A Ciência no Período de Pós Guerra

Simon Schwartzman

Palestra proferida por ocasião do "II Módulo do Programa de Política e Admionistração em Ciência e Tecnologia" 1989.

Queria inicialmente agradecer ao CNPq pela oportunidade de participar deste painel. O tema que ofereceram é, evidentemente, amplo demais. Como não poderia falar sobre o cenário político-econômico social mundial em trinta minutos, resolvi utilizar essa oportunidade para discutir um pouco o contexto internacional do período pré e pós-guerra em relação à ciência e tecnologia, que me parece ser importante em relação ao que viria a acontecer no Brasil nos anos posteriores.

Gostaria de começar observando que, no período anterior à Segunda Guerra, a atividade tecnológica e a pesquisa científica tinham uma área de intersecção relativamente pequena. Havia a tecnologia da indústria tradicional, de tecido, de máquinas, etc. que era um tipo de conhecimento que havia se desenvolvido e permanecia restrito no setor industrial; e havia uma ciência que era predominantemente acadêmica: astronomia, física, botânica, etc. organizada nas Academias de Ciências ou nas Universidades. Em algumas áreas havia uma superposição, uma interpretação da ciência e da atividade aplicada, como por exemplo na indústria química ou em algumas profissões que tinham um conteúdo científico mais marcado, como a profissão médica. Essa situação muda dramaticamente com a Segunda Guerra Mundial. Na realidade, ela começa a mudar já antes, numa discussão que começa a haver na Europa a respeito do relacionamento entre a atividade científica e o Estado.

Uma parte importante dessa discussão se origina na União Soviética, onde começa a ficar consagrada a idéia de que a ciência é uma atividade que está (e deve estar) ligada fundamentalmente á atividade produtiva, como fator de produção, e isso justifica o movimento do governo soviético de tirar a ciência de seu isolamento acadêmico e colocá-la a serviço do esforço do desenvolvimento econômico e social. Estas idéias são recebidas com entusiasmo por um grupo de intelectuais ingleses, liderada por um cientista famoso, J. D. Bernal, que escreve um livro de grande impacto denominado The Social Functions of Science, ao final da década de 30; elas também chegam à França, principalmente através da família de Marie Curie, ligada historicamente ao Partido Comunista Francês. A preocupação de fazer da ciência uma atividade engajada se explica em grande parte pelo contexto da guerra, pela necessidade imperiosa de conter o avanço do nazismo. Cientistas ingleses tiveram efetivamente um papel de grande importância durante a guerra, decifrando o código secreto dos alemães, desenvolvendo o radar, e se engajando mais tarde, já nos Estados Unidos, no Projeto Manhattan, de construção da bomba atômica.

A Alemanha nazista, por sua vez usava argumentos semelhantes para colocar seus cientistas a serviço de suas atividades militares. A ciência não é uma atividade solta, argumentavam, mas deve estar ligada aos interesses da nação. A ciência tem que ser nacional, e na Alemanha daqueles anos isto significava anti-semitismo, atestados e juramentos ideológicos, filiação dos cientistas ao partido nazista, e assim por diante.

Tanto na Alemanha quanto na União Soviética, esta visão aparentemente óbvia da importância social e econômica da ciência terminou justificando arbitrariedades de todo o tipo, e, em última análise, retrocessos científicos significativos (os alemães recusavam as teorias "judáicas" da relatividade de Einstein, enquanto que os soviéticos agrediam a tudo que lhes parecia ciência "burguesa", da genética à psicoanálise. Isto explica a grande reação quanto e estas colocações em muitos círculos científicos de tradição mais liberal. No Inglaterra se dá um grande um debate entre os "bernalistas", os defensores da idéia de que a ciência é (e deve estar) intimamente ligada ao sistema social mais amplo, e o grupo talvez mais conhecido pelo trabalho de Michael Polanyi, que procura demonstrar que a atividade científica supõe a existência de comunidades independentes e autônomas, e que por isto só pode sofrer quando submetidas a injunções políticas, partidárias o econômicas.

