América Latina: Universidades em Transição

Simon Schwartzman

Publicado em castelhano como América Latina: Universidades en Transición. Washington, Organización de los Estados Americanos, Colección INTERAMER, nº 6, 1996


Capítulo 3: Expansão

Os sistemas de ensino superior na América Latina experimentaram expansão vertiginosa entre a década de 50 e a crise econômica dos anos 80. Em volume de matrículas, a região passou de cerca de 270 mil alunos para mais de 7 milhões, o que elevou a taxa regional bruta de escolarização de nível superior de menos de 2 por cento em 1950 para cerca de 18 por cento em 1990 (quadro 1). A rede física de ensino superior, por sua vez, aumentou de cerca de 75 instituições, a maioria de caráter universitário e financiada com recursos públicos, para cerca de 3.690 instituições, das quais menos de 700 têm caráter universitário e mais da metade são particulares e auto-financiadas.(1) Esta expansão foi um fenômeno universal, que colocou vários países da América Latina em patamares equivalentes aos da Europa e da Ásia, como indica o quadro 2.

Quadro 1- Matrículas e Taxas Brutas de Escolarização Superior*
Países 1950 1990
matrículas TBES matrículas TBES
Argentina 82.531 52 1.077.212 399
Brasil 51.100 10 1.540.000 113
Colombia 10.632 10 474.787 142
Chile 9.528 1.7 255.358 206
México 35.240 15 1.310.835 140
*TBES: percentagem de escolarizados em relação à população na idade escolar respectiva.
Fonte: Brunner, 1994, baseado em diversas fontes.

Quadro 2 - Matrículas de Terceiro Grau por 100.000 habitantes
Países 1975 1985 % de expansão
Argentina
Bolívia
Brasil
Colombia
México
Uruguai
Venezuela
2.291
1.019
1.009
760
934
1.153
1.686
2.768
1.693
1.009
1.392
1.529
2.558
2.559
20.8
66.1
0.0
83.2
63.7
124.50
51.8
China
Coréia
Indonésia
Malásia
Filipinas
54
903
205
266
1.808
168
3.576
600
599
3.621
211.1
296.0
192.7
125.2
100.3
Alemanha (RFA)
França
Itália
Bélgica
Portugal
1.684
1.971
1.749
1.735
846
2.546
2.362
2.065
2.499
1.112
51.1
19.8
18.1
44.0
31.4
Fonte: Souza, 1994.

O ritmo da expansão variou, chegando, inclusive, a apresentar períodos de reversão, com forte contração das matrículas, como foram os casos do Chile (25% de queda) e da Argentina (20%) durante o auge das ditaduras militares. Nos demais países, a expansão se acelerou na década de 70, sendo que na Argentina, Chile e Brasil o processo começou na década de 60. No México, a expansão continuou nos anos 80, quando se esgotou a capacidade de financiamento do crescimento da rede pública e se iniciou a expansão da rede particular. Argentina e Chile retomaram a expansão na década de 80, com a "normalização" instituída pelo presidente Raul Alfonsin, na Argentina, e com a reforma educacional iniciada em 1980 no Chile pelo governo Pinochet, e retomada em novos termos pelo governo civil. No Brasil o numero de estudantes de nível superior se estabiliza a partir de 1979, e na Colombia a expansão também perde ímpeto a partir de meados dos anos 80.

