A Universidade
que não houve: antecedentes da ciência e educação superior no Brasil (uma
perspectiva comparada)(1) Simon
Schwartzman e Antônio Paim, 1976
Resumo
1. Introdução
2. Ciência e Sociedade na Europa até a entrada do século XIX
3. Os grandes temas da ciência no século XVIII.
4. As novas universidades
5. Portugal e a ciência moderna
6. A Contra Reforma
7. A Reforma Pombalina
8. A idéia de uma universidade brasileira
9. Conclusão
Bibliografia
Notas
Resumo
Uma das questões recorrentes a respeito da história cultural brasileira
é a ausência, até a década de 20, de uma Universidade no país. Esta ausência
é tanto mais notável quanto sabemos que muitos países hispano-americanos
têm suas universidades desde os primórdios da colonização espanhola, o que
é continuado e ampliado após a independência.
Para entender melhor esta questão, este artigo busca comparar o ambiente
científico e universitário da Europa (Inglaterra, França e Alemanha), na
entrada do século XIX, com o que ocorria em Portugal e no Brasil.
Em relação à Europa Ocidental, o artigo faz um sumario da historia institucional
da ciência nestes países, acentuando o papel desempenhado pelas sociedades
científicas - a Royal Society e a Academie des Sciences da França, principalmente.
A seguir é feito um sumário dos principais temas da ciência européia no
século XVIII, a partir da síntese newtoniana - o desenvolvimento da história
natural, o aparecimento das teorias evolucionistas, os fundamentos da química
contemporânea, o organicismo na Alemanha. Esta análise permite ressaltar
a existência de uma comunidade científica relativamente bem estruturada
na Inglaterra, França e Alemanha, que dá o contexto social em que a ciência
se desenvolve nesses países
A seguir é feita uma apresentação das principais transformações dos sistemas
universitários nesses países, na entrada do século XIX. Essencialmente,
as antigas universidades se transformaram em escolas profissionais modernas,
nas quais o ensino clássico é substituído pelo ensino mais técnico. Ao mesmo
tempo, a atividade científica passa a ser feita também no interior das universidades,
a partir, principalmente, da Alemanha, surgindo assim a idéia de unificação
do ensino e da pesquisa.
A análise da experiência portuguesa acentua o papel da contra-reforma no
fechamento do ambiente científico e cultural lusitano as influências da
cultura do resto da Europa Ocidental. A contra-reforma se associa à inquisição
em uma perseguição sistemática à constituição de grupos sociais que tratassem
de desenvolver uma forma independente e autônoma de pensar e pesquisar.
Este controle da Igreja sobre a sociedade se exerce também em relação à
Universidade de Coimbra, que permanece totalmente tradicional em seu funcionamento.
A resistência a esta situação surge por parte de setores mais ilustrados
da corte portuguesa, sob D. João V, aos quais se juntam alguns setores de
clero distintos dos Jesuítas, como a Ordem do Oratório. É um membro desta
congregação, Luís Antônio Verney, que coloca em questão o sistema de ensino
jesuíta, dando os fundamentos ideológicos e racionais para a Reforma Pombalina
que seria realizada pouco depois.
A Reforma Pombalina consiste, basicamente, na eliminação dos Jesuítas como
grupo dominante, e na tentativa de modernização do Estado Português como
regime absolutista, Em relação à Universidade, a Reforma trata de criar
um sistema de escolas profissionais, sem, entretanto, buscar reproduzir
o ambiente de uma comunidade científica semelhante às existentes nos demais
países da Europa.
A concepção de ensino superior e de universidade que se desenvolve em Portugal
é conseqüentemente anticlerical, mas também antiliberal, e essencialmente
anticientífica, ainda que favorável à tecnologia. O principal portador destas
idéias para o Brasil é José Bonifácio de Andrada, mineralogista de formação
européia. Ainda que o projeto de criação de uma universidade, cultivado
aparentemente por Bonifácio, não tenha sido realizado, o sistema de escolas
superiores criado a partir de D. João VI no país (1808) tem o caráter estritamante
pragmático e utilitarista que estava presente no espírito da Reforma Pombalina,
e que se mostraria extremamente resistente à implantação de instituições
de pesquisa científica no século que se seque, assim como de uma Universidade
que lhes permitissem existir.
1. Introdução
Ciência e educação superior surgem pela primeira vez, de forma organizada,
com a elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, em 1808. Antes, o único
que a historiografia registra são trabalhos de viajantes ocasionais, excetuando-se,
certamente, o que foi feito no período da ocupação holandesa do nordeste
brasileiro, quando é escrita e publicada a Historia Naturalis Brasiliae,
de MarcGrave e Guilherme Piso (1648). Mas é com a vinda da família real
portuguesa que se instalam no país as primeiras escolas superiores, e as
primeiras instituições de pesquisa: os colégios médico-cirúrgicos da Bahia
e do Rio de Janeiro (1808), o Real Horto (mais tarde Jardim Botânico) do
Rio de Janeiro (1809), a Biblioteca Pública (1810), o Real Gabinete de Mineralogia
(1810), a Academia Militar do Rio de Janeiro, que proporciona educação técnica
e de engenharia (111), e o Museu Nacional do Rio de Janeiro (1818) Este
conjunto de instituições não seria substancialmente alterado com a separação
formal entre Brasil e Portugal em 1822.
O objetivo deste artigo é examinar o contexto cultural e intelectual mais
amplo em que surgiram estas instituições. A rigor, a análise das origens
mais remotas do sistema de pesquisa científica e educacional brasileiros
deveria partir do próprio Renascimento, da Reforma Protestante e da Contra-Reforma,
que parece ter sido responsável por manter Portugal isolado da revolução
cultural e intelectual que varreu a Europa a partir dos séculos XVI e XVII,
afetando também, inevitavelmente, suas colônias. Sem irmos tão longe, no
entanto, duas coisas devem ser vistas. A primeira é a natureza das transformações
que corriam na atividade científica européia na transição para o século
XIX, paralelas a profundas alterações nos sistemas de educação superior
nos principais países europeus. A outra são as transformações no ambiente
cultural e intelectual de Portugal a partir da reforma pombalina, e que
terão uma influência decisiva sobre os desenvolvimentos posteriores no Brasil.
A rigor, esta análise deve ser vista no contexto mais amplo das transformações
econômicas e políticas do mundo de então, onde se destaca o avanço espetacular
da revolução industrial na Inglaterra, a Revolução Francesa e o esfacelamento
dos antigos impérios coloniais dos países Ibéricos. Esta história mais geral,
no entanto, é conhecida, e não precisa ser repetida aqui.
2.
Ciência e Sociedade na Europa até a entrada do Século XIX
A história institucional da ciência européia até a entrada do século XIX
é a da conquista gradual, pela ciência experimental, de uma posição central
na cultura e na visão do mundo do homem ocidental. A ciência experimental
se desenvolveu basicamente fora das universidades tradicionais, e só no
século XIX a ligação íntima entre ciência e universidade, que hoje muitos
consideram natural, ocorre de forma efetiva.
O ponto de partida deste longo processo de legitimação e ascendência talvez
tenha sido o desafio de Galileu, menos em relação ao conteúdo de suas idéias
- a de que a terra se move ao redor do sol - de que à forma pela qual as
verdades mais importantes devem ser estabelecidas - se pela autoridade dos
clássicos, referendada pela igreja, ou pela observação empírica dos fatos.
O processo a Galileu parece ter sido a ultima tentativa do establishment
religioso e intelectual da época de subordinar os achados da ciência empírica
a seus dogmas e aos produtos da razão especulativa. A partir daí, e de forma
congruente com a ética individualista do capitalismo e protestantismo nascentes,
a pesquisa científica prospera, passando de seu berço mais importante da
Itália para o solo onde mais frutificaria, a Europa Ocidental e, mais particularmente,
a França e a Inglaterra.
Esta ciência que se desenvolve nestes países não se institucionaliza, no
entanto, nas Universidades. As antigas e prestigiosas universidades européias
- as Universidades de Paris, Oxford e Cambridge, principalmente - são centros
tradicionais de estudos clássicos e formação profissional em direito e medicina,
e não atribuem senão um papel secundário à nova ciência empírica que surgia.
Na Inglaterra, o lugar de encontro dos cientistas é a Royal Society,
fundada em 1660. Seu propósito inicial, segundo seus criadores, era eminentemente
prático, experimental e técnico ou, na linguagem da época, Ato improve the
knowledge of natural things, and all useful Arts, Manufactures, Mechanick
practices, Engynes, and Inventions by Experiments. - (not meddling with
Divinity, Moralls, Politicks, Grammar, Rhethoric, or Logick)" (Mason.
1975, p. 259).
