ISEB em 1964, apenas subsistiam alguns remanescentes do grupo de Itatiaia, e nada de suas ambições de hegemonia intelectual.

Planejamento: O progresso dos economistas

O Brasil não desenvolveu uma tradição significativa de estudos econômicos, mas a noção de que a economia deveria e poderia ser planejada tinha grande voga, pelo menos desde os anos 30, e foram retomadas com ímpeto após a II Grande Guerra. A gradual descoberta de Keynes e a influência de Mannheim ajudavam a legitimar, no ocidente, as idéias de planejamento que pareciam dar tanto resultado nos planos quinquenais da União Soviética, e começavam a ser difundidas pelos programas de assistência técnica das Nações Unidas.

No Brasil como em toda a parte, as discussões envolvendo o planejamento econômico sempre ficaram obscurecidas pela oposição clássica entre intervenção econômica e laissez-faire, ou, mais especificamente, pela questão de se o Estado deveria ou não intervir diretamente para promover a industrialização. Essas questões, e algumas de suas implicações mais amplas, apareceram muito claramente no debate que opôs dois economistas de destaque em meados da década de 40, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Neste caso, os atores são tão importantes quanto as coisas que tinham a dizer(29). Roberto Simonsen, formado em engenharia, foi um empresário paulista extremamente bem sucedido, autor da primeira história econômica do Brasil e fundador da Federação das Indústrias de São Paulo e da Escola de Sociologia e Política daquele estado. Também participou da fundação do SENAI, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, até hoje a mais importante instituição brasileira na formação de mão de obra industrial especializada. Em 1944 Simonsen preparou, para uma agência governamental, um documento em que defendia a necessidade de planejamento estatal para promover a industrialização do país. Suas sugestões são um reflexo óbvio de sua experiência empresarial anterior, na década de 30, quando vira sua fortuna crescer graças ao trabalho associado com um Estado interventor. Gudin também era engenheiro, da Politécnica do Rio de Janeiro. Em 1943 publicara o primeiro livro-texto brasileiro de teoria econômica moderna, Princípios de Economia Monetária. Foi o representante brasileiro da Conferência de Bretton Woods, que organizou o sistema monetário do pós-guerra e criou, entre outras agências, o Fundo Monetário Internacional; foi, além disto, o criador da primeira Escola de Economia do Rio de Janeiro. Antes de desenvolver sua carreira de economista, trabalhara em companhias ferroviárias estrangeiras no Brasil, tendo permanecido, durante toda sua longa vida, defensor do livre comércio e do liberalismo econômico.

Solicitado a comentar as propostas de Simonsen, Gudin fez uma crítica tripla. Criticava a proposta de um ponto de vista técnico, chamando a atenção para erros na maneira como haviam determinados dados haviam sido utilizados e interpretados. Apresentava uma crítica severa contra as idéias protecionistas de Simonsen, argumentando a partir das teses clássicas do liberalismo econômico. E apresentava um esboço do que deveria ser a organização do governo brasileiro para a melhor gerência da economia do país.

Fica claro, nas propostas de Gudin, que ser liberal e contrário ao planejamento não significava ser contra a intervenção do Estado em questões econômicas. Para que a economia brasileira se desenvolvesse, o país precisava de uma autoridade monetária que controlasse a inflação, a taxa de câmbio, e que estabelecesse uma política fiscal adequada. Dever-se-iam projetar mecanismos institucionais capazes de estimular a formação de capital no país e atrair investimentos estrangeiros. Dever-se-ia estimular o comércio exterior e promover aumentos de produtividade. Eram necessárias coletas sistemáticas de informações econômicas para acompanhar o comportamento da renda nacional e da balança de pagamentos. A longo prazo, seria necessário criar um Banco Central para coordenar a política monetária.

