Políticas de Educação Superior na América Latina

Simon Schwartzman

(trabalho realizado para o Programa Conjunto de Pesquisas sobre a Educação Superior na América Latina, 1990)


1. Crescimento e Crise
2. Semelhanças e diferenças
3. Condicionantes estruturais
4. Política e Políticas governamentais
5. Os instrumentos de ação
6. Problemas e Instrumentos



1. Crescimento e Crise

A educação superior na América Latina passou por grandes transformações nos últimos anos, e está atualmente em estado de crise e indefinição (1). As antigas universidades tradicionais e de formação de elites deram origem a sistemas educacionais de grande escala, com o número de alunos de nível superior na região passando de cerca de 550 mil em 1960 a mais de 6 milhões em 1985. Esta expansão se deu, em parte, pelo crescimento das universidades já existentes desde décadas anteriores; mas também pela criação de um grande número de novas instituições de diversos tipos, públicas ou privadas, dotadas ou não de status universitário, mas todas dedicadas à formação de nível terciário, ou pós-secundário. Este sistema ampliado de educação superior aumentou progressivamente seus custos, e passou a competir por recursos com os demais níveis educacionais, assim como com outras fontes de demanda por recursos públicos, ao mesmo tempo em que os valores per-capita gastos pelos governos com o ensino superior caíam de forma progressiva. Esta expansão atingiu seu ponto de estagnação, na maioria dos países, ao final da década de 70, coincidindo com a estagnação generalizada das economias dos países latinoamericanos.

A crise é múltipla. Os recursos per-capita disponíveis para o sistema são insuficientes, e não permitem uma educação de qualidade, apesar de notórias e significativas exceções. As taxas globais de matrícula são claramente pequenas, tanto se comparadas com os níveis atingidos por outros países de regiões mais desenvolvidas quanto se vistas em termos da demanda por educação em cada país. E, ainda que não existam quantificações precisas, parece claro que as universidades latinoamericanas não estão formando cientistas, engenheiros e técnicos especializados no número e na qualidade necessários para a atualização e modernização de suas economias. Ao mesmo tempo, existem indicações claras de que o mercado de trabalho para os formados pelas universidades tem se tornado menos favorável do que no passado, fazendo com que um número crescente de pessoas não consiga trabalho nas profissões para as quais estariam supostamente credenciadas.

A estas dificuldades acrescenta-se o fato de que o segmento do ensino superior é um setor extremamente visível e vocal nas sociedades latinoamericanas, com uma grande capacidade de mobilização e participação política. Esta participação tem adquirido, no tempo, diversas formas e modalidades, que incluem os movimentos estudantís, a sindicalização dos docentes e funcionários, as alianças com as corporações profissionais, e as diferentes formas de aliança e integração entre setores das universidades e partidos políticos organizados; e tem gerado, também, respostas políticas por parte dos governos, quer no atendimento das demandas recebidas, quer em sua repressão mais ou menos violenta. Não é possível pensar nas transformações e na crise do ensino superior na região, e nas políticas governamentais a ele referidas, sem tomar este contexto político em consideração.

2. Semelhanças e diferenças

Os sistemas de educação superior na América Latina têm uma série de características comuns, que os aproximam entre si e os diferenciam, por exemplo, daqueles mais típicos dos países anglo-saxões. A primeira característica comum é o caráter predominantemente secular, profissional e público dos sistemas nacionais de educação superior. Apesar da grande presença da Igreja Católica em todos os países da região, e do caráter confessional das antigas universidades estabelecidas no continente pelos espanhóis durante o período colonial, os sistemas universitários contemporâneos foram constituídos dentro de uma perspectiva predominantemente francesa, ou napoleônica, de construção de estados nacionais modernos, centralizados e leigos, a serem dirigidos por elites profissionalizadas e treinadas de acordo com o conhecimento técnico e as doutrinas sociais e jurídicas mais modernas (existem, certamente, variações nacionais sobre o grau em que as antigas universidades católicas sobreviveram a esta transformação, ou se adaptaram a ela).

Intenções nem sempre produzem os resultados esperados. Em contraste com o que ocorreu na Alemanha, por exemplo, este modelo universitário não abriu espaço para a pesquisa científica, que desse fundamentação ao ensino técnico; em contraste com a experiência inglesa, não deixou lugar para a formação genérica, na tradição das "liberal arts"; e, em contraste com a própria França, não deu margem à criação de estabelecimentos de elite, como as "grandes écoles", que pudessem manter seus padrões de prestígio e qualidade em um contexto de massificação.