Esta declaração de propósitos no entanto, não correspondia totalmente à
realidade. De fato, poucos dos grandes cientistas da época eram inventores
de coisas úteis, e a busca de uma forma nova e original de conhecimento
do mundo, corporificada na ciência experimental da época, era a mola que
realmente impulsionava o movimento de apoio e estímulo à pesquisa científica,
do qual a Royal Society foi uma das manifestações mais importantes(2).
Com efeito, pouco antes da criação da Royal Society, a tradicional
universidade de Oxford havia sido fortemente influenciada por um grupo denominado
"Philosophical College", que incluía a Rohert Boyle (1627-1691),
um dos antecessores da química moderna, e mais nove pessoas, que se reuniam
semanalmente para a realização de experimentos e a discussão de teorias
científicas. Este grupo era fortemente politizado, de orientação predominantemente
puritana e parlamentarista, e um de seus membros, John Wilkins, um religioso
protestante, criaria naquela universidade uma "Philosophical Society",
que trataria de desenvolver a nova "filosofia experimental." A
experiência de Oxford termina em 1660 com Charles II, quando o centro da
atividade científica na Inglaterra se transfere novamente para Londres.
É este grupo que vai criar a Royal Society, que tem John Wilkins
como um de seus primeiros secretários (conjuntamente com um homem de negócios,
Henry Oldemburg). (Mason, 1975. p. 258).
Esta breve narrativa serve para ilustrar duas coisas. Primeiro, que a Royal
Society foi uma instituição criada a partir de um grupo de cientistas
que tinham uma posição definida no quadro social e político da época, ligados
que estavam a todo um movimento de reforma social que acompanhou a revolução
industrial. Segundo, que, ainda que ela se definisse como um grupo voltado
para as coisas "praticas" da vida, suas pretensões eram muito
mais amplas, já que esta perspectiva prática e experimental era a própria
filosofia nova que se articulava em contraposição a cultura tradicional
das Universidades de então.
A Academia de Ciências de Paris, criada por Colbert em 1766. tinha objetivos
explícitos também eminentemente práticos, de permitir a expansão da indústria
e comércio da França. Não era uma sociedade de amadores, como a Royal
Society, mas uma instituição de profissionais - vinte sábios mantidos
pelo governo - para resolver os problemas que os ministro reais lhes trouxessem.
O antecedente imediato da Academia de Paris foi a Academia de Montmor, que
reunia cientistas como Pierre de Fermat (1601-1665). Pascal (1623-1662),
Pierre Gassendi (1592-1653) e outros, que mantinham correspondência com
Galileu, Descartes e Hobbes. A criação da Academia Francesa como instituição
governamental de orientação prática foi desde o inicio uma "operação
de salvamento" da Academia de Montmor, que se encontrava em dificuldades
financeiras. Naquele momento. como em tantas vezes nos séculos que se seguiriam,
os cientistas convenceram ao governo de que poderiam ser úteis, de que o
país precisava deles, e obtiveram apoio.
O sucesso da Academia, no entanto, pareceria ter sido inversamente proporcional
à convicção com que seus propósitos iniciais fossem mantidos. Colbert, aparentemente,
não foi além de dar à Academia orientações muito gerais, e ela cresceu e
prosperou. Seu sucessor, no entanto, Louvois, dava aos acadêmicos tarefas
bem práticas, tais como o desenho das fontes reais ou a elaboração de jogos
de azar para o divertimento das cortes. Neste período a Academia sofre,
sendo novamente reativada e ampliada a partir de Bignon, em 1699.
Na Inglaterra como na França, pois, o surgimento das instituições científicas
tinha um propósito aparente de desenvolver uma Ciência prática e aplicada,
a serviço dos poderosos de então. Nos dois casos, entretanto, havia um grupo
de eminentes cientistas que travavam um combate contra a cultura mais tradicional
da época, representada na França pelo Ancien Régime, e
encastelada nas Universidades mais tradicionais. Esta ciência que se criava
não era, pois, um instrumento que se pretendia neutro e livre de implicações
morais, mas, ao contrário, vinha acompanhada de uma visão de mundo que acreditava
ser a nova ciência o melhor caminho para uma filosofia mais correta, uma
compreensão melhor das coisas do homem e da natureza, e uma sociedade mais
justa. Esta visão de mundo, por sua vez - que os estudiosos do período denominam
de "ideologia cientística" - era própria de toda uma camada social
que ascendia econômica, social, política e culturalmente, liderando as transformações
da sociedade européia que hoje conhecemos como "revolução industrial."(3)
O ponto alto da ciência do século XVII é a publicação, por Isaac Newton,
de sua obra mais importante, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica,
ou seja, os princípios matemáticos da filosofia natural. É uma obra que
sintetiza e coroa todo o processo de acumulação de idéias e observações
que vinha, pelo menos, desde que Galileu e Kepler começaram a aplicar a
matemática moderna ao entendimento do universo de Copérnico. O nome da obra,
e o fato de ela ter sido publicada em Latim (e só cinqüenta anos depois
em inglês) atestam a pretensão do empreendimento da ciência newtoniana,
que ia muito além de uma simples determinação empírica e utilitarista de
certos fenômenos naturais. O que pretende Newton - e o que consegue - é
um novo entendimento do universo, onde a razão se combina de forma harmoniosa
com a observação empírica sistemática . Com a síntese newtoniana, a ciência
moderna firma definitivamente sua posição de preeminência em relação à velha
cultura escolástica, em sua própria linguagem e no seu próprio estilo. E
não faltou quem estabelecesse, a partir daí, uma analogia entre a harmonia
preestabelecida do universo newtoniano e o ideal de justiça e riqueza social
a serem criados pela liberação da iniciativa individual e do uso extremado
da racionalidade, que a revolução industrial estimulava.
Chegando a seu cume, no entanto, o ímpeto da ciência inglesa parece decair.
Em 1698 Leibniz e John Wallis, então o único sobrevivente do antigo, "Philosophical
College" , se interrogam a respeito das causas da decadência da pesquisa
científica de então, ou, como eles o colocam, "the present languid
state of Philosophy" (Mason, p.280) . É possível que a própria obra
de Newton, aparentemente tão perfeita, tivesse tido um efeito paralisador
sobre a ciência experimental, qual uma arvore sob cuja sombra a vegetação
custa a brotar. Ou talvez fosse a revolução industrial, já em pleno progresso,
que estivesse atraindo os melhores talentos da Inglaterra para outras atividades.
Na agricultura, na industria de tecidos, na utilização do carvão como combustível,
nos novos métodos de mineração e transporte, de produção de ferro e aço
e, acima de tudo, com a criação da máquina a vapor, a tecnologia inglesa
se amplia e diversifica. Isto coincide com a decadência progressiva da Royal
Society, já acentuada por volta de 1750, e que começa a ser suplantada,
já em 1831, pela Sociedade Britânica para o Progresso da Ciência, de inspiração
alemã, e que serviria de modelo para suas replicas em tantos países, inclusive,
mais de cem anos depois, no Brasil.
É para a França que o eixo da ciência internacional se transfere, em meados
do século XVIII. Lá, a revolução social que acompanhou, na Inglaterra, a
revolução industrial, não se faria sem sangue. Existe uma ciência oficial
que se pretende neutra, técnica, e que é corporificada na Academia, paga,
protegida e controlada pelo Ancien Régime. E existe, ao mesmo tempo,
um movimento intelectual e cultural ao redor da ciência, uma ideologia "cientística"
em desenvolvimento, que será conhecida na historia como Iluminismo. A Encyclopédie
Francaise de Diderot e D'Alambert, publicada entre 1751 e 1777 , é
a grande obra da ciência francesa de então. Comparada com obras similares
da época, é eminentemente teórica e cultural, e não técnica e aplicada,
como suas congêneres britânicas. Lavoisier foi a figura central da ciência
francesa da época, e a existência de pensadores sociais do nível de Saint-Simon,
Proudhon e Rousseau, vinculados ao Iluminismo, confirma a orientação política
e social do movimento intelectual e científico francês (em contraposição,
a Inglaterra da época se notabiliza pela presença de uma escola econômica
de grande importância, na qual a figura central é Adam Smith). A Revolução
Francesa leva Lavoisier à guilhotina, em parte por obscurantismo (A a República
não necessita de cientistas", teria afirmado o oficial que o deteve),
em parte por suas ligações demasiado próximas com o sistema de coleta de
impostos do antigo regime. Mas a ciência francesa não tardaria em se recuperar,
e ocupar lugar preeminente no mundo ocidental durante a restauração napoleônica,
até ser superada, no decorrer do século XIX, pela ciência produzida na Alemanha.
3. Os Grandes
Temas da Ciência no Século XVIII
Estabelecida a síntese newtoniana, a passagem do século XVIII encontra a
ciência como que desprovida de um grande problema central. Em contrapartida,
ela tem um modelo a seguir. Ao mesmo tempo, o século XVIII é una época de
grande expansão econômica, do desbravamento de terras, e da implantação
progressiva de novas tecnologia.