Neste debate não houve perdedores. Nos anos que se seguiram, o Brasil continuou sendo um Estado intervencionista e protecionista, ainda que geralmente sob o manto da retórica liberal. Diversos planos econômicos foram concebidos, mas um sistema de planejamento abrangente jamais chegou, de fato, a se efetivar. A intervenção e o protecionismo do Estado sempre foram setoriais, ad hoc e sujeitos e considerações pragmáticas de curto prazo. Ao mesmo tempo, Gudin e seu grupo organizavam um centro para o ensino e a pesquisa econômica na Fundação Getúlio Vargas, e contribuiam para criar as instituições de controle monetário que julgavam indispensáveis, que culminaram na criação do Banco Central(30). A economia moderna também chegava ao Brasil por outro canal, ou seja, a Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas e seus cursos periódicos de curta duração para especialistas em planejamento econômico, oferecidos no Rio de Janeiro e outras cidades. Os economistas formados na tradição da CEPAL acreditavam, tal como Simonsen, que os problemas econômicos do Brasil e da América Latina em geral eram de natureza estrutural, o que exigia não somente o controle dos instrumentos monetários, como a efetiva intervenção do Estado na promoção do desenvolvimento econômico(31). O debate ideológico entre monetaristas e estruturalistas (estes mais identificados com as idéias de Simonsen sobre industrialização e planejamento) marcaria a vida intelectual brasileira a partir dos anos 50, contribuindo para que as ciências econômicas, mais do que a sociologia ou a ciência política, passassem ao primeiro plano como a ciência social mais importante.

Das ideologias tecnocráticas à cultura fragmentada.

Todas estas trajetórias têm um traço comum. Em um primeiro momento, com a expansão das oportunidades educacionais, a ampliação dos estratos médios e a atenuação das ilusões tecnocráticas, entra em declínio intelectual universitário como intelligentsia. e se inicia um período de afirmação progressiva dos direitos e privilégios das profissões. Organizados em conselhos e associações profissionais, os médicos deixam de se preocupar tanto com a cura dos males da sociedade, e mais com as práticas médicas populares, que passam a ser proibidas e controladas; os advogados afastam os antigos rábulas, e garantem sua presença e participação em todos os atos de validade legal; os engenheiros conquistam o monopólio da elaboração de projetos de construção civil. As demais profissões, antigas ou novas, tratam de seguir o mesmo modelo, cada qual buscando definir e garantir seu pedaço do mercado de trabalho, com os direitos, monopólios e mecanismos de controle correspondentes. É possível que este tenha sido o período em que mais se acentuou o caráter profissional, técnico e especializado das profissões universitárias, que passaram a atrair um número cada vez maior de filhos de imigrantes e de pessoas de estratos sociais mais baixos, buscando garantir, pela educação, um lugar definido e estável na sociedade.

A etapa seguinte é a dos tempos mais recentes, da educação superior de massas. Agora, as profissões tradicionais e suas estruturas universitárias passam a uma posição defensiva, com ameaças vindas de vários lados. O profissional liberal autônomo entra em declínio, e é substituído cada vez mais por profissionais assalariados do governo ou de grandes corporações privadas. Ao mesmo tempo, novas profissões são criadas, e normas legais são buscadas para definir os campos de conhecimento e os direitos legais específicos de administradores, jornalistas, estatísticos, nutricionistas, e tantos outros aspirantes ao status já declinante das profissões liberais, levando a um paroxismo na organização corporativa do mercado de trabalho, que se reflete na burocratização e rigidez dos conteúdos dos cursos universitários. No passado, as universidades eram lugares privilegiados para os filhos das elites, e o professor universitário, mesmo se não era um acadêmico, era um membro prestigiado de uma profissão liberal, e transmitia para seus estudantes não só os conteúdos, mas também as atitudes e valores típicos de sua posição social. Hoje, as escolas profissionais se multiplicam, novas profissões disputam o mercado de trabalho das antigas, e o ensino superior está inundado de pessoas vindas de famílias com pouca ou nenhuma tradição educacional prévia, não só entre os estudantes, mas também entre os professores. Cursos e universidades inteiras se constituem como meros simulacros do diz a letra de seus currículos e programas, e, na medida em que aumenta a distância entre as aspirações dos estudantes e as limitações da educação que recebem e das possibilidades profissionais que encontrarão, cresce a anomia e a falta de perspectivas, que se transmutam muitas vezes em uma cultura de reivindicações imediatistas e de protestos. Professores, alunos, autoridades universitárias e governos acabam desenvolvendo entendimentos totalmente divergentes sobre as instituições universitárias onde convivem, falam linguagens distintas e mantêm diálogos de surdos, apesar de usarem freqüentemente as mesmas palavras.