As principais diferenças entre os países da região se relacionam, historicamente, com a maior ou menor pureza com que o modelo napoleônico foi implantado, e com as formas pelas quais os diferentes países se adaptaram às pressões de crescimento. É possível contrastar o México e a Argentina, em um extremo, com suas grandes universidades nacionais, com o Chile, com as universidades Católica e Nacional coexistindo em pé de relativa igualdade. México e Argentina tipificam ainda sistemas universitários dominados por uma grande instituição nacional, em contraste com sistemas dispersos e sem um centro claramente dominante e hegemônico, como é o caso do Brasil. Estas diferenças históricas talvez ajudem a entender os diferentes caminhos assumidos por cada país ante as pressões por expansao. Tanto a Argentina como o México parecem ter respondido, predominantemente, pela ampliação de sua universidade central, chegando inclusive à consagração recente, no caso argentino, do princípio da admissão aberta e incondicional para todos os portadores de diplomas secundários. Hoje as universidades nacionais do México e de Buenos Aires estão entre os maiores estabelecimentos educacionais de todo o mundo. Brasil e Colômbia, por outra parte, tenderam a reagir basicamente pela proliferação de instituições e pela ampliação da educação privada, fazendo com que esta perdesse muito de sua identificação com o ensino religiosos.

3. Condicionantes estruturais

Este quadro sumário permite assinalar que as ações governamentais dirigidas ao ensino superior nos países latinoamericanos nas últimas décadas tiveram sempre condicionantes estruturais maiores, cuja dinâmica independia de políticas governamentais de um ou outro tipo. O mais importante destes condicionantes foi, naturalmente, a expansão. Ela se deu, em grande parte, pela entrada maciça de mulheres no ensino de terceiro grau; mas também pela busca de educação superior por parte de pessoas mais velhas e de origem social mais baixa do que aquelas saídas diretamente das escolas secundárias de maior prestígio, que constituíam, tradicionalmente, a principal fonte de recrutamento das universidades. As razões desta expansão se prendem, sem dúvida, à expansão do mercado de serviços, abrindo maior espaço para o emprego de educados; mas também à ampliação do período de "juventude" das classes médias, que passou a incluir os anos de educação universitária, postergando, desta forma, o momento de entrada dos jovens no mercado de trabalho. Também concorreu para esta expansão um fenômeno geral de "upgrading" de uma série de atividades profissionais anteriormente de nível médio -- magistério, contabilidade, enfermagem, entre outras -- assim como o surgimento de uma série de "novas profissões" em busca de reconhecimento legal e profissional.

O segundo condicionante estrutural é o da limitação de recursos. No passado, os sistemas de ensino superior eram baratos porque eram de tamanho reduzido, não tinham grandes custos de equipamento e instalações, não havia pesquisa regular, e a atividade de magistério era predominantemente honorária, com a quase totalidade dos professores ganhando seus salários nas respectivas profissões. Os alunos, por sua parte, eram sustentados por suas famílias. Hoje os sistemas são muito maiores, existem demandas crescentes por equipamentos e instalações, formou-se um corpo de funcionários e professores profissionais, e muitos estudantes, oriundos de setores sociais menos privilegiados, dependem de subsídios diretos e indiretos para poder estudar. A capacidade ou o interesse dos diversos governos em atender a estes custos crescentes certamente varia, mas dentro de limites relativamente estreitos, dados pelo volume global de recursos disponíveis, assim como por outras demandas em competição.

O terceiro componente é a diversificação. Independentemente da política adotada pelos respectivos governos -- a manutenção do princípio do sistema único, como no Brasil, ou a introdução formal da diversificação, como no caso do Chile -- todos os países latinoamericanos terminaram com universidades e estabelecimentos de melhor e pior qualidade, de mais e menos prestígio, atendendo preferencialmente a grupos de elite e de camadas sociais mais pobres, com e sem pesquisa, com e sem pós-graduação, e assim por diante.

O quarto componente é o credencialismo. As enormes diferenças salariais e de benefícios indiretos que sempre existiram na América Latina entre os que possuem e não possuem diplomas de nível superior, em contraste com as encontradas nos países mais desenvolvidos, não poderiam ser simplesmente explicadas por diferenças de produtividade entre educados e não educados. Mais importante parece ter sido, historicamente, a estrutura de estratificação social destas sociedades, que sempre obedeceu mais a diferenças de status ou castas do que propriamente de classes. Em situações de pouca mobilidade social, a posse de diplomas universitários podia funcionar como elemento efetivo de acesso aos estratos sociais superiores. O início da expansão do ensino superior na região, a partir, principalmente, da Segunda Guerra, coincidiu na maioria dos países com uma expansão da economia e particularmente do setor de serviços, o que permitiu que os privilégios assegurados aos diplomados continuassem a ser mantidos, reforçando, desta forma, a percepção de que a educação era efetivamente um instrumento de mobilidade social. O resultado foi uma demanda inflacionada por credenciais universitárias, cujo valor de mercado começou a diminuir com o tempo, mas que mantiveram sempre seu valor relativo quando comparadas à sua ausência, principalmente para pessoas originárias dos estratos sociais menos privilegiados. O credencialismo é um dos grandes responsáveis pela generalização e persistência da demanda por educação de baixa qualidade na região, assim como pela tendência ao "upgrading" das credenciais educacionais em profissões tradicionalmente de nível secundário.