Vale a pena uma listagem, ainda que breve, das diversas áreas de interesse
da ciência de então. Chama a atenção a presença dos naturalistas, que as
preocupavam em descrever e, na medida do possível, sistematizar os objetos
encontrados na natureza - plantas, animais e minerais. Linneus, pela primeira
vez, tenta um sistema geral de classificação destes objetos naturais, que
é particularmente bem sucedido na área da botânica. Desenvolvida inicialmente
como uma forma de organizar a informação, a sistemática de Linneus não tarda
em surgir, no ambiente intelectual francês, como base para o Système
de la Nature de Buffon, uma tentativa de ordenamento dos fenômenos
da natureza dentro da inspiração newtoniana. A continuação das pesquisas
extensivas e dos esforços de sistematização permitem, já no século XIX,
o surgimento das teorias evolucionistas de Charles Darwin, cuja influência
ainda hoje persiste.
A observação dos objetos naturais leva inevitavelmente a teorias sobre o
desenvolvimento da terra, igualmente inspiradas pelos princípios da harmonia
universal preestabelecida. Confrontada pelas teorias dos "catastrofistas",
que não têm como deixar de observar a existência de sinais de grandes convulsões
e eventos dramáticos na crosta terrestre, esta concepção é defendida pela
"teoria uniformitária" do escocês James Hutton (1726-1797) , cuja
obra é popularizada por Lyell já no século XIX, e contribui para a síntese
evolucionista de Darwin. Combatido, à direita pelo conservadorismo (que
encontrava na idéia newtoniana de Harmonia Celestial um apoio decisivo),
e à esquerda pelo catastrofismo geológico (que permanece até nossos dias
como corrente filosófica e teórico-interpretativa mais ou menos clandestina)
o evolucionismo é talvez o exemplo mais claro das vinculasses inextricáveis
que se estabelecem entre a ciência, a observação empírica e as visões que
o homem tem de seu universo material, social e político(4).
O evolucionismo traz consigo a idéia de uma "história natural"
, onde se juntam observações arqueológicas de tipo geológico, zoológico
e botânico. A idéia de evolução e progresso não era repugnante ao ambiente
intelectual alemão da época, onde florescia uma filosofia da natureza muito
mais inspirada em filósofos e poetas, Leibnitz e Goethe, do que nos modelos
mecanicistas que Descartes e a ciência newtoniana haviam proporcionado ao
ambiente intelectual francês e inglês. Esta filosofia supunha o desenvolvimento
do uni verso a partir de arquétipos, ou mônadas primárias, que contivessem
em si todos os princípios de vida e movimento É esta idéia a base da iatroquímica,
que haveria de se desenvolver na Alemanha de então, ainda em grande proximidade
com a alquimia; mas é também a origem das pesquisas morfológicas que encontram
em Lorenz Oken sua grande figura. Com ele, um modelo de organização da natureza,
não mais mecânico, mas especificamente orgânico, passa a ser utilizado.
Este estudo das formas biológicas irá se juntar à análise empírica dos tecidos,
da patologia, da anatomia e fisiologia, estes já mais na área da medicina,
para completar o quadro da biologia da época.
O século XXVIII é ainda a época em que a química moderna encontra seus fundamentos.
Lavoisier introduz os métodos quantitativos de pesquisa em química, estabelece
o conceito de "elementos" e abre caminho para a teoria atômica
da matéria , que é explicitada mais tarde por John Dalton (l766-l844). É
a época dos estudos iniciais sobre o calor e a energia, que encontram aplicação
imediata na construção das máquinas a vapor na Inglaterra, e são posteriormente
consolidados de forma integrada por um novo ramo da física, a termodinâmica,
que tem suas origens nos trabalhos dos franceses Fourier (1768-1830) e Sadi
Carnot (1796-1832). É, finalmente, a época dos estudos iniciais de eletricidade
e magnetismo, quando os resultados experimentais de Stephen Gray, Duffay,
Benjanin Franklin, Calvani, Volta e outros não haviam ainda encontrado a
síntese que seria proposta no século seguinte pela teoria da indução eletromagnética
de Faraday e a teoria do campo magnético de Maxwell.
4. As Novas Universidades
A entrada ao século XIX marca também uma profunda transformação dos principais
centros de ensino superior do mundo ocidental; o inglês, o francês e o alemão,
que seria o dominante durante todo o século e influenciaria fortemente o
sistema de ensino superior americano , que iria atingir seu apogeu já no
século XX.
Antes do século XIX, o ensino superior era essencialmente de tipo clássico
- centrado no Latim, no Grego e no estudo da lógica e da filosofia - e isto
servia de base para as principais carreiras profissionais existentes, a
de medicina, a de direito e a de teologia. Com o século XVIII, o desenvolvimento
da ciência empírica começa a tornar evidente a insuficiência da formação
clássica, ao mesmo tempo em que pessoas que adquiriam conhecimentos fora
do sistema de ensino tradicional começavam a disputar os privilégios e monopólios
profissionais dos poucos que conseguiam obter a educação clássica:
Um observador do cenário profissional cerca de 1800 - antes que a influência
dos filósofos alemães na reforma universitária fosse sentida - poderia facilmente
chegar à conclusão de que toda a tradição de profissões cultas estava a
ponto de terminar, juntamente com todas as organizações profissionais de
tipo corporativo. Um medico ou advogado necessitava certamente de conhecimentos
especializados, mas havia uma crescente convicção de que ninguém tinha o
direito de perguntar como este conhecimento foi adquirido, ou se, além do
conhecimento tecnicamente necessário, a pessoa também possuía uma educação
de outro tipo". (Ben-David, 1977, p. 36).
Esta nova concepção de ensino superior tinha um componente de tipo substantivo
e outro de tipo mais político O componente substantivo era a evidente necessidade
de incorporar às antigas profissões os conhecimentos produzidos pela ciência
experimental que emergia. O componente político consistia em quebrar os
privilégios das antigas profissões e corporações profissionais, e permitir
o surgimento de novas profissões, novas escolas, novas metodologias de ensino
e aprendizagem. Ou, em outras palavras, substituir uma elite por outra.
Em nenhum país a transformação foi mais dramática do que na França. Lá,
a Revolução aboliu, simplesmente, a antiga universidade e tratou de substitui-la
inteiramente por escolas profissionais. Conforme a descrição de Ben-David,
"o novo sistema que começou a emergir em 1794 consistia
em uma serie de escolas profissionais para mestre-escolas, doutores e
engenheiros de que o Estado necessitava. Estudos científicos e a filosofia
científica deveriam herdar o lugar central que havia sido ocupado pela
educação clássica tanto no nível secundário quanto no nível superior.
Eventualmente, sob Napoleão, a orientação científica foi enfraquecida,
a ênfase na nova filosofia cientística foi completamente abolida, e o
ensino clássico foi restaurado à sua antiga importância na escola secundária.
Mas a educação superior manteve-se identificada com educação especializada
para as diversas profissões". (1977, p. 16/17).
A gradual retomada do sistema de ensino pelas formas mais antigas de educação
fez parte, evidentemente, do processo mais geral de restauração havido na
França após o período revolucionário. Mas ele reflete o fato de que havia,
na França como nos demais países da Europa, grupos profissionais e intelectuais
suficientemente poderosos e articulados para impor à sociedade - e às novas
formas organizacionais do sistema universitário - grande parte de seus princípios
e ideologias. Os governantes da época, por mais que quisessem estabelecer
novas formas de ensino que separassem o técnico do "culto" e eliminassem
os privilégios dos grupos profissionais, não podiam escapar. ao monopólio
da excelência que os grupos profissionais detêm quase que por definição:
"Os governantes
só podem controlar a transmissão de técnicas específicas. Eles podem treinar
pessoas para serviços como os de relojoeiro ou fabricantes de armas, mas
não podem controlar o aprendizado de alto nível, que engloba algo mais
do que técnicas, e provê o escopo intelectual necessário para a originalidade
e a virtuosidade intelectual (...). Governantes podiam outorgar ou negar
Cartas às Universidades ou comprar seu apoio, mas não controlá-las, como
controlariam uma oficina em que os mestres treinam seus aprendizes. A
educação superior permaneceu, portanto, um monopólio da classe educada"
(Ben-David, 1977, p. 35-36).
Na prática, as Grandes Écoles criadas pelo sistema napoleônico
para formar os quadros do Estado se transformaram no centro da nova elite
intelectual francesa. Estas Grandes Écoles - École Polytechnique,
École Normale, École Nationale d 'Administration. École des Sciences Politiques
- passaram a se constituir em um estrato superior do sistema educacional
francês, proporcionando uma educação refinada e cultivada para uma elite,
enquanto que se desenvolvia um sistema de educação do segundo nível para
o restante da população.