Esta massificação e fragmentação da cultura universitária, que afeta sobretudo a grande periferia dos sistemas universitários tradicionais, vem acompanhada do surgimento de novas especialidades e formas de organização do trabalho que ocorre em seu próprio centro, rompendo com as divisões clássicas entre disciplinas, profissões e suas culturas específicas. Não só a pesquisa é cada vez mais interdisciplinar, tornando sem sentido as barreiras entre departamentos e institutos acadêmicos, como que o próprio mercado de trabalho se diferencia, com novos especialistas oferecendo serviços que rompem os moldes das antigas especialidades. Estes duas tendências, no núcleo central e na periferia dos sistemas universitários,, caracterizam um duplo processo que vem ocorrendo em todas as sociedades modernas, como resultado da expansão do ensino superior e da disseminação da pesquisa, da indústria e dos serviços de base científica e tecnológica.

Por uma parte, os sistemas educacionais massificados não têm como transmitir os conteúdos técnicos e valorativos da mesma maneira que o faziam quando a universidade era pequena e de elite. Países pequenos e homogêneos podem não sentir o problema tão fortemente quanto países grandes e heterogêneos como os Estados Unidos, Brasil, Índia ou Indonésia. Os sistemas educacionais nestas sociedades de massa são como colchas de retalho de tradições culturais e sistemas de valores entrecruzados, que não poderiam tornar-se homogêneos pela simples transmissão de conteúdos educacionais padronizados na sala de aula, mesmo que suas escolas tivessem um bom desempenho e dispusessem de bons professores e equipamentos, o que na maioria das vezes não acontece. O que chega à maioria dos estudantes, em nome da ciência e das humanidades, é fragmentário, difícil de aprender e com freqüência destituído de sentido, tanto para os alunos como para os professores. Reações comuns são, primeiro, as tentativas de substituir a formação científica ou humanística geral pela formação profissional especializada, supostamente mais prática, mas claramente inadequada em relação às exigências de conhecimento das sociedades contemporâneas; e, segundo, a busca de cursos voltados à construção de identidades coletivas e de cosmogonias mais simples do que aquelas proporcionadas pela difícil e incerta estrada da ciência. Se estes conhecimentos não estiverem disponíveis dentro das instituições de educação formal, eles podem ser encontrados nos meios de comunicação de massas e em outros lugares. O resultado é a combinação de perfis profissionais empobrecidos e estreitos com visões de mundo "alternativas" que vão desde a busca da sabedoria oriental à elaboração mapas astrológicos por computador, passando pela medicina homeopática e pelos alimentos 'orgânicos' e semi-mágicos. Em geral, essas cosmogonias e estilos de vida alternativos não exigem a rejeição dos produtos da tecnologia avançada, dos automóveis e motocicletas aos sistemas de vídeo, ou ao uso de informação computadorizada e bancos de dados. É conhecido, na ltieratura antropológica, o fenômeno do "culto da carga", formas de religiosidade primitiva em que certas tribos construíam altares na forma de aviões, e rezavam para que os deuses mandassem alimentos e outros produtos por paraquedas(32). Este culto da carga está mais próximo da realidade educacional das sociedades modernas do que se supõe.