Todos estes condicionantes, finalmente, se dão em um contexto sócio-econômico similar, que é do intenso processo de urbanização sofrido por todos estes países, que não foi acompanhado, no mesmo grau, pela modernização e sofisticação de seus sistemas produtivos. Chile e Argentina primeiro, Brasil, Colômbia e México mais tarde, todos estes países passaram por um forte achatamento do nível de vida de suas classes médias, gerando, em alguns casos, fenômenos de emigração maciça de pessoal de nível superior, e uma acentuação do papel socialmente regressivo que a educação costuma desempenhar em situações de estagnação. Este condicionamento mais amplo ajuda sem dúvida a entender o clima de mobilização política, alternado com o de frustração, que cerca os sistemas de ensino superior do continente.

4. Política e Políticas governamentais

Os governos latinoamericanos têm reagido à crise do ensino superior e sua expressão política por um contínuo que vai da reação política imediata e de curto prazo a tentativas de desenvolvimento de políticas mais racionais e de longo prazo. No Chile, Argentina e Brasil, governos militares que sucederam a períodos de maior mobilização popular interviram nas universidades de forma mais ou menos violenta, expulsando estudantes e professores, e colocando suas administrações sob forte tutela governamental ou militar. Com o tempo, no Chile como no Brasil, estas políticas repressivas deram lugar a tentativas de estabelecimento de políticas de longo prazo, pela utilização de uma série de instrumentos de ação governamental que cabe analisar. O fim dos regimes autoritários, no Brasil como na Argentina, também deu lugar a ações governamentais de curto prazo, como a generalização da autonomia das universidades brasileiras, e a política de admissões abertas da Universidade de Buenos Aires. É possível que estas políticas de abertura também se façam suceder por formas de ação mais prolongadas.

Seria simplista, e um equívoco tecnocrático, considerar que políticas reativas e de curto prazo corresponderiam a comportamentos irracionais por parte dos governos, enquanto que políticas de médio e longo prazo seriam aquelas do reino da racionalidade. A autonomia das universidades, seus sistemas internos de decisão, a existência e o papel de entidades inter-universitárias, a atuação de sociedades científicas e associações profissionais, todos estes elementos, de natureza essencialmente política, dão o contexto dentro do qual políticas de mais longo prazo podem ou não ser implementadas com sucesso. É possível supor que, nos extremos -- quando a capacidade de decisão e ação governamental é completamente tolhida pela mobilização política no interior do sistema universitário, ou, pelo contrário, quando toda a vitalidade do sistema é exaurida pelo controle político, administrativo e burocrático governamentais -- nenhuma política de maior alcance parece ser possível. São as situações intermediárias que parecem as mais promissoras, e é a natureza deste "mix" que a análise comparada das experiências latinoamericanas pode ajudar a entender.

5. Os instrumentos de ação

Existe uma série limitada de instrumentos de política educacional que têm sido utilizados com graus diferentes de sucesso ou frustração na América Latina. A análise comparada das diversas experiências nacionais deve permitir entender mais do que sabemos hoje sobre os limites e as possibilidades de cada um deles, assim como sobre seu papel em relação a alguns dos problemas mais candentes. O quadro abaixo apresenta uma lista preliminar destes instrumentos, assim como algumas sugestões a respeito de seu papel em relação a um conjunto também limitado de fins. Os sinais de "+" sugerem um efeito positivo, os de "-" um efeito negativo, e os de "?" a possibilidade de efeitos contraditórios. Ainda que o quadro seja auto-explicativo, alguns comentários podem ser feitos sobre alguns ítens, como exemplos das análises que podem vir a ser feitas.

A supervisão governamental estrita tem sido a forma tradicional de controle dos governos sobre os respectivos sistemas educacionais, e existe razoável consenso a respeito de seus problemas e limitações. O mais interessante, aqui, talvez seja examinar em que medida tem sido possível, nos diversos países, superar os mecanismos tradicionais de controle e supervisão governamental, e substituí-los por mecanismos de outro tipo.

Investimentos na formação de recursos humanos - bolsas de estudo, cursos intensivos de formação de professores, etc - tem sido também uma política muito adotada, em períodos de maior boa vontade dos governos para com as universidades. A principal questão, em relação a isto, é que muitas vezes programas ambiciosos de formação de recursos humanos não produzem os resultados esperados, seja pela perda dos formados para outros centros ou países, seja pela inércia organizacional que termina por expelir ou baixar o nível das pessoas retreinadas, ou por outros fatores. Trata-se, assim, de um instrumento tradicional, cujos efeitos duvidosos explica, em boa parte, a busca de outros instrumentos por parte de universidades e agências governamentais.