As Grandes Écoles francesas realizaram na prática uma inversão
da idéia anterior ao século XIX, de que a formação clássica precedia e dava
condições para a formação profissional. No novo sistema, a educação especializada
passava a ser vista como uma forma de aprofundamento intelectual e de aperfeiçoamento
da mente, que fazia de seus estudantes homens de cultura de um novo tipo.
Esta inversão tornou-se ainda mais clara no sistema educacional inglês,
que, por diversas razões, nunca chegou aos sistemas curriculares integrados
e coordenados que eram características do modelo francês. A Universidade
inglesa continuou, essencialmente, como uma corporação de professores, que
ensinavam a seus alunos de maneira diferenciada, tendo em vista a tradição
cultural que possuíam e as necessidades práticas de ensino que percebiam.
Assim, de formas diferentes, os sistemas universitários francês e inglês
continuaram a proporcionar a seus alunos uma educação de tipo geral, ainda
que embutida em cursos superiores de tipo profissional. Só o sistema norte-americano,
mais tarde, iria proporcionar um tipo de educação superior explicitamente
voltado para a educação geral, e não profissional, que são os Colleges.
É o sistema alemão, no entanto, que traria à universidade do século XIX
a pesquisa científica, e passaria a ser o modelo a influenciar a todos os
demais.
A reforma do sistema educacional alemão tem como marco inicial a criação
da Universidade de Berlim em 1809. O contexto geral parece haver sido dado
pela existência de uma intelligentsia que se desenvolveu à sombra
do estado prussiano, o qual foi capaz de financiar um processo de modernização
de sua sociedade sem no entanto permitir o surgimento de novos grupos sociais
e uma pluralidade de interesses econômicos e políticos ( Rosemberg, 1996).
A atividade universitária tornou-se uma das únicas vias de acesso e participação
para estes intelectuais que viam na criação de uma universidade modernizada
uma forma de garantir sua presença e importância. Eles resistiram, assim,
à completa profissionalização do ensino superior, tratando de manter o sistema
de ensino integrado através de uma filosofia de orientação naturalista ,
a Naturphilosophie, que possuía um componente muito mais humanístico
e romântico do que a filosofia de inspiração positiva que predominava, a
partir da França, no resto da Europa. Sob a liderança de Lorenz Oken , a
revista Isis é criada na Alemanha em 1817, seguida em 1822 pela associação
de cientistas e doutores de língua alemã, a Deutscher Naturforscher
Versammlung. que realizaria a unificação da comunidade científica alemã
décadas antes da unificação política do país. É a inspiração inicial da
British Association for the Development of Science, criada em 1831
(Mason, 1962, p.578 e ff.).
É este sistema educacional integrado, dirigido e orientado por professores
e intelectuais, que consegue pela prime ira vez realizar uma união efetiva
entre ensino e pesquisa. Esta união se dá, inicialmente, no ensino de química,
farmácia e fisiologia - que possuíam. já neste século, suficiente sistematização
para permitir um ensino coerente e integrado - e também nas humanidades.
Além deste fator, parece ter sido fundamental, no caso alemão, a existência
de um amplo sistema educacional em formação, que competia por talentos,
os quais eram aferidos pela produção de pesquisa científica de que fossem
capazes. Assim, as universidades buscavam pesquisadores, e estes demandavam
laboratórios e condições para pesquisa. Os alunos que desejassem ser professores
deveriam necessariamente aprender a pesquisar para se colocar melhor no
mercado profissional; e médicos, químicos e farmacêuticos tinham agora condições
de aprender a pesquisa científica durante seus anos de formação, junto com
futuros mestres.
A idéia da indissolubilidade entre ensino e pesquisa deriva deste contexto,
e passa a influenciar a todos os demais sistemas universitários , apesar
de suas óbvias dificuldades: existe uma incompatibilidade natural entre
o ensino (que, por definição, transmite o que já se sabe) e a pesquisa (que,
por definição, busca o que não se conhece) . Esta incompatibil?dade pode
ser contornada em alguns momentos e épocas, mas levou, na própria Alemanha
(assim como nos demais países) à criação de um sistema específico para a
pesquisa científica, o Kaiser Wilhem Gesellschaft. O sistema norte-americano,
ao incorporar mais. tarde a idéia da união de ensino e da pesquisa , o faz
através de uma novidade absoluta em relação aos. demais sistemas educacionais:
o reconhecimento do pesquisador como uma profissão como outro qualquer.
Ao lado das carreiras profissionais clássicas, através das graduate
schools e seus cursos. de doutoramento (em contraste no sistema europeu,
o doutoramento tem sido geralmente um mecanismo de avaliação e credenciamento
do scholar, geralmente como parte de sua carreira de professor,
muito mais que para uma atividade específica de pesquisa). Com este sistema,
a pesquisa deixa de ser uma atividade auxiliar na formação profissional
ou um simples método de ensino na atividade do professor, e passa a ter
um objetivo próprio, que pela primeira vez adquire primazia dentro do sistema
universitário.
5. Portugal e a Ciência
Moderna
A posição de Portugal em relação às transformações que sacudiram a Europa
desde o Renascimento é, a princípio, de pioneirismo, evoluindo mais tarde,
no entanto, para um lugar marginal que teria profundas conseqüências para
a herança cultural que o Brasil receberia.
Entre as origens do novo saber da natureza, coroado com a obra de Newton,
nos começos do século XVIII, pode ser incluído o desenvolvimento da navegação,
que tem lugar sobretudo no século XV. Antes disso, os habitantes da Península
Ibérica já vinham deslocando para o mar a luta contra os árabes de que resulta,
em 1415, a conquista de Ceuta por Portugal, o que garantia a segurança da
navegação no estreito de Gibraltar e virtualmente impedia o prosseguimento
da migração árabe no sentido do continente. As conquistas portuguesas são
santificadas pelo Papa Marinho V em 1418, atribuindo-lhes características
e funções de cruzada, pela bula Sane Charissimus. Nesse período
a construção naval se desenvolvera de modo significativo. Portugal passara
do emprego das galeotas e galés - as primeiras com 15 bancos de remeiros
e as segundas com o dobro desse número, equipadas ainda com abrigos de popa
e proa para arremesso de dardos, lanças e outros materiais bélicos da época
- para as caravelas, movidas a velas, e que correspondem a uma verdadeira
revolução na matéria.
Em fins do século XIV inicia d. João I a nova dinastia portuguesa de Avis.
Um de seus filhos, d. Henrique (1394 - 1460), organiza por volta de 1420,
no extremo Sudoeste do continente europeu, próximo ao cabo de São Vicente,
a Escola de Sagres, dedicada ao aperfeiçoamento do instrumental náutico
e das embarcações, bem como à preparação de navegadores e marinheiros. D.
Henrique atraiu para a sua escola especialistas de várias nacionalidades
e atribui-se a essa iniciativa a liderança portuguesa na conquista de novas
terras no período subsequente.
Ao longo do século XV Portugal descobre e inicia a colonização de ilhas
no Atlântico (Madeira, Porto Seguro e Arquipélago dos Açores), explora a
costa ocidental da África e, finalmente, descobre novo caminho marítimo
para o Oriente. Em 1493 a expedição de Vasco da Gana contorna o Cabo da
Boa Esperança e atinge a Índia. Logo a seguir tem lugar o descobrimento
do Brasil. O fato da navegação permitiu aos portugueses a formulação de
nova visão geográfica do mundo, abertamente conflitante com a de Ptolomeu,
elaborada nos começos da era cristã e que correspondia, na verdade, a uma
perspectiva mediterrânea do planeta.
Assim, na obra de Diogo Gomes, intitulada As relações do descobrimento
da Guiné e das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde, escrita entre
1480 e fins do século, afirma-se:
"E estas coisas que aqui escrevemos, se afirmam salvando
o que disse o ilustríssimo Ptolomeu, que muito boas coisas escreveu sobre
a divisão do mundo, que porém falhou nesta parte. Pois escreve e divide
o mundo em três partes, uma povoada que era no meio do mundo, e a setentrional
diz que não era povoada por causa do excessivo f rio, e da parte equinocial
do meio dia também escreve não ser habitada por motivo do extremo calor.
E tudo isto achamos ao contrario, porque o polo ártico vimos habitados
e até além do prumo do polo e a linha equinocial também habitada por pretos,
onde é tanta a multidão de povos que custa a acreditar... E eu digo com
verdade que vi grande parte do mundo." (Apud Saraiva, 1955, Vol.
