Karl Polanyi, A Grande Transformação - as origens de nossa época. Rio de Janeiro, Editora Campus Ltda, 1980. Tradução de Fanny Wrobel

Simon Schwartzman, resenha bibliográfica, 1980

Publicado originalmente em 1944, de grande impacto nas ciências sociais em todo o mundo, mas praticamente desconhecido no Brasil, o livro de Polanyi surge em nosso meio com atualidade renovada: ele se contrapõe de forma quase premonitória à onda de pensamento econômico neo-liberal que, a partir de Chicago e dos "Reaganautas", começa a nos invadir.

Essencialmente, o livro é uma análise profunda, fortemente apoiada em materiais de tipo histórico, do que foi a revolução liberal que varreu o mundo ocidental no século dezenove, e quais foram e ainda são as conseqüências desta revolução para o século vinte. A tese é que a economia de mercado, que na realidade nunca foi tão liberal assim, foi um fenômeno específico dos novecentos, sem muitas raízes no passado mais remoto e sem condições de sobreviver ao século vinte.

De fato, mostra Polanyi, os anos 20 e 30 de nosso século marcam o fim de um período de "cem anos de paz" que caracterizaram o apogeu do liberalismo novecentista. O progresso econômico que prevaleceu naqueles anos esteve apoiado, segundo ele, em quatro instituições interligadas: o sistema de "equilíbrio de poder" entre as grandes potências européias (que serviu de modelo para a estratégia Kissingeriana do governo Nixon); o padrão ouro internacional, que permitia o comércio e as transações financeiras internacionais; o mercado auto-regulável; e o Estado liberal e não-intervencionista. A análise conjunta destas quatro instituições mostra que o equilíbrio econômico internacional e o progresso que ele permitiu estavam longe de ser simples resultado da "mão invisível" do jogo dos interesses individuais, como pretendia a ideologia econômica liberal. Ao contrário, ele dependia totalmente de um pacto político internacional altamente intervencionista, simbolizado pela Santa Aliança, e de um sistema financeiro fortemente integrado e coordenado, que garantia a vigência do padrão ouro.

A teoria econômica liberal difundiu a idéia de que a busca do enriquecimento individual é uma característica "natural" dos homens, e que qualquer interferência com ela é "artificial" e danosa. Polanyi busca evidências na história e na antropologia para mostrar que, na realidade, a atividade econômica sempre esteve, no passado, integrada e embebida em outras atividades de tipo social, e que a primazia do econômico, assim como a expansão e o predomínio do mercado, são fenômenos essencialmente modernos. Ao transformar a terra; o trabalho e dinheiro em mercadorias "fictícias", o mercado capitalista vai pouco a pouco corroendo à própria sociedade que lhe deu origem e condições de surgir e de se desenvolver. Polanyi faz um estudo aprofundado do desenvolvimento capitalista na Inglaterra em relação às chamadas "leis dos pobres", que tratavam, de alguma forma, de proteger certos setores da sociedade do avanço avassalador do mercado. Estas leis se mostraram incompatíveis com o desenvolvimento capitalista, e foram sendo progressivamente abolidas. Segundo a ideologia- liberal, o resultado seria o fim da pobreza, ainda que pelos rigores da seleção malthusiana. Na realidade, a pobreza na Inglaterra e em outros países capitalistas só foi sendo progressivamente diminuída mais tarde pela reintrodução de uma série de instituições sociais e políticas - os sindicatos, os partidos políticos de base popular e operária, a legislação social - que conseguiram, em boa parte, "interferir com as leis da oferta e da procura em relação ao trabalho humano, afastando-o da órbita do mercado" (p. 179).

A crise internacional posterior à primeira guerra destrói as condições de paz e estabilidade financeira que garantiram a do mercado capitalista, e levam a regimes que, cada qual à sua maneira, procuram restabelecer o predomínio do "social" sobre o econômico, ou seja, o fascismo e o socialismo. O fascismo, para ele, surge como " resultado inevitável da filosofia liberal", ao levar às últimas conseqüências um realismo político que deriva do reconhecimento de seus aspectos utópicos. o socialismo também seria realista, mas trataria de reconciliar à incorporação da realidade social com os ideais da liberdade dos homens. Não necessariamente o socialismo histórico, soviético, "que usou o planejamento, a regulação, e o controle como seus instrumentos (mas) ainda não pôs em prática as liberdades prometidas na sua constituição"; más o socialismo ético de Robert Owen, capaz de reconhecer as limitações e as potencialidades das sociedades complexas.Escrito nos anos da Segunda Guerra Mundial, que assinalava o fracasso das tentativas de restabelecer a ordem liberal novecentista e o horror de muitos dos regimes que lhe sucederam, a obra de Polanyi termina em tom otimista mas reservado e cauteloso.

Ele talvez não imaginasse que, alguns anos depois, um novo equilíbrio de poder iria se estabelecer, reservando um lugar importante ao socialismo mas permitindo também o renascimento e expansão do capitalismo sob o manto protetor da Pax Americana e do signo do dólar. Pouco mais de 30 anos, no entanto, seriam suficientes para que as tensões começassem a surgir na nova ordem, tanto ao nível de seus controles políticos e financeiros internacionais, quanto das contradições entre a economia de mercado e as formas crescentes de auto-proteção da sociedade que sempre lhe acompanham. O renascimento da retórica liberal novecentista, neste novo contexto, lhe seriam extremamente familiares, e certamente o levariam a reescrever seu livro para mostrar suas limitações e lembrar que o ser humano é, acima de tudo, não um ser econômico, mas um ser social. <