Causas: urbanização e ampliação das oportunidades

Esta expansão respondeu a um processo mais geral de crescimento populacional, urbanização, expansão dos estratos médios e a maior participação de mulheres da força de trabalho e na educação. Jorge Balán mostra que a população da América Latina pulou de 155 milhões em 1950 para 352 milhões em 1980(2). Como a faixa etária correspondente ao alunado de ensino superior situa-se em torno de 10% da população, estamos na verdade falando de 15 milhões em 1950 e 35.2 milhões trinta anos depois. Balán explora várias alternativas para estimar o crescimento da demanda por ensino superior:
Latin America urbanized very rapidly during this period, so that the population in cities of 20,000 and over jumped from 29% to 47% of the total population. Accepting this rather narrow definition, young urbanites who might have aspired to higher education were approximately 4.5 million in 1950 and 16.54 million in 1980. The size of the urban nonmanual labor force is a good estimate of the amount of jobs, at each date, available to those who actually considered entrance into a higher education institution for further training. According to estimates based upon six major Latin American countries, nonmanual jobs made up around 28% of the nonagricultural labor force in 1950, while the corresponding figure for 1980 was somewhat over 37%. We do not know how this distribution varied by age, but it seems acceptable to use it as a rough indicator of urban job holders to be replaced by the new generation with postsecondary education. According to the new estimates, the number of young urbanites was 1.26 million in 1950 and slightly over 6 million in 1980. In other words, population growth, urbanization, changes in occupational structure, and integration of females into the nonmanual labor force, taken together, would lead us to expect a jump in the total demand for higher education from around 880 thousand to 5.5 million between 1950 and 1980 in the twenty Latin American republics. The enrolment estimates for those dates show, in fact, that the system grew at a slightly faster pace, even if the figures are not much off the mar: Levy estimates a total of 403 thousand students for around 1955 and 4.48 million for 1980(3).
Balán nota que há uma proporção da variância do crescimento das matrículas que continua inexplicada pelos fatores considerados. Ele sugere duas variáveis independentes adicionais. Primeiro, o aumento desde 1950 da oferta de empregos que requerem mais anos de estudos, cujo acesso se restringiu aos portadores de diplomas de nível superior. Um grande número dessas novas posições estão no próprio setor educacional, onde a formação de professores, assim como a promoção na carreira, passou a requerer titulação pós-secundária. As burocracias públicas e o setor privado também passaram a definir novas posições não-manuais com níveis de remuneração vinculados às credenciais obtidas pela educação formal, afetando com isso a demanda por educação. Em segundo lugar, Balán menciona a expansão e diversificação da oferta de educação pós-secundária, inclusive através de cursos de especialização e de curta duração que atendem a um publico diversificado. Finalmente, há que considerar um fenômeno novo, que foi o ingresso de adultos, homens e mulheres fora da faixa etária convencional em cursos de terceiro grau, seja para melhorar sua inserção no mercado de trabalho, seja por outras razões.

Em geral, é mais fácil criar lugares em escolas superiores (principalmente quando a qualidade não é a principal consideração) do que oportunidades efetivas de emprego e renda no sistema ocupacional, e como muitos anos se passam entre o momento em que um estudante busca a universidade e o momento em que ele deve se confrontar com o mercado de trabalho, o ensino superior se expandiu com mais velocidade do que a capacidade de absorção de seus formados pelo sistema ocupacional, pelo menos nos níveis desejados. Daí as frustrações, refletidas em altas taxas de abandono de muitas carreiras, apesar de que as vantagens comparativas de quem tem alguma educação superior, em relação a quem não tem, tivessem se mantido.

Na Argentina, parte significativa da expansão das matrículas no ensino superior se deu através do inchamento das universidades públicas, sem que se tivessem implementado reformas que garantissem a qualidade da formação oferecida. A principal inovação, em meados da década de 80, foi a criação de um ciclo básico comum a todas as carreiras, que funcionou como um mecanismo interno de seleção para os niveis posteriores. No Brasil são conhecidas as altas taxas de abandono dos cursos de ciências, tanto naturais quanto sociais, que chegam freqüentemente à casa dos 50%. No México como um todo, cerca de 60% dos alunos jamais completam os quatro anos de curso e apenas 20% cumprem todos os requisitos para a licenciatura. O mercado de trabalho, no entanto, tem conferido um diferencial aos que entram na universidade. Um estudo recente observa que
"Growth of higher education opportunities has meant for many little more than the chance to enroll. Severe dropout after the first semesters still limit the percentage of students completing the four-year course to a decreasing rate of less than 60 percent. In addition, fulfillment of all graduation requirements has been constantly low, about 20%. There are important differences according to specific professions. (...) Achieving a higher education professional training, even if it is just one or two semesters, still plays a significant role in employment in two ways: it offers a better probability for incorporation in the formal sector, although on a devaluated basis, and there seem to be clearly segmented tracks to different kinds of employment according to the type of institution."(4)
Desigualdades no acesso

A expansão das cidades e dos estratos médios que ocorreu na América Latina a partir dos anos 50 fez parte de um intenso processo de mobilidade social, com milhões de pessoas se transferindo do campo para as cidades, adquirindo mais educação e aumentando seus níveis de renda. Este processo foi bem estudado no Brasil por José Pastore (1979, 1986, 1992), que mostra com clareza tanto a extraordinária mobilidade ocorrida nos anos 70 como a estagnação que teve lugar a partir dos anos 80. Esta mobilidade, como seria de se esperar, beneficiou a alguns grupos mais do que outros. Na corrida pelas novas oportunidades, a posse de um título universitário dava uma vantagem importante, em termos de renda, prestígio social e de garantia de estabilidade, em sociedades marcadas por grandes incertezas. Este benefício adicional porporcionado pelo ensino superior, mesmo quando de má qualidade, e até mesmo quando incompleto, aparece na literatura econômica em termos da "taxa de retorno" associada aos investimentos em educação(5). Nem todos os grupos sociais têm igual acesso a este benefício, e diferentes carreiras e níveis de desempenho também geram diferentes benefícios. Ainda que não existam informações sistemáticas sobre estas diferenças, existem algumas informações importantes sobre o ocorrido.