II, p. 455)
Assinale-se que, no nesmo período, a Geografia de Ptolomeu merecera
seis edições em latim, impressas em Bolonha entre 1478 e 1490. Inseria,
ao lado de observações comprováveis, toda uma serie de suposições arbitrárias,
como a fixação dos limites acessíveis da terra na altura do Cabo Bojador,
a noroeste do deserto de Sahara; a inabitabilidade da zona equatorial; a
fertilidade do solo e a vida edênica nas Canárias; a existência de ouro
à superfície das praias africanas, etc. . O novo mapa que ia sendo elaborado
pelos navegadores resultava na refutação de parte significativa da herança
clássica, parcela essa que se considerava complementar ao sistema aristotélico.
Discute-se se a nova intelectualidade técnica portuguesa teria se preocupado
em integrar numa síntese esse conjunto de observações empíricas. Parece
que não, até a época em que o processo se viu bruscamente interrompido,
pela reativação dos valores tradicionais, em decorrência da Contra Reforma.
Antônio José Saraiva, ao estudar o tema das navegações e as origens da mentalidade
científica", entende que o desfecho seria inevitável . A propósito,
escreve:
"À medida que
as caravelas iam desdobrando o Atlântico para o sul, os navegadores substituíam
ponto por ponto a herança empírica tradicional, adaptada a condições diversas
das que eles enfrentavam, por um conjunto de regras ainda empiricamente
elaboradas , mas resultantes de uma experiência nova e da colaboração
da ciência teórica dos astrônomos. Uma observação direta e sistematicamente
exercida sobre a natureza tendia assim a sobrepor-se ao simples empirismo
dos práticos de náutica. As viagens eram, assim, fecundas de conseqüências
que é indispensável considerar no estudo da evolução da cultura portuguesa,
até a sua expressão renascentista".
Saraiva retira essa convicção do fato de que a tendência mais saliente
que se forjou em torno do desenvolvimento expansionista português, e em
certos setores a ela ligados, foi o exercício da crítica sobre a experiência,
tendo esta como critério de verdade". O pensamento português encaminhar-se-ia
para integrar os novos conhecimentos numa concepção que restituísse à cultura
"a unidade e o equilíbrio que, em resultado das navegações, havia perdido".
(Saraiva, 195S, Vol. II, Cap. IV).
Milita em favor dessa hipótese a presença na cultura peninsular de filósofos
considerados como precursores do pensamento moderno, como Pedro da Fonseca
(1528-1S99) e Francisco Suárez (1548-l617). Com esses pensadores, ambos
jesuítas, aparecem os problemas considerados modernos e que iriam ser impulsionados
pela meditação de Descartes. Suárez exerceu grande influência durante o
século XVII, sobretudo na Europa Central, nos países protestantes, em busca
de uma alternativa para Aristóteles, e em sua obra estudaram os mestres
de Leibnitz. No âmbito da cultura laica registra-se a presença de Francisco
Sanches (1551-1623), português de Braga que ensinou em Montpelier e Toulouse,
autor de Quod nihil scitue (Que nada se sabe), aparecida em Lion
, em 1581, reeditada em 1628 (Frankfurt) e 1649 (Rotterdam). onde combate
o aristotelismo e reclama o exame direto das coisas, submetendo-se os dados
da experiência à análise crítica do juízo. Em Portugal mesmo, contudo, os
precursores da filosofia moderna, Pedro da Fonseca, Francisco Suárez ou
Francisco Sanches não encontrariam maior acolhida. Os ventos sopravam noutra
direção.
6. A Contra-Reforma
Por volta dos fins do século XVI a Companhia de Jesus, criada por Inácio
de Loiola em 1534, rompera as vacilações iniciais e optara pela preservação
da herança tradicional, expressa na doutrina aristotélico-tomista. Infensa
à contemplação, rigorosamente hierarquizada, militante, devotada e ativa,
a Ordem dos Jesuítas, ao adotar semelhante projeto, iria promover a brusca
reorientação da cultura portuguesa.
Dois são, a rigor, os instrumentos mobilizados para a conquista daqueles
objetivos: a Ratio Studiorum e a inquisição.
A Ratio Studiorum sintetiza a experiência pedagógica dos jesuítas
e tomou forma definitiva nos começos do século XVII.(5)
Regula cursos, programas, métodos e disciplina das escolas da Companhia.
Fixa as normas tanto para os chamados estudos inferiores como para os de
nível universitário, através de uma série de regras explícitas de conduta
para professores. O saber se compreende como achando-se integralmente sistematizado,
tendo no ápice da pirâmide a Teologia, estudada a partir de São Tomás, vindo
a seguir a filosofia, que se aprendia na versão tomista de Aristóteles.
Trata-se sobretudo de preservar o saber estabelecido e obstaculizar quaisquer
inovações As questões a serem suscitadas pelos professores como também os
textos a serem lidos pelos alunos eram colocados sob rigoroso controle.
A regra quarta do professor de filosofia estabelecia "que obedeça ao
Prefeito nos assuntos que respeitam à disciplina e aos estudos dos discípulos;
leve-lhe todas as teses antes de serem propostas para que ele as examine,
e que não tome livro nem escritor algum extraordinário para explicar, nem
introduza nenhum novo costume de ensinar ou de disputar". A regra sexta
diz ainda mais explicitamente: "Mesmo naquelas coisas em que não há
nenhum risco para a fé e para a piedade, ninguém introduza novas questões,
nem opinião alguma que não esteja em algum autor idôneo, sem consultar o
Prefeito".
Os livros postos ao alcance dos alunos deviam limitar-se à Suma Teológica
de S. Tomás e à obra filosófica de Aristóteles, a comentários seletos e
a livros escolhidos para cultivo das Humanidades. Era obrigatória a leitura
da Bíblia e das resoluções do Concílio de Trento. A obra dos Santos Padres,
que envolvia dificuldades de ordem interpretativa, só podia ser consultada
mediante deliberação especial da autoridade competente.
A doutrina aristotélica era ciosamente preservada de outra interpretação
que não a aprovada pelos Doutores da Igreja, que correspondia ao abandono
da abertura e da flexibilidade de homens como Suarez. "Nas coisas de
alguma importância - diz a segunda regra - não se afaste o professor de
Aristóteles, a não ser quando encontrar alguma coisa alheia à doutrina que
todas as academias aprovam, principalmente se for contrária à fé ortodoxa;
e se houver em contrário desta algumas afirmações de Aristóteles, esforce-se
por as refutar atendo-se ao Concílio de Latrão."
Essa doutrina pedagógica, a serviço do isolamento do mundo moderno, iria
ser usada não para preservar a integridade e pureza doutrinárias de uma
ordem religiosa, mas para erigi-la em norma a ser observada por toda uma
nação. Com a mesma tenacidade e devoção com que se lançaram à catequese
dos índios nos novos territórios, os jesuítas trataram de impor esse alheamento
ao curso da história ao conjunto da elite portuguesa. Graças a isto, lograram
a gestão de todo o ensino que hoje seria equiparável ao fundamental, estabelecendo
igualmente o controle do ensino superior. Em Évora, diretamente, e em Coimbra,
através do Colégio as Artes, por onde passavam todos os estudantes, e dos
professores das disciplinas formativas. Afora isto, suja ascendência no
aparelho do Estado se fazia ostensiva. Mário Domingues, tratando do período
que antecede à subida do marquês de Pombal ao poder, observa:
"A Companhia de Jesus desfrutara até essa data de um poder
efetivo, absorvente e indisfarçável. Perdera mesmo um certo recato na
maneira de o exercer, tomando atitudes ostensivas, pois os seus membros
são se coibiam de confessá-lo. É o próprio padre jesuíta Georgel que,
nos Anais da Sociedade, o descreve com toda a naturalidade e
nestes precisos termos: 'Não havia na Europa, nem nos dois hemisférios
nação alguma onde a nossa Sociedade fosse mais acatada, mais poderosa
e estivesse mais solidamente estabelecida do que Portugal, e em todos
os países ou reinos sujeitos ao domínio Português... Éramos mais do que
os diretores da consciência de todos os príncipes e princesas da família
real, pois que o rei e seus ministros nos consultavam nos negócios, ainda
os mais importantes, e nenhum lugar se provia para o governo do Estado
ou da Igreja sem consulta nossa ou sem interferência do nosso valimento.
Deste modo, o alto clero, os grandes, e o povo disputavam à porfia a nossa
proteção e favor.'" (Domingues, 1963)
O desfecho de semelhante predomínio, como se sabe, consistiu em estabelecer
um círculo de ferro em torno de Portugal , isolando-o de modo completo da
cultura moderna. É certo que para tanto não contribuiu apenas ascendência
da Ordem dos Jesuítas sobre o sistema pedagógico mas igualmente a Inquisição
que, se não se fizera diretamente pela Ordem, achava-se a serviço de idênticos
propósitos.
