15/12/96

As diversas faces da pobreza no Brasil

Simon Schwartzman



Pareceria que existem muitas pobrezas diferentes no Brasil, afetando as pessoas de forma distinta, provocada por diversas causas, e requerendo políticas públicas também distintas. O objetivo deste texto é analisar os dados da PNAD 95 deste este ponto de vista, para verificar se os dados de fato corroboram esta percepção.

Para isto, foram identificados uma série de indicadores diretos de pobreza (como renda monetária reduzida, ou ausência de água encanada na residência) e uma série de fatores que, presumivelmente, têm um impacto direto sobre a situação de pobreza (domicílios chefiados por mulheres, pessoas de idade avançada, trabalho informal.) Os limites entre estes dois tipos de dimensões não é nítido. Assim, ser analfabeto é ao mesmo tempo uma causa e um indicador de pobreza, ou deprivação, em um sentido importante. Toda esta análise se refere a domicílios, e as características individuais que serão utilizadas são as das pessoas de referência, ou "chefes" de domicílio. O quadro 1 mostra a lista de indicadores utilizados, todos tratados como dicotomias, em que "1" caracteriza o indicador ou eventual determinante de pobreza, e "0" a sua ausência. Este quadro mostra, por exemplo, que 18,7% dos chefes de família trabalham em estabelecimentos agrícolas, e isto corresponde a 3.9% das respostas positivas a todos estes indicadores de pobreza.

Quadro 1. Indicadores gerais de pobreza
Variável Nome % de espostas % de casos
trabalha em estabelecimento agrícola AGRIC 3.9 18.7
nenhuma água canalizada AGUA 4.6 22.0
analfabetismo ANALFA 4.7 22.3
condição de atividade no ano ATIV 3.9 18.8
ausência de banheiro ou sanitário BANHEIRO 2.7 12.8
não branco COR 10.1 48.5
combustível de cozinha inadequado COMBUST 2.5 11.8
não tem eletricidade ELETRIC 1.9 9.3
ausência de esgoto ESGOTO 14.2 68.0
trabalha na economia informal FORMAL 6.1 29.3
não tem geladeira GELAD 5.9 28.2
sem lixo coletado LIXO 6.6 31.3
mora no município há menos de 10 anos MIGRANTE 3.5 16.5
material de paredes sem alvenaria PAREDES 3.7 17.5
pobreza monetária extrema (1/4 sm pc) POBEXTR 4.7 22.3
residência no Nordeste REGIAO 6.3 30.0
trabalha em via ou área pública  RUA .5 2.2
gênero da pessoa de referência (mulher) SEXO 4.8 22.8
não trabalhou na semana  TRABAL 5.7 27.0
trabalho doméstico TRABDOM .6 3.0
65 anos e mais VELHOS 3.3 15.8
Total   100% 478.2%
4,293,616 casos sem informação; 34,774,090 casos válidos

Um instrumento clássico para a análise de grandes conjuntos de variáveis é a análise fatorial, que agrupa aqueles indicadores que mais se correlacionam entre sí em um número menor de indicadores. A análise fatorial destas variáveis mostra o seguinte resultado:

Quadro 2: Análise fatorial dos indicadores de pobreza (rotação Varimax)
  Fator 1 Fator 2 Fator 3 Fator 4 Fator 5 Fator 6
1 - Síndrome Geral de Pobreza (22,7%) (*)
ELETRIC .75747 -.01377 .04454 -.09456 .00844 -.04339
COMBUST  .75527 .00237 -.06748 -.02469 -.02835 -.06327
AGUA .73058 .00879 .28572 .10548 .03874 .04657
BANHEIRO .72660 .00406 .20217 -.02281 .03276 -.00609
LIXO .72544 -.04451 .09515 .20576 -.05616 -.03730
GELAD .67986 .05183 .31684 .10859 .03362 .02453
AGRIC .65774 -.24090 -.09493 .02922 -.17209 -.11609
ANALFA  .49044 .25902 .26541 -.02707 .05405 .19279
POBEXTR .41238 -.01183 .36292 .24548 -.04326 -.04428
2 - Isolamento Social (15,5%)
TRABAL -.05961 .92314 .03215 .02815 -.03285 -.03533
FORMAL -.05886 .92041 .04873 .04650 .02293 -.02813
ATIV -.06216 .88695 -.01519 -.05381 -.02516 -.02984
VELHOS .12466 .64581  -.10188 -.16071 -.02326 .03356
3 - Nordeste não branco (6,0%)
REGIAO  .31461 .01437 .71060  -.02317 .02411 -.06165
COR .17164 -.02013 .65009  .06387 .04082 .18055
4 - Migrantes (5,0%)
MIGRANTE -.12835 -.09111 .09036 .65542 -.05517 -.13375
PAREDES .35336 .02304 -.35942 .58494 .09202 .21242
ESGOTO .42130 -.03114 .19503 .50343 .01416 .04676
5 - Trabalhadoras Domésticas (4,9%)
TRABDOM -.03108 -.13085 .00279 -.02393 .87838 -.03188
SEXO -.07468 .46556 .08199 .02287 .48260 -.04544
6. Trabalho de rua (4,6%)
ORIGEM -.02547 .01051 -.05957 -.12247 .07011 .83156
RUA -.09471 -.08641 .22557 .09636 -.17625 .45088
(*) Percentagem da variança total explicada pelo fator. Os seis fatores, em conjunto, explicam 58,3% da variança total