A expansão fez com que as universidades latinoamericanas deixassem de ser exclusivamente masculinas, e incorporassem um numero bastante significativo de mulheres, que chegaram a 50% ou mais das matrículas em vários países. As desigualdades, no entanto, permaneceram na distribuição dos gêneros entre as diferentes áreas de conhecimento. As carreiras técnicas, como a engenharia, continuam sendo predominantemente masculinas, enquanto que a educação e as ciências sociais têm o predomínio de mulheres. Estas diferenças estão se reduzindo em muitos casos, com o grande número de mulheres que entram nas profissões de saúde, inclusive médicas, e também em carreiras como administração e direito. No México, em 1988, 40.6% das matrículas eram de mulheres, variando entre 14.5% nos estudos de agricultura e 19.6% na área tecnológica até 59% nas humanidades, e 53% na área médica(6). Na Argentina, a percentagem de mulheres no ensino superior evoluiu de 35% a 53% entre o início dos anos 60 e 1986, com forte concentração nas instituições não-universitárias, que são em geral escolas de formação para o magistério (78%)(7). No Brasil, 52.3% das matrículas universitárias eram femininas em 1991.

Ainda que a expansão do ensino superior desse oportunidades a grupos sociais que antes não tinham acesso a ela, permanece uma forte correlação entre a renda, e principalmente a profissão e a educação da família, e as oportunidades educacionais dos filhos. Dados da década de 80 mostravam que, na América Latina, pessoas que trabalhavam no campo estavam três vezes menos representadas no ensino superior do que na população, enquanto que pessoas em atividades letradas (white collar) estavam representadas três vezes mais. Esta proporção é semelhante à da África francofona, e contrasta com os países da OECD, onde as proporções são, respectivamente, 0,9 e 1.6%(8). No Brasil, 78.6 dos estudantes de nível superior no Brasil são brancos, contra somente 1.4% de negros(9).

Mais ainda, renda e educação da família são fortes determinantes da oportunidade de acesso à educação superior de melhor qualidade. No Brasil, os cursos melhores e mais valorizados estão geralmente em universidades públicas, que requerem exames de ingresso somente acessíveis e estudantes que tiveram uma educação secundária de qualidade, geralmente privada. Em outros países, como no México e Argentina, a educação de qualidade se dá geralmente em instituições privadas, que cobram preços inacessíveis para pessoas de menos recursos.

As diferenças de acesso podem ser vistas em datalhe com dados da Universidade de São Paulo, considerada a melhor do Brasil. O quadro 3 mostra algumas características sócio-econômicas de seus alunos, conforme pesquisa realizada em 1991. Chama a atenção não só a alta seletividade social da universidade, como também as grandes diferenças que existem entre as diversas carreiras. Além dos filhos das famílias de renda e educação alta, a universidade também abre oportunidades para famílias que resolvem investir intensamente na educação de seus filhos; neste sentido a Universidade continua cumprindo seu papel como canal de mobilidade social através do mérit É notável, neste contexto, a grande presença de filhos de imigrantes recentes de origem japonesa nas engenharias(10).

Quadro 3 - características sócio-econômicas de alunos da Universidade de São Paulo.
  Engenharia Física Pedagogia, Enfermagem Ciências Sociais, geografia Total
% de homens 92,1 82,1 11,9 53,9 53,9
Origem Social (percentagens na vertical):
Brasileira 32.9% 45.9% 46.0% 47.2% 42.9%
Japonesa 32,5 11,6 9,1 8,5 15,7
Italiana 10,8 16,9 13,1 13 13,3
outro, europeu 12,5 19,3 19,3 22,2 19,4
judáica 3 2,9 3,4 3,5 3,2
afro-brasileira 0 0,5 1,1 1,1 0,7
outros 8,3 2,9 8 4,5 4,8
Ocupação do pai (percentagens na vertical):
Empresário, mais de 10 empregados 16.3% 5.7% 10.8% 13.9% 12.0%
Profissionais liberais 21,7 13,5 10,2 15,1 15,5
Funcionários Públicos 33,7 41,6 40,3 38,1 38,2
outras ocupações 28,3 39,2 38,7 32,9 34,3
Fonte: USP/NUPES, Pesquisa sobre a Trajetória Acadêmica dos Alunos da USP, 1992