No outro extremo, novas formas de trabalho intelectual e profissional rompem os procedimentos e as tradições do passado, a partir de um pragmatismo de resultados práticos inegáveis, mas de institucionalização e permanência problemáticos:
Just when the university has become a more powerful centripetal institution, the knowledge which is its chief commodity has become diffuse, opaque, incoherent, centrifugal. This has taken three forms. The first is the ceaseless subdivision of knowledge of greater scientific sophistication. Many of today's more creative subdisciplines have been formed by associating previously unconnected fragments of other disciplines. These new fields of enquiry tend to be volatile and parochial, both qualities which undermine the idea of a broader and coherent intellectual culture. The second is that wider definitions of knowledge have come to be accepted, party because of the erosion of older ideas of academic respectability and partly because of the impact of new technologies. New disciplines have entered the curriculum of the extended university as taboos have tumbled, while technology has not only created new professions which demand new skills but radically affected what is possible in established disciplines. (...) The third form of desintegration is the deliberately decentred diversity and incoherence associated with postmodernism. Postmodernism has become a kind of sub-intellectual patois. Certainly it has become a formidable publishing industry on its own right(33)
Este processo de diferenciação e fragmentação contínuas do ensino superior é irreversível. Clifford Geertz, que tem se dedicado como poucos aos problemas da diversidade e das possibilidades de integração entre culturas, tanto em sociedades tradicionais quanto modernas, nos diz que
A esperança, tão difícil de morrer, de que possa surgir novamente (supondo que tivesse existido um dia) uma alta cultura integrada, ancorada nas classes educadas e definindo as normas intelectuais para a sociedade como um todo, deve ser abandonada, em favor de uma ambição muito mais modesta, a de que intelectuais, artistas, cientistas, profissionais e (podemos ter esperanças?) administradores que são tão diferentes, não somente em suas opiniões, nem mesmo em suas paixões, mas no próprio fundamento de suas experiências, possam começar a encontrar algo circunstancial para dizer-se uns aos outros(34).
E mais adiante:
O que marca a consciência moderna, como tenho dito até a exaustão, é sua enorme multiplicidade. A imagem de uma orientação, perspectiva ou Weltanschauung geral, derivada dos estudos humanísticos (ou científicos) e dando forma à cultura é uma quimera. A base de classe para este "humanismo" unitário não existe mais, tendo desaparecido junto com outras coisas como banheiros adequados, ou táxis confortáveis; mas, mais importante do que isto, desapareceu o acordo que antes existia sobre os fundamentos da autoridade intelectual, a respeito de livros antigos e de maneiras ainda mais antigas.
A "cultura geral", nos diria Geertz em uma linguagem que não é sua, antes de ser uma realidade intelectual e conceitual, é um fenômeno de classe, associado a elites homogêneas e hegemônicas. Em suas próprias palavras, as diferenças entre as disciplinas não são apenas de objeto, método, técnica, tradições intelectuais e coisas do estilo, mas atingem o próprio marco de nossa existência moral. É por isto que "a concepção de um 'novo humanismo', a tentativa de forjar uma ideologia geral 'do melhor que tem sido pensado e dito', e de colocar tudo isto em um currículo, é não só implausível, mas totalmente utópica. E também, possivelmente, um pouco preocupante".

Resta saber se o saldo deste processo é positivo ou negativo. A organização do conhecimento e das atividades profissionais em disciplinas acadêmicas e profissões bem delimitadas e protegidas provou ser, historicamente, um mecanismo bem sucedido de desenvolvimento de novas idéias e de preservação de tradições de trabalho sem as quais o conhecimento não pode progredir. Estas estruturas, porém, serviram também para restringir a criatividade e preservar monopólios de renda e de privilégios nem sempre justificáveis. Na América Latina, onde as profissões tradicionais nunca chegaram ao mesmo nível de consolidação interna de seus modelos europeus, é possível que os prejuízos dos monopólios tenham sido maiores do que os benefícios da autonomia e da autoregulação profissional. No outro extremo, a expansão desregulada das oportunidades educacionais, com todas as suas distorções, serve de qualquer forma para transmitir conhecimentos e hábitos de trabalho que de outra forma não existiriam. Se o resultado deste processo for uma população mais exposta à educação superior do que antes, e a substituição dos mecanismos tradicionais de compartimentalização do mercado de trabalho profissional por benefícios associados de forma mais explícita ao desempenho e à competência, então não há dúvida de que o saldo foi positivo. Mas a cultura universitária continuará fragmentada, e há que aprender a conviver com esta realidade(35).



Notas

1. Jaksic e Serrano, 1990. Ver também Serrano, 1994.

2. Halperin Dongi, 1962, p. 17.

3. Barros, 1959; Paim, 1982; Lisboa, 1993; Schwartzman, 1991b, 1993b; Sampaio, 1991.

4. Paim, 1982, p. 18-19.

5. Ver Ben-David, 1971, sobre as diferentes tradições intelectuais e pedagógicas dos principais centros universitários europeus.

6. Para esta comparação, veja Schwartzman, 1980, capítulo 4.

7. Sobre estas diferentes tradições, ver Ben-David, 1977.

8. O que se segue é tomado, em boa parte, de Schwartzman, 1991c.

9. Carvalho, 1978.

10. Ver a respeito Costa, 1978. Enquanto interpretação fechada, abrangente e formal do sistema social, esta doutrina apresenta grande similaridade com as visões funcionalistas mais extremas da sociologia parsoniana, uma aproximação que pode ser mais do que simples coincidência, e que mereceria uma pesquisa mais profunda, que examinasse inclusive os materiais de ensino dos cursos que oficiais superiores brasileiros seguiram nos Estados Unidos no período de pós-guerra. Claramente não parsoniana, no entanto, foi a colocação da organização militar como guardiã insubstituível dos "objetivos nacionais permanentes", que seriam apreensíveis pelo exercício da racionalidade técnica, e por isto fora do alcance dos leigos.