A interpretação destes dados deve ser feita tomando em conta que os fatores são por definição não correlacionados, e tendem a capturar o máximo de variança de cada ítem em cada fator. O primeiro fator reúne a maior parte dos indicadores mais diretos de pobreza, incluindo o indicador de pobreza monetária extrema, que são as famílias com até 1/4 de salário mínimo mensal de rendimento per capita Esta síndrome de pobreza se reflete na ausência de equipamentos domésticos, e está associada ao analfabetismo e ao trabalho agrícola. O segundo fator caracteriza uma situação de marginalidade en relação ao mercado de trabalho: pessoas desempregadas, fora da população ativa, velhos ou ocupadas em atividades informais, que subsiste de forma independente do primeiro fator, de pobreza geral.. O terceiro fator combina a residência na região Nordestina com a cor negra ou mulata; o quarto fator combina a situação de migrante recente com condições precárias de moradia (falta de esgotos e paredes de alvenaria), características que não fazem parte, como se pode observar, da síndrome mais geral de pobreza indicada acima. O quinto fator corresponde a uma situação específica, que é o trabalho doméstico de mulheres; o sexto fator, finalmente, identifica pessoas originárias do Nordeste, e que trabalham em atividades de rua. Em seu conjunto, estes 6 fatores explicam pouco menos de 60% da variança total dos indicadores, o que significa que existe uma parte substancial dos fenômenos de pobreza que escapam a estas situações.

O próximo passo na análise consiste em separar os indicadores mais diretos de pobreza daqueles que possivelmente os explicariam, e verificar como eles se estruturam. Isto deve permitir, em princípio, examinar em mais detalhe a variação no síndrome geral de pobreza capturado na primeira análise global, que tem um forte componente de pobreza rural.

A análise fatorial dos indicadores relacionados mais diretamente com a pobreza confirmam a separação que já havia surgindo anteriormente entre as condições gerais de pobreza e a condição específica de moradia precária, tal como indicado no quadro 3:

Quadro 3 - Análise fatorial de indicadores diretos de pobreza (rotação varimax).
  Fator 1 Fator 2
1 - Síndrome Geral de Pobreza (45,5%) (*)
ELETRIC  .78920 .02768
BANHEIRO  .78685 .09363
AGUA  .76928 .24235
GELAD  .74315 .19084
COMBUST  .70266 .14567
LIXO  .63542 .41020
POBEXTR  .49254 .22538
3 - Moradia Precária (11,3%)
PAREDES  .04702 .80104
ESGOTO  .26827 .72645
(*) Total da variança explicada: 56,8%.

A análise dos possíveis determinantes da pobreza relevam a existência de 5 fatores independentes, tal como indicado no quadro 4:

Quadro 4: Fatores determinantes de pobreza
  Fator 1 Fator 2 Fator Fator 4 Fator 5
1 - Isolamento social (25,4%) (*)
TRABAL .92524 -.00950 .01513 .02267 .01630
FORMAL .92009 -.00325 .07137 .03627 .02300
ATIV .89011 -.00861 .00602  -.01068 -.02937
VELHOS .63531 .11730 -.07816 -.12563 -.16525
2 - Nordeste (13,3%)
REGIAO -.00343 .75213 .05548 -.00087  .09305
ANALFA  .21233 .68408 -.08589 -.09196 -.14204
COR -.04219 .67449 .09500 .21908  .04115
3 - Trabalho doméstico feminino (8,7%)
TRABDOM -.15857 .04121  .84322 -.10880 -.08312
SEXO .45412 .04852 .51019 .02968 .06106
4 - Trabalho de rua urbano (8,2%)
RUA  -.08392 .10581  -.10090 .70053 .12054
ORIGEM -.01603 .01868 -.01452 .55362 -.51953
AGRIC -.27725 .44117 -.35989 -.44628 -.09573
5 - Migrantes (7,8%)
MIGRANTE -.08142 .01526 -.04145 .11736 .81321
(*) Total da variança explicada: 63,4%.