O melhor preditor da escolha de carreira é a educação dos pais, por um lado, e o sexo dos estudantes, por outro, tal como indicado no quadro 4. Filhas de famílias com menos educação procuram cursos femininos de pouco prestígio, como enfermagem, pedagogia e geografia; filhos homens de famílias mais educadas procuram as profissões técnicas, com as engenharias e a física(11). Visto do ângulo das carreiras, os dados são ainda mais reveladores: 65.2% dos alunos de engenharia da produção vêm de famílias com educação superior, contra somente 17.4% das alunas de enfermagem, e 18.5 dos alunos de geografia.

Quadro 4: Escolhas profissionais, por educação do pai e sexo (Universidade de São Paulo, 1992) (percentagens na vertical).
  Pai com educação primária Pai com educação secundária Pai com educação superior
Filhos homens Filhas mulheres filhos homens filhas mulheres Filhos homens Filhas mulheres
Engenharia Elétrica 18,6% 0,0% 25,4% 1,7% 37,4 4,5
Física 32,9 7,1 32,7 10,3 26,1 12,7
Pedagogia 7,1 26,8 2,2 27 2,2 24,5
Ciências Sociais 12,9 21,4 14,3 23 12,2 30
Engenharia da Produção 1,4 0 7 1,7 15,8 7,3
Enfermagem 2,9 26,8 0 22,4 0,5 10
Geografia 24,3 17,9 18,4 13,8 5 10,9
Fonte:USP/NUPES, Pesquisa sobre a Trajetória Acadêmica dos Alunos da USP, 1992.

Diversificação: o público e o privado

Se as demandas por educação superior cresceram de forma semelhante em todos os países, as respostas obedeceram a padrões distintos. Na Argentina e México as universidades públicas cresceram para acomodar as novas demandas, chegando a incorporar centenas de milhares de estudantes nas universidades nacionais, que se transformaram nas maiores do mundo em número de matrículas. No Brasil, Colômbia, e Chile, os sistemas públicos cresceram pouco, abrindo espaço para o setor privado, e também para o surgimento de novas instituições públicas de ensino superior fora das capitais (quadro 5).

Quadro 5 - Evolução das matrículas em estabelecimentos públicos e privados
País Anos Total das Matrículas taxa de crescimento total Matrículas em instituições privadas % matrículas privadas sobre o total
Argentina 1970 274634 100 47673 17%
1982 550556 200 120101 22%
1991 1077212 393 159475 15%
Brasil 1970 430473 100 236760 55%
1980 1345000 312 852000 63%
1989 1570860 365 943276 60%
Chile 1970 76979 100 26229 34%
1980 118978 155 43769 37%
1990 249482 324 130817 52%
Colômbia 1970 85560 100 38942 46%
1981 306269 358 180635 59%
1989 474787 555 271351 57%
México 1970 188011 100 27276 15%
1981 785419 418 118999 15%
1990 1078190 573 187124 17%
Fonte: Brunner, 1994, diversas tabelas.

O sentido da distinção entre o público e o privado é mais complexo do que pode parecer à primeira vista(12). O entendimento que existe a este respeito na América Latina ainda está muito vinculado à antiga oposição francesa entre a educação pública e leiga, considerada como democrática e progressista, e a educação religiosa e privada, dependente da Igreja Católica, e considerada como aristocrática e conservadora. Em poucas regiões na América Latina, no entanto, esta separação entre Estado e Igreja ocorreu com a mesma nitidez, com o setor público assumindo efetivamente as funções de provedor da educação pública em todos os níveis. No Chile e na Colômbia, as universidades católicas permaneceram como elementos importantes dos sistemas acadêmicos, ocupando lugar de preeminência ao lado das universidades nacionais.(13) No Brasil, houve uma tentativa na década de 30 de criar uma universidade nacional sob a direção e orientação da Igreja Católica, dentro de um pacto político entre a Igreja e o governo autoritário de Getúlio Vargas(14). Com o fracasso deste entendimento, no início dos anos 40, a Igreja partiu para constituir suas próprias universidades, só então aproximando-se, assim, do modelo das universidades católicas privadas. O ensino superior privado, no entanto, já vinha se expandindo desde o início do século.