A Inquisição, denominada oficialmente "Tribunal do Santo Ofício",
tinha por missão zelar pela integridade da fé. Para tanto dispunha de amplos
poderes no tocante à privação da liberdade das pessoas, podendo inclusive
obter confissões mediante o emprego da tortura. Tais confissões valiam como
prova. Os culpados eram mortos em fogueiras, chamadas "autos-de-fé".
Tratava-se de uma instituição tipicamente medieval. Sua atividade virtualmente
cessaria, na Europa, em fins do século XV. Em Portugal, é restaurada em
1540, como parte da luta da Igreja Católica contra os protestantes. Contudo,
sua ação se desenvolve de modo mais intenso a partir das começos do século
XVII.
Os historiadores portugueses não conseguiram reconstituir atividade da Inquisição
em seu conjunto. Segundo Antônio José Saraiva, o total de penitenciados
até 1732 é estimado em 23.068. Embora muitos se hajam perdido, preservaram-se
36 mil processos. A partir de tais indicações, avalia-se em 120/160 a média
anual de pessoas colhidas nas malhas do Santo Ofício, ao que observa Saraiva:
"A média indicada é pouco significativa do alcance real
da Inquisição. Esta teve épocas de maior furor e outras de abrandamento.
Assim, nos sete anos que vão de 1633 a 1640, saíram penitenciados pelas
três Inquisições do Continente perto de 2.000 pessoas, ou seja, 285 por
ano e, destas, em média oito morriam no pelourinho... Em numerosos autos-de-fé
o numero de sentenciados subiu a várias dezenas, Em Coimbra, o auto de
1667 durou três dias, porque foi preciso ler 273 sentenças, e no mesmo
ano em Évora, liam-se mais 244 sentenças. Anos antes (1629) nos autos-de-fé
de Lisboa, Coimbra e Évora figuravam, respectivamente, 127, 210 e 202
condenados, sendo 35 à pena capital". (Saraiva, 1957, pp. 79 e 80)
O alcance da repressão inquisitorial não se circunscrevia a suas vítimas.
Lançava o pânico, diretamente, sobre todo o círculo de relações e, indiretamente,
sobre quem aspirasse a um mínimo de liberdade de consciência. A esse respeito
é bem ilustrativo um dos poucos levantamentos existentes da situação social
dos condenados entre 1682 e 1691. Cerca de 57% são pessoas das classes abastadas
ou intelectuais; 30% de artesãos ("oficiais mecânicos") e apenas
12% de trabalhadores humildes. Desse modo, parece lícito admitir que se
visava preferentemente aqueles grupos da população capazes de manifestar
oposição à cultura monolítica e ao cordão sanitário que se estabelecera
em sua volta para impedir influencias contrárias, oriundas do exterior.
A Inquisição em Portugal obedecia ao comando dos dominicanos que, segundo
Mário Domingues , "distinguiam-se pela intolerância e crueldade de
seus processos". Admite-se que ainda no reinado de D. João V, na primeira
metade do século XVIII, haja surgido na Corte uma tendência a estimular
a rivalidade entre as ordens, na esperança de, por esse meio, lograr alguma
abertura. Mas, além de que essa política visava preferentemente aos oratorianos
- e que iriam ter um papel destacado no momento da reforma a ser empreendida
por Pombal - ao longo do século XVII e da primeira metade do século XVIII
atuavam jesuítas e dominicanos de modo uníssono com vistas a assegurar o
predomínio da mentalidade descrita. E se os últimos, como diz Mário Dominques,
Adispunham de grande poder repressivo", os jesuítas é que "detinham
a maior parte das instituições de ensino, onde amoldavam o espírito dos
governantes, e eram, como se sabe, os confessores e diretores espirituais
da família real, bem como da maioria dos grandes fidalgos." O essencial,
entretanto, conclui, é que " essas ordens religiosas devem considerar-se,
na proporção da sua influência, responsáveis pela mentalidade nacional desses
tempos." (1963, p. 240)
Sob esse manto obscuro somente apareceriam certas luzes na parte final do
longo reinado de D. João V, que governou de 1706 a 1750. Seriam trazidos
por alguns diplomatas que, freqüentando as cortes de Paris e Londres, podiam
dar-se conta do atraso em que jazia Portugal. Pelo menos um deles, Alexandre
de Gusmão (1695-1753), ganha ascendência no governo, sendo-lhe atribuída
a paternidade de algumas iniciativas que iriam frutificar. Destaca-se a
outorga à congregação do Oratório do direito de preparar candidatos ao ingresso
na Universidade. Deixava de ser obrigatório, para quem ali se diplomasse,
o curso do Colégio das Artes, entregue aos jesuítas, extinguindo-se seu
monopólio num segmento essencial. O Oratório(6)
seria ainda obsequiado com volumosa biblioteca e dotação de uma renda que
a tomava instituição próspera.
O desejo de mudança aparece igualmente numa entidade mantida por D. Francisco
Xavier de Menezes, quarto Conde de Ericeira (1673-1743), cuja atividade
se aproxima das que então desenvolviam as Academias de Ciências. Nessa instituição
surge o interesse pela renovação pedagógica de que resulta consultas a alguns
portugueses eminentes, radicados no exterior, e proposições de ordem vária.
O evento mais significativo dos fins do reinado de D. João V, no que respeita
aos intuitos renovadores, corresponde à divulgação, nos anos de 1746 e 1747,
do Verdadeiro método de estudar, de Luís Antônio Verney (1713-1792),
por sinal figura destacada da Congregação dos oratorianos (Verney, 1949,
1950).
O Verdadeiro método de estudar consiste num conjunto de cartas,
publicadas inicialmente sem a assinatura do autor. Verney, que se achava
em Roma. imagina um interlocutor e escreve-lhe para criticar, de modo abrangente
e completo, o sistema pedagógico dos jesuítas. Depois de quase dois séculos
de silencio e apatia, vê-se a intelectualidade portuguesa arrastada a prolongado
debate em que amadurece a consciência da necessidade de uma reforma.
Entre 1748 e 1756 divulgaram-se vinte livros ou folhetos dedicados à defesa
ou ao combate ao Verdadeiro método. Os opositores mais extremados
reivindicam um auto-de-fé, como Cândido de Lacerda, em 1749:
"E quando o
autor verdadeiro não aparece, paguem por ele os seus escritos e sirvam
de estátua de seu autor. Valha-me Deus! que há tanto tempo se não tenha
visto em Portugal uma destas luminárias, e se não ofereça à caridade cristã
e à Paz pública o fumo deste holocausto, para elas mais grato que todo
o incenso
O grande mérito de Verney consiste em haver conseguido romper a solidariedade
entre o aristotelismo e a religião dos católicos. Em Portugal, para usar
a expressão de outro opositor de Verney, o padre Severino Modesto, era de
fé que existissem formas substanciais e acidentais, como ensinava a física
de Aristóteles. Essa doutrina tornara-se peça-chave na refutação da crença
protestante na predestinação, que torna desnecessária a interveniência da
Igreja na salvação das almas. Traduzida à linguagem escolástica, a graça
divina pela qual o homem se salva se incorpora à substancia individual.
O padre Severino Modesto iria dizer que na possibilidade da salvação "'se
perde o pecado grave e se recupera com a graça, que também é distinta da
alma e pertence aos acidentes." Deste modo, parece à hierarquia católica
que, sem Aristóteles, a doutrina da predestinação torna-se irrefutável .
Verney iria tangenciar esse cipoal doutrinário e elaborar um argumento que
calou fundo na consciência portuguesa:
E também se conhece
com quão pouca razão queiram persuadir-nos que os Santos Padres aprovaram
a doutrina de Aristóteles; pois não sendo ela (ou pelo menos esta que
passa com o nome de Aristóteles) conhecida antes do século XIII, é bem
claro que os Padres não podiam aprovar uma coisa que não conheciam,
nem entendiam que nasceria no mundo. (Vol. 3, p. 37. O grifo e nosso)
Deste modo, apoiando-se na sua condição de dignitário da Igreja e autoridade
incontrastável em matéria dogmática, Verney taxa simplesmente de equívoco
essa devoção de tantos séculos. E passa imediatamente à apresentação de
uma nova doutrina.
A reforma preconizada por Verney abrange todas as disciplinas ministradas
em Portugal, desde o latim e as humanidades ao ensino técnico profissional.
O essencial de sua mensagem consiste entretanto no abandono radical da metafísica
e da preferencia pelas disputas na determinação dos conceitos. Aponta à
cultura portuguesa o caminho da experiência. Proclama que a autêntica filosofia
consiste em "saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na
seringa". De sorte que, quando Pombal expulsa os jesuítas em 1759 e
lança-se à estruturação de uma nova mentalidade, já encontrara o solo trabalhado
pela doutrinação de Verney.