11. A modernização forçada do Rio de Janeiro inspirou-se diretamente na renovação de Paris por Haussman, e, sob muitos aspectos, teve implicações semelhantes. Veja, sobre a modenização de Belo Horizonte, Bomeny, 1994. Para o Rio de Janeiro, Needel, 1984; sobre Brasília, Holston, 1986.

12. Depois do levante comunista de 1935, só os exemplos fascistas continuaram aceitáveis; depois de 1945, nem estes, mas as idéias dos anos 30 persistiriam, à esquerda e à direita do espectro político.

13. A Universidade do Rio de Janeiro, sob o nome de Universidade do Brasil, deveria ser o modelo que seguiriam todas as instituições de ensino superior do país. Quase toda a energia, porém, era destinada ao planejamento físico de suas edificações, a serem construídas próximo à Quinta da Boa Vista. As maquetes do projeto Piacentini chegaram a ser expostas no Rio de Janeiro, mas a guerra impediu que a obra fosse executada. Ver Schwartzman, Bomeny e Costa, 1984, 93-105.

14. Carta a Gustavo Capanema, outubro de 1945. CPDOC/FGV, Arquivo Gustavo Capanema, GC/Costa, L., doc. 1, série b.

15. A atuação deste tipo de empresário, e seu confronto com as vertentes mais nacionalistas e estatizantes da tecnocracia brasileira, podem ser captados de forma embrionária nos dilemas que acompanharam a criação do Instituto Nacional de Tecnologia no Rio de Janeiro. Veja a respeito Schwartzman e Castro, 1984.

16. Veja a respeito Costa, 1971.

17. Estas idéias, derivadas dos textos e da militância de J. D. Bernal na Inglaterra, e de Pierre Juliot-Curie na França, eram objeto de grandes polêmicas na Europa, mas foram transpostas para o Brasil sem maiores discussões.

18. O que se segue se baseia em Machado e outros, 1978. Sbore a revolução médica de Pasteur, ver Latour, 1984.

19. Nina Rodrigues foi um escritor prolífico, deixando vasta obra e muitos discípulos, dos quais o mais conhecido, provavelmente, é Artur Ramos (Ramos, 1943-1947). A essência das preocupações de Nina Rodrigues transparece no título de um livro em francês que nunca chegou a concluir, La Degenérescence Psychique et Mentale chez les Peuples Métis des Pays Chauds. Fora do Brasil, ficou muito conhecido seu livro The Africans in Brazil, publicado em 1945 a partir da edição brasileira de 1932.

20. Stepan, 1991.

21. Sobre a evolução do ensino jurídico no Brasil, ver Venâncio Filho, 1977; sobre a participação Politica dos bachareis, ver Abreu, 1988.

22. Trubeck, 1971; Falcão, 1984; Faria, 1987.

23. Viana 1949.

24. Veja, entre outras referências, Martins, 1986; Pécault, 1990; Miceli, 1979.

25. Mariani, 1982.

26. Dois nomes se destacam entre os norte-americanos que vieram para a Escola de Sociologia, deixando uma influência significativa: Emílio Willems e Donald Pierson, que deixou entre outras coisas um levantamento ainda válido da literatura sociológica brasileira até então. Pierson foi também autor de um dos mais difundidos livros-texto sobre metodologia de pesquisa no Brasil. Willems, 1947; Pierson, 1945 e 1977. Para uma discussão geral, ver Oliveira, 1986.

27. Uma seleção de artigos dos Cadernos de Nosso Tempo encontra-se republicada em S. Schwartzman, 1981. Sobre o ISEB, ver Toledo, 1978.

28. Não é por acaso que Alberto Guerreiro Ramos, uma das figuras mais conhecidas do grupo, tenha sido o principal responsável pela "redescoberta" dos intelectuais do pré-guerra na década de 50 (Ramos 1957). Outros nomes importantes do grupo eram Hélio Jaguaribe, sua figura central; e Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Celso Furtado, Cândido Mendes de Almeida, e vários outros.

29. Veja a respeito Simonsen e Gudin, 1977.

30. Nunes, 1984.

31. Furtado, 1985.

32. Worsley, 1957.

33. Gibbons e outros, 1994, p. 83.

34. As referências abaixo são traduzidas com certa liberdade de Geertz, 1983, p. 160-161.

35. Veja, para uma discussão ampla, Brunner, 1988.