O lado religioso do ensino superior privado é hoje de pequena importância na região, e mesmo as universidades católicas conservam pouco de seu conteúdo confessional. Os sistemas de ensino privado se expandiram, nas últimas décadas, seguindo duas linhas principais. Onde o sistema público não cresceu, ou cresceu pouco, e o ingresso às universidades governamentais ficou condicionado a mecanismos seletivos, o ensino privado se expandiu para atender aos estudantes excluídos. Seu público tem em geral pior educação secundária do que o do setor público, e o que pode pagar pelo ensino privado não é muito. Com estudantes mal formados e poucos recursos, as universidades privadas oferecem uma educação no melhor dos casos simplificada, tanto em seu conteúdo quanto em sua pedagogia. A maioria dos estudantes destas instituições têm que trabalhar, e por isto os cursos tendem a ser dados à noite, e as exigências devem ser ajustadas ao tempo limitado dos estudantes.

No outro extremo, onde as universidades públicas se expandiram, sua qualidade e prestígio freqüentemente caíram, e a politização de suas atividades quotidianas prejudicou ainda mais seu desempenho. Nestas situações, o ensino privado veio para substituir o ensino público de qualidade. Aqui, os estudantes já chegam com melhor educação, podem pagar mais, e exigir mais qualidade. As instituições privadas que atendem a este público tendem a fugir das áreas acadêmicas mais tradicionais, como a medicina, onde o custo das instalações básicas e da pesquisa são altos, e dar preferência a áreas como a administração e a economia. Elas incursionam, também, nas áreas tecnológicas, onde a possibilidade de conseguir apoios do setor empresarial é mais significativa.

Em nenhum país o ensino privado se restringe a um só destes extremos. No Brasil, apesar de que a maior parte do ensino privado seja do primeiro tipo, existem instituições privadas de prestígio e qualidade, como a Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Universidade Mackenzie (engenharia) e a Fundação Getúlio Vargas (administração de empresas) em São Paulo. Algumas universidades privadas preservam uma identidade religiosa, em alguns casos protestante, e outras se orientam para o atendimento às comunidades locais, com a participação de empresários e organizações de vários tipos em sua constituição. Existe, ainda, um segmento crescente de instituições que se organizam explicitamente como empresas para a venda de serviços educacionais, ainda que a legislação de muitos países ainda não permita que isto ocorra.

Diferenciação Institucional: as universidades e o ensino de terceiro grau.

A palavra "universidade" é utilizada na América Latina de maneira bastante frouxa, podendo se referir tanto a instituições complexas, que cobrem as diversas áreas de conhecimento e desenvolvem atividades de pesquisa, quanto a escolas isoladas que proporcionam um ou dois cursos de forma ritualizada e convencional. O quadro 6 apresenta um panorama de diferentes possibilidades, e o quadro 7 dá algumas informações quantitativas cujo sentido mais preciso varia, no entanto, de país para país.

Quadro 6: Dimensões de diferenciação das instituições de educação superior na América Latina
Quanto ao controle político-administrativo públicas ou privadas (que podem se dividir em confessionais, comunitárias, empresariais, e outras)
Quanto à complexidade vertical complexas, com cursos de graduação, pós-graduação e atividades de pesquisa; e simples, somente com cursos de graduação
Quanto à complexidade horizontal completas, cobrindo as principais carreiras e áreas do conhecimento, ou especializadas em um número limitado de carreiras
Quanto ao tamanho mega-universidades, com cerca de cem mil ou mais alunos; grandes, com dezenas de milhares de alunos; pequenas, com alguns milhares; e minúsculas. com algumas centenas.
Quanto ao nível dos cursos cursos de graduação convencionais ; cursos pós-secundários especializados de dois ou três anos; cursos de formação de professores para a educação básica e secundária cursos de pós-graduação.

Quadro 7 - Instituições de Ensino Superior na América Latina por tipo.
  Públicas Privadas Total
  Universidades outras Universidades outras Públicas Privadas N
Argentina (1993) 37 749 40 460 61.1% 38.9% 1286
Brasil (1990) 55 167 40 656 24.1% 75.9% 918
Colômbia (1991) 47 25 90 81 29.7% 70.3% 243
Chile (1993) 25 0 44 218 8.7% 91.3% 287
México (1993) 46 126 55 203 40.0% 60.0% 430
Fonte: extraído de Brunner, 1994, quadro 2, p. 55.