A autonomia universitária tem sido também uma reivindicação tradicional das universidades, e objeto tanto de esperanças quanto de críticas e questionamentos. Parece não haver dúvidas que boas universidades necessitam da autonomia para se desenvolver e preservar sua qualidade; a mesma capacidade de preservação parece se aplicar, no entanto, também para as ruins. O uso de autonomia como instrumento deliberado para a obtenção de fins específicos, e não simplesmente como reivindicação política, merece uma atenção que ainda não recebeu.

O incentivo à pós-graduação e à pesquisa científica também deve ser visto como possível instrumento de melhoria do sistema universitário. A tese clássica, aqui, consagrada por exemplo na legislação brasileira, é a da indissolubilidade do pesquisa e do ensino. Na prática, no entanto (e também na teoria) existem problemas importantes nesta interface entre pesquisa e ensino, um dos mais sérios sendo a desqualificação que a introdução da pesquisa freqüentemente produz para a atividade pedagógica.

A introdução de mecanismos gerenciais modernos na gestão das universidades tem sido freqüentemente proposta como instrumento capaz de levar a um uso mais racional dos recursos públicos ou privados, e manter seus padrões de qualidade. Existe certamente um grande espaço para a melhoria da qualidade de gestão nas instituições de ensino superior da região. Parecem faltar, no entanto, incentivos suficientes para que eles sejam introduzidos de forma mais sistemática no setor público. Só as universidades mais ricas, e mais dispendiosas (como a Universidade de São Paulo), parecem ter se movido nesta direção; é possível presumir que elas conseguem, desta forma, utilizar seus recursos de forma mais racional, mas não necessariamente diminuír seus custos. Em relação ao setor privado, haveria que ver em que medida a adoção de critérios de racionalidade econômica e administrativa tem efetivamente contribuído para melhorar a qualidade do ensino, ou, ao contrário, difundir "produtos educacionais" de baixa qualidade, fácil consumo e baixo preço, que são adquiridos por um público menos exigente.

A recuperação de custos, na forma de cobrança de anuidades e venda de serviços, também tem sido apresentada não só como uma forma efetiva de reduzir os custos do ensino superior, como também como um mecanismo para reduzir a demanda credencialista por diplomas, que tenderia a diminuir naturalmente quando o custo da educação deixasse de ser zero, ou negativo. Em alguns casos, como no Brasil, a recuperação de custos tem sido defendida também como uma forma de eqüidade social, dado o recrutamento elitizado das universidades públicas.

A experiência internacional mostra, no entanto, que seria impossível cobrir os custos mais significativos do ensino e da pesquisa com recursos oriundos dos estudantes ou da venda de serviços. Este fato, aliado ao custo político que implicaria a passagem de sistemas gratuitos a sistemas pagos, fez com que na maioria dos países a recuperação de custos não fosse introduzida, ou ficasse restrita ao setor privado. Haveriam algumas experiências, no entanto - como a do Chile, principalmente, e também as de sistemas de crédito educativo - que mereceriam um exame mais aprofundado.

Um caminho possível de transformação das burocracias governamentais seria no sentido de orientá-las para o desenvolvimento de atividades de avaliação e acompanhamento do desempenho efetivo das instituições de ensino, em substituição aos controles formais e "a priori". O tema da avaliação entrou definitivamente para o universo do ensino superior brasileiro, que já apresenta um número significativo de experiências em andamento, seja no nível de pós-graduação - conduzido pelo Ministério da Educação CAPES - seja por iniciativas de universidades isoladas, seja, finalmente, pela iniciativa privada, como é o caso da Editora Abril, que publica um "guia" das universidades brasileiras.

6. Problemas e Instrumentos

  Problemas
custos crescentes públicos diferenciados problemas de qualidade credencialismo relevância
Instrumentos:          
mais supervisão governamental   - +    
formação de recursos humanoas   - +   +
autonomia universitária ? + ? ? ?
incentivo à pós-graduação e à pesquisa - - ++   ?
privatização + + ? ? ?
novas tecnologias gerenciais ?   +    
recuperação de custos + + ?   +
avaliação acadêmica ? ? +   +
novas tecnologias educacionais ? + ?   ?
diferenciação horizontal ? + ?   +
diferenciação vertical - + +?   ?



Nota:

1. Esta descrição sumária do estado atual do ensino superior na região se baseia em FLACSO, Estudio Comparado de Políticas de Educación Superior en 5 países de la región latinoamericana (proyecto de investigación), Santiago, Chile, 1989 (manuscrito). <