7. A Reforma Pombalina
Em Portugal foram chamados de estrangeirados aqueles que, tendo
vivido no exterior a serviço do Rei ou por qualquer outra circunstância,
pretenderam vincular o país à modernidade e retirá-lo de persistente medievalismo.
O mais ilustre - e também melhor sucedido - desses estrangeirados
foi Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal. Fora
nomeado embaixador em Londres em 1738, e ali viveria durante vários anos,
dedicando-se ao estudo minucioso daquela sociedade, no afã de descobrir
as razões de seu progresso material e riqueza. Ao tempo de embaixador, pretendeu
sem êxito interessar a Corte na organização de uma companhia de comércio.
Mais tarde se comprovou que não vira nessa atividade a alavanca maior, capaz
de arrancar Portugal do torpor em que jazia.
Com a morte de D. João V, em 1750, e a subida ao trono de D. José I, Sebastião
de Carvalho e Melo é convidado a fazer parte do governo, no qual iria ascender
paulatinamente até se tornar a autoridade máxima e o verdadeiro reinante.
Na nova circunstância verificou-se que entendera o sucesso da Inglaterra
como resultante do conhecimento da ciência, aplicado às atividades produtivas.
A ciência inglesa, com que adquirira familiaridade quase ao fim da primeira
metade do século XVIII, era com efeito, segundo vimos, uma doutrina voltada
para aqueles setores em que os resultados práticos a serem auferidos se
considerassem imediatos . Com esse entendimento, Pombal cuidaria de constituir
uma elite renovada.
Em 1761 funda em Lisboa o Colégio dos Nobres, destinado a abrigar cem alunos
oriundos da nobreza em regime de internato e férrea disciplina, aos quais,
alem da cultura clássica, seria ensinado matemáticas, física, hidrostática,
hidráulica, desenho e arquitetura. Importaram-se instrumentos e mestres
da França e da Inglaterra. A iniciativa não propiciou os resultados que
se acalentava, ao que se supõe em vista do clima de delação e espionagem
ali instaurado. Desejava-se uma nobreza familiarizada com a ciência, mas
sobretudo que revelasse inteira fidelidade a D. José I e seu poderoso ministro.
Pombal decidiu-se então, em fins do decênio, pela reforma da Universidade.
A reforma pombalina, consumada em 1772, correspondeu na verdade, como observa
Hernani Cidade, à fundação de uma nova Universidade. Esclarece:
"Faculdades,
estabelecimentos de trabalhos práticos, programas e métodos de estudo,
disciplina e sanções da atividade acadêmica, edifícios, livros de ensino
- tudo foi, senão criado ou estabelecido então, pelo menos profundamente
remodelado e renovado . Os próprios professores , em boa parte, é Pombal
quem os seleciona e nomeia. Foi a destruição da velha Universidade, com
os seus colégios conventuais e seu ensino imobilizado e imobilizante,
e a criação da Universidade Moderna, muito mais aberta a toda
a luz que vinha dos países de Newton, Descartes, Boerhave - ao. mesmo
tempo que lucidamente atenta, pela primeira vez, a muitos aspectos da
vida nacional". (Cidade, 1969, 2o. vol., p. 184).
Criavam-se duas novas Faculdades, de Matemática e de Filosofia, esta ocupando-se
sobretudo do que então se denominava de "filosofia natural", mas
voltada para a aplicação. O ensino médico se reformulava integralmente.
A Universidade passou a dispor ainda destas instituições: Horto Botânico,
laboratório de Física e Química, Dispensário Farmacêutico e laboratório
de Anatomia.
Os Estatutos tratam de fixar novo estilo pedagógico, assim descrito por
Hernani Cidade:
"Incutir o espírito
científico nos alunos é ponto em que a cada passo se insiste. Em vez das
inutilidades da Escolástica, prescreve-se o conhecimento das regras newtonianas
estabelecidas na filosofia natural. Raciocínios teóricos todos derivarão
de princípios plenamente demonstrados por qualquer das disciplinas fundamentais
- a Física, a Matemática, a Química, a Botânica, a Farmacologia e a Anatomia."
E precisa:
"e demonstrado
não hipoteticamente ou por qualquer suposição gratuitamente admitida,
tal como a suposição da matéria sutil dos cartesianos ou outras
semelhantes; mas de modo absoluto, ou por via de fato ou por raciocínio
matemático, sem perder pé das leis da natureza já observadas."
Ao tratar-se de explicar o funcionamento de um corpo são,
"o professor
descreverá a parte estudada, não modificada pela imaginação, mas com a
finalidade da anatomia: semelhantemente estudará nele o movimento dos
líquidos, longe de hipóteses ou fantasias, mas tal qual o mostram as experiências,
as injeções anatômicas, as vivissecções animais, tudo explicando, até
onde for possível, como resultado das leis da Física, da Mecânica , da
Hidráulica. A teoria médica impõe-se que seja nisto cautelosa e se lhe
conheçam bem os limites . Nunca se exporá por forma a insinuar-se que
as doenças se curam por especulação". (p. 210).
Pombal recrutou professores estrangeiros de reconhecida competência, em
especial italianos. Em' decorrência da reforma pombalina, antes mesmo do
final do século, Portugal já dispunha de grande número de naturalistas,
mineralogistas, metalurgistas e botânicos, alguns de nomeada européia. Mas
às custas de um entendimento da ciência que estava longe de ser o mais fecundo.
8. A Idéia de
uma Universidade Brasileira
Durante o período colonial não existia ensino superior no Brasil, salvo
para as carreiras eclesiásticas. As primeiras escolas desse tipo seriam
criadas com a mudança da Corte. Nos dez anos iniciais que se seguiram ao
evento, estruturam-se cursos superiores de engenharia e medicina, bem como
dedicados à formação de diversos tipos de profissionais. A instauração de
uma universidade somente seria cogitada no período final desse ciclo , quando
a reforma da monarquia e, logo depois, a independência, parecem ter absorvido
todas as energias. À iniciativa vincula-se o nome de José Bonifácio de Andrada
e Silva (1763-1838), precisamente um dos mais insignes representantes da
elite renovada, saída da universidade pombalina nas últimas décadas do século
XVIII.
José Bonifácio era filho de família abastada, radicada em Santos, de descendência
portuguesa recente. Mandado estudar em Coimbra nos começos dos anos oitenta,
concluiu a Faculdade de Filosofia em 1787 e, no ano seguinte, a Faculdade
de Leis. Preferiu a carreira de naturalista ao invés da magistratura, sendo
admitido como sócio livre da Academia de Ciências de Lisboa em 1789. No
ano seguinte já submetia à entidade memória dedicada à pesca da baleia e
à extração de seu azeite. Em 1790 é mandado empreender missão científica
pela Europa, objetivando, em especial, a aquisição de novos conhecimentos
de mineralogia.
Parte de 1790 e durante o ano seguinte estuda química e mineralogia em Paris,
passando, em 1792, ao laboratório de Werner (1750-1817) em Freiberg, que
se considera como o fundador da mineralogia sistemática, desde que a separou
da química geral, tornando-a disciplina independente. Permaneceria em Freiberg
até 1794. Nos anos seguintes dedicar-se-ia à pesquisa mineral em vários
países europeus. Tais pesquisas granjearam-lhe fama e a admissão em varias
instituições científicas européias, como a Sociedade Geológica de Londres,
a Sociedade Mineralógica de Iena e as congêneres de Paris, Berlim e Edinburgo.
Regressou a Portugal em fins de 1800.
José Bonifácio iria exercer importantes cargos na administração portuguesa.
Em 1801 seria nomeado diretor da repartição que se ocupava da mineração,
com a incumbência de gerir minas de carvão e recuperar a fundição de ferro.
Foi-lhe entregue também a direção de um laboratório que deveria ser colocado
a serviço da experimentação em química e metalúrgica. Incumbiu-se da cadeira
de metalurgia em Coimbra. A par disto, desenvolvia grande atividade junto
à Academia de Ciências, de que seria secretário anos mais tarde.
Após a mudança da Corte para o Brasil, defrontava-se Portugal com uma situação
de verdadeiro descalabro . Primeiro sob ocupação estrangeira. Depois , em
decorrência da guerra para expulsão dos invasores. Recuperado o país, evidenciou-se
a acefalia administrativa; em vista da transferencia dos principais quadros
dirigentes para o Rio de .Janeiro. Durante este período José Bonifácio dedica-se
aos afazeres da guerra e, após o seu término, às atividades administrativas
e científicas costumeiras. Somente regressou ao Brasil em 1819, embora tivesse
manifestado esse desejo em anos anteriores.