Se a expansão da matrícula universitária e a diferenciação dos públicos e instituições leva a uma complexidade cada vez maior, por outro lado existem pressões constantes para que estas diferenças, percebidas como hierarquias de status entre pessoas e instituições, sejam ignoradas ou minimizadas. No Brasil, para que uma instituição possa ser considerada "universitária" ela deve oferecer cursos ou carreiras nas áreas de ciências exatas, na área biomédica e nas ciências humanas e sociais (é o chamado requisito de "universalidade de campo") e capacidade de pesquisa. Mas, ainda que as instituições só tenham o status de "escolas", seus estudantes são "universitários", assim como seus diplomas, que têm igual validade desde que emitidos por instituições legalmente reconhecidas, universitárias ou não. Cursos técnicos de curta duração, mesmo quando concebidos inicialmente como não universitários, como os das escolas técnicas federais. tendem a ter sua duração e seus títulos equiparados rapidamente aos universitários, e tentativas de criar cursos de formação de professores de curta duração encontram forte oposição entre os próprios educadores, apesar da grande carência de professores na educação básica e secundária brasileiras. No México, os institutos de formação de professores também foram promovidos ao status universitário, e os institutos tecnológicos já foram criados com cursos e diplomas equivalentes aos universitários. Desde 1990 estão sendo criadas universidades tecnológicas de vocação local com cursos de curta duração, cujos resultados ainda não são mensuráveis.

No Chile encontramos o sistema que mais caminhou de um perfil unitário de ensino superior universitário para um perfil diferenciado de ensino pós-secundário. As universidades continuam encarregadas das profissões mais estruturadas, da formação científica e de boa parte da atividade de pesquisa, mas passaram por um redimensionamento de seu papel. Aquelas que tinham vários campus foram desmembradas, e com isso controlou-se o problema de gigantismo que Argentina e México enfrentam. A expansão do setor privado, especialmente nas novas modalidades de ensino pós-secundário, levou o setor universitário a uma posição de minoria numérica, embora ainda concentre quase 50% das matrículas. A Reforma de 1980 instituiu um tripé onde as universidades e o diploma de licenciatura ocupam o cume, os Institutos Profissionais, com cursos de até quatro anos e diplomas que não equivalem à licenciatura, a posição intermediária, e os Centros de Formação Técnica. com cursos vocacionais de dois anos de duração e diplomas técnicos, a base. Os resultados têm sido moderados em função de problemas de qualidade e de pouca atração exercida pelas alternativas não-universitárias. Em 1989, dos cerca de 333.000 estudantes no sistema, 156.300 (53%) estavam no nível universitário.(15)

Na Colômbia, o sistema oferece três tipos de credenciais e várias modalidades de formação pós-secundária, inclusive a de tipo open university. Entretanto, a distribuição das matrículas continua muito concentrada no segmento universitário. Na base do sistema estão as instituições profissionais intermediárias (que somam 60, sendo 51 privadas) que oferecem treinamento prático para funções como contadores, vendedores, atividades empresariais de pequeno porte, etc., dando um certificado de profissional técnico intermediário. Na posição intermediária estão os institutos de tecnologia que dão formação mais especializada, e o título de Tecnólogo ou Tecnólogo Especialista. No cume estão as universidades e os títulos de licenciatura. Há ainda uma diferença entre "universidades" (que somam 71, das quais 41 privadas) e "instituições universitárias" (que somam 60, das quais 42 privadas).(16) Dados de 1985 sobre a distribuição das matrículas mostram, contudo, a concentração da demanda no nível universitário: 319.532 alunos nas 131 instituições universitárias, contra 71.958 nas 95 instituições não-universitárias. Na Argentina, o setor não-universitário numericamente mais relevante é o de formação de professores, de composição majoritariamente feminina. Este setor inclui também as escolas militares, academias de polícia e escolas de enfermagem; todas estas áreas são, no Brasil, de nível superior.

Antigas e novas profissões

A expansão do ensino superior também significou uma grande diversificação das profissões procuradas pelos estudantes. No passado, as profissões liberais tradicionais, como o direito, a medicina e a engenharia, concentravam a quase totalidade dos estudantes. Hoje estas áreas estão em minoria, sendo largamente superadas por novas disciplinas como a administração e contabilidade. O quadro 8 mostra a distribuição das matrículas do ensino superior por grandes áreas de conhecimento nos diversos países, e o quadro 9 mostra uma distribuição mais detalhada para Brasil e México.