A análise permite distinguir um fator mais geral de isolamento social, caracterizado por inatividade, velhice, trabalho informal, e desemprego, de um síndrome mais típico, aparentemente, da região Nordeste, que vincula, além da localização regional, o analfabetismo e a raça negra ou parda, e tem um forte componente de trabalho agrícola. O terceiro fator é específico de mulheres chefes de família em trabalho doméstico (ainda que estas mulheres também compõem, com peso semelhante, o índice geral de pobreza); o quarto fator caracteriza o trabalho de rua de pessoas de origem nordestina, e é claramente urbano; o quinto e último fator, finalmente, captura a situação do imigrante recente de origem outra que não o Nordeste.

O próximo passo consiste em verificar em que medida estes 5 fatores de pobreza explicam as duas dimensões de pobreza identificadas na análise anterior. Isto pode ser feito por uma análise de regressão. Para isto, são construídos "escores fatoriais" para cada domicílio e cada um dos fatores(1).

Os resultados principais da análise de regressão podem ser vistos nos quadros 5 e 6 abaixo. Os coeficientes de regressão múltipla para os dois quadros são 0,615 e 0,270, respectivamente:

Quadro 5 - Regressão de Pobreza Generalizada em relação aos fatores de pobreza
  Coeficientes não padronizados Coeficientes padronizados t significação
  B desvio padrão Beta
(Constante) 1.502E-02 .000   116.689 .000
isolamento social -3.886E-02 .000 -.039 -302.502 .000
Nordeste .584 .000 .574 4456.452 .000
Trabalho doméstico feminino -.133 .000 -.132 -.1207.598 .000
Trabalho de rua urbano -.182 .000 -.182 -1414.498 .000
Migração Interna -3.099E-02 .000 -.31 -240.736 .000

Quadro 6 - Regressão de moradia precária em relação aos fatores de pobreza
  Coeficientes não padronizados Coeficientes padronizados t significação
  B desvio padrão Beta
(Constante) 5.234E-03 .000   32.947 .000
isolamento social -5.99E-02 .000 -.-60 -378.042 .000
Nordeste .194 .000 .191 1202.551 .000
Trabalho doméstico feminino -7.28E-02 .000 .073 -457.609 .000
Trabalho de rua urbano -6.97E-02 .000 -.070 -438.451 .000
Migração Interna 5.839E-02 .000 .058 367.565 ,000


  O quadro 5 mostra um ajuste importante, mas quase que totalmente explicado pelo fator "Nordeste", que como vimos, está associado ao analfabetismo e à condição étnica de pretos e mulatos. O exame dos coeficientes "beta", que dão o peso relativo de cada fator na equação, mostram um efeito negativo tanto do trabalho de rua urbano quanto do trabalho doméstico feminino, na determinação da pobreza. Este resultado aparentemente paradoxal não é difícil de entender: tanto um como outro fator são geradores de renda, e por isto retiram as pessoas das situações de pobreza mais precária. Não é por outra razão, evidentemente, que tantas pessoas buscam estas alternativas de trabalho. O quadro 6 mostra um ajuste muito menor, e o único fator que tem algum poder explicativo sobre a condição precária de moradia é, novamente, o fator "Nordeste".

* * *

Esta análise confirma que o síndrome de pobreza localizado no Nordeste brasileiro, e que está associado a condições extremamente baixas de educação e ao pertencimento a setores da população de cor, é tão predominante que, em uma análise global da situação de pobreza que existe no Brasil, obfusca todas a situações mais localizadas. Uma replicação desta mesma análise para diferentes regiões produzirá possivelmente resultados distintos.

Qual a conclusão que se pode tirar desta análise, do ponto de vista da política de combate à pobreza no Brasil? Ela confirma que políticas de redução do complexo de pobreza na Região Nordestina devem ter prioridade, e que a educação é um elemento de crucial importância em relação a isto. Ela também recomenda que se examine em profundidade se o ítem "cor", que vem associado a estes níveis tão altos de pobreza, é somente um correlato, ou de fato um elemento de discriminação que mantém as pessoas em condição de inferioridade social. Mas ela também chama a atenção, indiretamente, para outras situações de pobreza, que afetam grupos especiais, como pessoas idosas, famílias chefiadas por mulheres, pessoas sem condições de trabalho estável, que, ainda que não componham o quadro de pobreza extrema que sobressai nesta análise, constituem problemas importantes que afetam outras regiões, e que merecem políticas também específicas de atendimento e atenção.


Nota

1. Estes escores são estimados a partir da presença ou ausência dos diferentes indicadores para cada domicílio, ponderados pelas correlações de cada ítem com cada fator, e estandardizados em uma escala de média 0 e desvio padrão 1. <