Ao longo dos três decênios transcorridos desde a formatura em Coimbra, José
Bonifácio manteve-se fiel ao entendimento da ciência vigente na universidade
resultante da reforma pombalina, isto é, como aquela disciplina que se esgota
na aplicação. Convivera com sábios europeus de nomeada, como Alexandre de
Humboldt, que freqüentava o laboratório de Werner nos tempos de sua permanência
de Freiberg, e com o próprio Werner. Deve-se admitir que essa convivência
haja servido sobretudo para reforça-lhe tais convicções. Escrevendo em 1813,
numa memória sobre minas de carvão e fundições de ferro, teria oportunidade
de afirmar:
"Se o país é
estéril em produtos agriculturais, como a maior parte de nossas serranias
e charnecas; se as fabricas têm obstáculos quase invencíveis para se porem
em concorrência com os estrangeiros, como entre nós sucede; que outro
modo mais natural e seguro terá uma nação para não empobrecer e despovoar-se,
do que a lavra em grande de seus minerais com que a Providência a quis
dotar? . . . Se a Rússia , a Prússia e a França se enriqueceram de novo
tanto, com a lavra das suas minas, quem proíbe a Portugal enriquecer-se
do mesmo modo? Pão, pólvora e metais são quem sustenta e defende as nações;
e sem eles de próprio fundo, é precária a existência e liberdade de qualquer
estado."
A ciência acha-se a serviço da efetivação de semelhantes propósitos de enriquecimento
nacional. Mais ainda: os êxitos somente serão assegurados mediante a interpenetração
do conhecimento científico e da atividade produtiva. Nos primórdios de sua
carreira , na primeira memória submetida à Academia, antes referida, escreve
que
"os homens comuns
assentam consigo que as coisas comuns não entram na repartição das ciências;
e assim a arte de fazer fornalhas parece-lhes coisa vulgar, e de qualquer
estúpido pedreiro; rias contudo, bastante conhecimentos físicos requer.
Em Santa Catarina, onde se acha fundada a maior armação do Brasil, há
pelo menos 20 caldeiras com outras tantas fornalhas respectivas; mas se
os primeiros construtores alguma coisa soubessem mais da Física e Química
do fogo, todas elas estariam reduzidas a cinco, quando muito". (Falcão,
1956, vol. 1, p. 40).
Na memória sobre ninas de carvão, de 1813, bem como na que dedicou à necessidade
de plantio de novos bosques em Portugal, é idêntica a acepção de ciência.
Nesta última memória, de 1815, encerra um dos tópicos com esta exortação:
"Para rematar
este Capítulo cumpre-me pedir aos Lavradores Ativos, patriotas e justamente
estudiosos, que se empenhem seriamente em combinar, para bem da nossa
lavoura, as regras e preceitos que nos deixaram um Collumella e um Plínio
com os da nova Cultura Inglesa, aperfeiçoada grandemente pelas Ciências
Naturais e por longa experiência. Só assim chegaremos a ter um corpo de
verdadeira Doutrina Agronômica, com que prospere e se aumente a nossa
atrasada Agricultura". (p. 317).
José Bonifácio regressaria ao Brasil, ao que se supõe, atendendo a convite
de D. João VI para assumir a reitoria do Instituto Acadêmico, espécie de
Universidade que se cogitava fundar no Rio de Janeiro. Não se sabe que razões
teriam determinado a postergação da providência. O certo é que, tendo ido
residir em Santos, decorrido pouco mais de um ano estaria envolvido nos
acontecimentos de que iriam resultar o regresso do monarca a Portugal e
a proclamação da independência do país. E tendo lhe cabido redigir, em 1821,
as instruções aos deputados paulistas que faziam parte da representação
nacional junto às recém convocadas Cortes de Lisboa, retoma a idéia da universidade
brasileira. E o faz inspirando-se amplamente no modelo pombalino. A Universidade
cogitada por José Bonifácio se constituía de três Faculdades: Filosofia,
Jurisprudência e Medicina. Suprimiam-se as Faculdades de Cânones e Teologia
, mantidas pela reforma pombalina, o que parece indicativo ao avanço da
mentalidade laica no período transcorrido .
A Faculdade de Filosofia se subdividia em três seções: ciências naturais;
filosofia racional e moral e ciência matemáticas. Semelhante estrutura equivale
a avaliar negativamente a constituição de modo autônomo da Faculdade de
Matemática, ocorrida na reforma de 1772. Em contrapartida a acepção de filosofia
permaneceria inalterada.
O curso deveria ter como núcleo as cadeiras de historia natural, química,
física e mineralogia, devendo esta última ser ministrada em toda a sua extensão.
Esperançoso nas possibilidades minerais do país, em vista sobretudo da vastidão
do território, cuidava de encaminhar o ensino no sentido da formação preferencial
de homens habilitados a promover sua exploração.
9. Conclusão
A Universidade proposta por José Bonifácio não seria organizada, o mesmo
ocorrendo com iniciativas de idêntico teor surgidas no Parlamento desde
a fase inicial da independência. Uma explicação. possível para este fato
talvez seja que a experiência tenha sugerido, em face do caráter candente
de que passou a revestir-se a questão da unidade das províncias, que o ensino
superior de caracter profissional se fizesse de modo descentralizado, com
o que seriam atendidas maior número de unidades provinciais . A partir deste
entendimento, a idéia de Universidade, ao longo do Império, surgia como
que vinculada a iniciativas de cunho centralizador, em detrimento da autonomia
das províncias.
Isto não impediu, não. obstante, que o governo imperial tratasse de centralizar
e controlar ao máximo todas as iniciativas de criação de escolas profissionais
nas diversas partes do país. A razão mais profunda para a não existência
de uma universidade brasileira é que faltava ao país setores sociais definidos
que fossem portadores de uma tradição cultural e uma ideologia modernizadora
de tipo cientístico, tais como as que serviram de alento as novas universidades
e sociedades científicas da Inglaterra, França ou Alemanha. Assim, ao empreender
caminho independente, a cultura brasileira o fazia incorporando apenas um
dos aspectos da idéia moderna de ciência, aquele referido a suas aplicações;
mas faltava o mais importante, a existência de amplos setores da sociedade
que vissem no desenvolvimento da ciência e na expansão na educação o caminho
de seu próprio progresso. No Brasil, e ainda por muito tempo, esta seria
uma visão exclusiva de alguns setores da administração do Estado.
Bibliografia
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Domingues Mário - O Marquês de Pombal e sua Época, Lisboa, Romano Torres,
2a. Edição, 1963.
Falcão, Edgard de Cerqueira (ed) - Obras Científicas, Políticas e Sociais
de José Bonifácio de Andrada e Silva, São Paulo, 1965.
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Princeton University Press, 1968.
Grazia, Alfred, Juergens, Ralph E.; Stecchini, Livio C. - "The Politics
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Saraiva, Antônio José - História da Cultura em Portugal, Lisboa,
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conferência proferida no Seminário "As Grandes Diretrizes da Universidade
Brasileira", programa de comemorações do cinqüentenário da UFMG, maio
1977.
Verney, Luiz Antônio - Verdadeiro Método de Estudar, Lisboa, Livraria
da Costa, vols 1-5, 1949/1950.
Webster, Charles - The Great Instauration - Science, Medicine and Reform
1626 - 1660 / England. New York, Holmes and Meyer 1976.
Notas
1. Este texto é parte de um estudo mais amplo sobre o
desenvolvimento da ciência contemporânea no Brasil, que está sendo realizado
com o apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). A responsabilidade
dos juízos emitidos é dos autores.
2. José Israel Vargas lembra que dos 21 presidentes da
Royal Society, somente quatro foram inventores; e dos 174 recebedores da
Medalha Gopley, somente 12 foram classificados como tais. (Vargas, 1977,
p.4).
3. Veja para esta parte entre outras as seguintes referências:
Ben-David, 1971; Bernal, 1970; Mason, 1975; Cardwell, 1972. Webster, 1976;
Merton, 1970; Gilpin, 1968; Crossland, 1976.
4. O tema do catastrofismo e suas implicações mais amplas
ressurge nos anos cinquenta com o chamado "affair Velikovsky"
(Grazia, 1963).
5. Saraiva, na obra citada, comenta an edição de 1603.
O Padre Leonel França traduziu-as ao português. (França, 1952).
6. A respeito dessa ordem religiosa observa Calvet de
Magalhães: "A Congregação do Oratório fora fundada em Roma, em 1550,
por S. Felipe de Neri e introduzida em França pelo Cardeal de Berulle em
1611, e em Portugal em 1668 por iniciativa do Padre Bartolomeu do Quental,
pregador e confessor da Capela Real. A congregação foi reputada em França
pelo seu liberalismo e pelo cultivo das matemáticas, da física, das ciências
naturais, da história e da língua nacional . Malebranche, discípulo de Descartes,
era oratoriano, e os padres da Congregação mostraram sempre grande inclinação
para o cartesianismo." (Magalhães, 1967, p. 173)