Quadro 8: Campos de Estudo, por grandes áreas do conhecimento.
  Argentina Brasil (1992) Chile (1989) Colombia (1984) México5 (1988)
Ciências Exatas e biológicas   11 3,8 1,2 2,4
Tecnologia/ Engenharia   9,5 33,3 14,9 26,3
Ciências da Saúde   12,1 11,4 13,7 9,8
Agropecuária   2,8 8,4 2,2 6,2
Ciências e Profissões Sociais, Direito   57,5 19,1 44,1 41,2
Letras, Artes, Humanidades, Educação   7 24 23,9 14,1
Total   99,9 100 100 105
Fontes: Colômbia: Álvares e Álvares, 1992, p. 157; México: Ibarrola, 1992, p. 471 (dados de 1988); Brasil: Dados do Ministério da Educação, 1992.

Quadro 9: Brasil e México: Distribuição das matrículas pelas principais carreiras.
  Brasil (1992) México (1988)
Educação, letras 12,7 11,2
Contabilidade 6,3 9,9
Direito 11,1 8,8
Medicina 3 5,1
Administração 11,8 3,5
Engenharia 8,7 5,1
Psicologia 3 2
Agropecuária 0,8 1,8
Economia 4,2 1,7
Ciênciasa 3,1  
Jornalismo 2,9  
Total 67,6 49,1
a normalmente licenciaturas para o ensino de segundo grau.

Esta diversificação das áreas de conhecimento tem sido interpretada tanto no sentido positivo, como um fenômeno associado à maior complexidade e diferenciação das sociedades latinoamericanas, como no sentido negativo, pelo aumento, considerado desproporcional, das áreas sociais e humanas, em detrimento das áreas profissionais mais técnicas. Na realidade, não existem critérios para se definir quantos profissionais de cada tipo - engenheiros, médicos, advogados, administradores, farmacêuticos, sociólogos - uma sociedade necessita. Sociedades que exigem, por lei, que todas as farmácias tenham um farmacêutico contratado, terão naturalmente mais "necessidade" de farmacêuticos do que outras. Sociedades que aceitam a existência de enfermeiros clínicos e outros profissionais paramédicos terão menos necessidade de médicos com seis a oito anos de formação superior do que as que mão o fazem; sociedades que exigem diplomas de comunicação para jornalistas têm mais necessidade destes profissionais do que as demais. Em toda parte, as diversas profissões buscam convencer a sociedade de sua necessidade e importância, e, pelo menos no passado, as profissões mais tradicionais têm conseguido inclusive assegurar seu espaço profissional pela força da lei. Isto não é suficiente, no entanto, para fundamentar políticas de planejamento educacional, a partir de metas quantitativas globais para as diversas áreas de especialização. Os argumentos utilizados nestas disputas por espaço se referem sempre aos interesses do público; mas as grandes diferenças que existem na maneira pela qual os privilégios e monopólios profissionais são definidos em distintas sociedades mostram que o leque de alternativas é maior do que normalmente se admite(17).

Como resultado deste processo histórico de disputa por espaço e por prestígio, algumas profissões se tornam muito mais valorizadas do que outras, e são mais procuradas pelos estudantes. Quando a demanda é grande, surgem mecanismos seletivos, seja através de exames de ingresso nas universidades, seja através de filtros que se estabelecem ao longo dos cursos. Na Argentina, a seleção para se dá ao longo do curso, e elimina na prática a grande maioria de estudantes que entram na Universidade sem condições de acompanhar as exigências curriculares. No Brasil, o número de candidatos por vagas nas universidades públicas pode ir a cinqüenta ou mais nas áreas mais disputadas.

Quadro 10: Brasil, estudantes por vaga, por tipo de instituição e área de conhecimento
  Candidatos por vaga, por tipo de instituição Total de Estudantes matriculados no país
Estaduais. Paulistas Federais Particulares Total total percentagem
Administração 18,57 9,78 2,91 3,72 187822 11,8
Ciências Contábeis 9,95 8,97 1,84 2,96 100954 6,3
Ciências Econômicas 12,4 5,18 1,36 2,21 67491 4,2
Comunicação Social 23,12 12,59 3,08 4,64 46239 2,9
Direito 28,42 19,15 6,61 8,43 177341 11,1
Engenharia 12,75 6,81 1,58 3,56 138502 8,7
Letras 5,46 3,27 0,9 1,55 89170 5,6
Medicina 57,56 23,46 23,17 25,41 47386 3
Odontologia 28,79 19,26 9,11 13,81 33125 2,1
Pedagogia 6,38 4,79 1,12 1,84 113173 7,1
outras         593465 37,2
Total 17,58 10,07 3,01 4,44 1594668 100
Fonte: calculado a partir de dados do Sistema Estatístico da Educação, Ministério da Educação.

As dez profissões listadas no quadro 10 incluem a 63% dos estudantes, que desenvolvem estratégias educacionais que dependem de uma combinação dos recursos educacionais, motivacionais, financeiros e locacionais de que dispõem. Um jovem estudante em São Paulo com excelente formação de nível secundário, condições de estudar em tempo integral e muita motivação, pode se candidatar a um lugar na Universidade de São Paulo, onde cada vaga do curso de jornalismo é disputada por 53 candidatos, e cada vaga de medicina, por 37(18). Se a formação prévia for pior, mas houver recursos, ele pode preferir o mesmo curso em uma instituição privada, ou um curso menos disputado na mesma universidade. A distribuição das preferências dos estudantes pelos diversos cursos reflete estratégias realistas deste tipo, e não uma efetiva diversificação de interesses(19), que de fato não há como mensurar a não ser diretamente. Existe uma clara associação entre a dificuldade de ingressar nas universidades do sistema estadual paulista, que é o de maior reputação e prestígio, e o grande número de instituições de ensino superior privadas que existe naquele Estado; a grande demanda por educação superior em São Paulo decorre, sobretudo, dos níveis de renda e educação relativamente altos de sua população.

No período de maior expansão, na década de 70 no Brasil, a oferta de cursos de acesso e desempenho mais fáceis cresceu enormemente, sobretudo nas áreas sociais e humanas; no período de estagnação, que ocorreu a partir dos inícios dos anos 80, os cursos de ciências sociais cederam lugar para os de administração, direito e contabilidade, que oferecem, pelo menos em princípio, uma perspectiva de profissionalização mais clara que os demais. Uma anállise detalhada mostra que, no Brasil, as carreiras criadas no período de maior expansão, do início da década de 70, tinham um número significativamente maior de mulheres matriculadas, e de cursos noturnos, do que no período anterior; enquanto que os mais recentes já retornam, ainda que não completamente, a um perfil mais tradicional também deste ponto de vista(20)

A estabilização do crescimento da educação superior no Brasil, Colômbia e México, ocorrida ao longo da década de 80, não pode ser entendida como o encerramento do ciclo histórico da expansão. Este é o caso, especialmente, do Brasil, onde a taxa de escolarização bruta é da ordem de 10%, ou do México e Colômbia, da ordem de 14%, em contraste com a Argentina, que se aproxima dos 40% (apesar da incerteza quanto à precisão deste dado). Existem vários fatores que explicam esta estagnação, entre os quais devem ser ressaltados a redução da capacidade de investimentos públicos no ensino superior, a expansão ainda incipiente da educação secundária, e a crise econômica, que fez com que diminuíssem as vantagens relativas associadas a uma educação paga e de má qualidade. Na medida em que a economia retome seu dinamismo, e a educação secundária se expanda, as pressões sobre o ensino superior serão também retomadas, assim como seu processo de diferenciação(21).

Notas

1. Brunner, 1994, p. 4.

2. Balán 1993a.

3. Balán 1991a, p. 2-3. As fontes das diversas estimativas constam do original.

4. Ibarrola, 1992, p. 471.

5. Birdsall, 1994; Psacharopoulos, 1994.

6. Ibarrola, 1992.

7. Balán, 1992a.

8. Mingat e Tan, 1986, citado por Winkler, 1990.

9. IBGE, 1993.

10. Os dados sobre a "origem social dos estudantes" devem ser interpretados com cautela. A pergunta se referia à origem dos pais até a geração dos avós, e não distingue brasileiros de raça negra ou indígena de outros brasileiros, nem os diversos grupos europeus, entre os quais os portugueses e espanhóis.

11. A pesquisa se limitou a estas carreiras, e e amostra cobriu a totalidade dos estudantes que ingressaram na USP em 1992.

12. Para uma discussão ampla, veja Levy, 1986.

13. Veja, para Colômbia, Álvares e Álvares, 1992.

14. Schwartzman, Bomeny e Costa, 1984; Schwartzman, 1985a.

15. E. Schiefelbein, 1992, p 133.

16. Álvares e Álvares, 1992, p. 154.

17. Sobre o "manpower planning" e suas dificuldades, ver Fulton e outros, 1992; sobre o mercado de trabalho como disputa entre profissões, ver Collins, 1979.

18. Guia do Estudante, 1994.

19. Estas estratégias são analisadas por Ribeiro, 1981 e Ribeiro e Klein, 1982.

20. Schwartzman, 1991.

21. Estes pontos são discutidos por Souza, 1994.