O livro escrito por Polanyi, Personal Knowledge(1), inaugura uma linha de pensamento importante na sociologia e na filosofia do conhecimento científico contemporâneo, onde se procura mostrar que que a atividade científica não ocorre no livre espaço das idéias puras, descarnada das pessoas, nem tampouco se explica ou se entende por conceitos políticos ou sociais muito abrangentes, como os de regime político, classe social ou ideologias. ciência não pode ser en é muito importante no discurso sobre ciência, que é mostrar que a atividade científica tem como fundamentação social um grupo de pessoas da comunidade e, a partir deste grupo constrói-se um paradigma de conhecimento, que dá um embasamento intelectual a atividade do conhecimento. Thomas Kuhn, continua na mesma linha de Polanyi, desenvolvendo uma teoria sobre a natureza e as transformações dos paradigmas científicos, como fenômenos dotados de uma dinâmica própria, irredutível tanto a epistemologias abstratas quanto a contextualizações sócio-políticas ou ideológicas(2). Uma outra pessoa que escreve também nessa linha é o sociólogo americano Robert Merton, que tem um trabalho clássico escrito na década de trinta, sobre as funções sociais da ciência na Inglaterra no século XVII(3). É um trabalho que procura mostrar como a ciência surge na Inglaterra ligada a uma ética de trabalho purritana, numa concepção pãrecida com as idéias de Max Weber sobre a influência da ética protestante no surgimento do capitalismo. Mais tarde Merton elabora toda uma sociologia da ciência que tem como ponto central a análise do que se poderia denominar a ética, ou o ethos próprio dos cientistas -- a valorização do conhecimento enquanto tal, o ceticismo quanto às autoridades estabelecidas, o comunismo na distribuição dos resultados da pesquisa, e assim por diante(4)

A guerra entre a União Soviética e a Alemanha obscureceu o fato, hoje claro, que ambos compartiam a mesma visão do papel da ciência na sociedade. A derrota do nazismo fez desapãrecer a vertente mais virulentamente racista e nacionalista desta concepção, enquanto que a vitória soviética fortalecia sua versão mais ideológica e social.

Esta questão também surge de maneira dramática nos Estados Unidos com a construção da bomba atômica. É uma história fascinante, tanto no que se refere à mobilização dos cientistas pelo projeto, quanto em relação ao destino final de seu produto. evidentemente há uma mobilização dos cientistas, quanto ao destino do seu invento.

No início há todo um trabalho de convencimento do governo de que os cientistas poderiam resolver o problema da guerra, se eles recebessem o apoio na forma e no volume de recursos que fosse necessário. Uma famosa carta de Albert Einstein ao Presidente Roosevelt parece ter sido decisiva. Os cientistas assumem o projeto com grande entusiasmo, tanto pelo que poderia significar militarmente, quanto, talvez principalmente, pela oportunidade que tinham de explorar os limites do conhecimento com todos os recursos que poderiam desejar. Uma vez pronta a bomba, no entando, ela escapa de suas mãos. Os cientistas não opinam sobre seu uso, assistem perplexos ao bombardeio de duas cidades povoadas por civis, e começam rapidamente a se questionar sobre o que fazer com os conhecimentos que possuem.

Não seria possível reconstruir aqui toda a história da luta de um grupo importante de cientistas norteamericanos paor reaver o controle do uso da energia nuclear, já no contexto da guerra fria com a União Soviética. Tentou-se colocar a energia nuclear sob controle de uma comissão dominada por cientistas. Alguns, simpáticos à União Soviética, argumentavam que os Estados Unidos deveriam compartilhar os segredos militares e não ter monopólio sobre os mesmos, porque isso poderia ser a causa de uma guerra mundial. Chegou-se ao extremo de espionagem, com a entrega os segredos militares com a União Soviética e a condenação à morte do casal Rosemberg. Todos estes eventos do pós-guerra refletem a perplexidade nos cientistas com as conseqüências, digamos, diabólicas, do pacto faustiano que fizeram com o Estado. Essa situação adquire caracteristicas ainda mais dramáticas no período da guerra fria, quando o controle militar e o controle ideológico, basicamente militar e estatal sobre a indústria nuclear nos estados atinge o seu ponto extremo, levando ao ostracismo de Oppenheimer, uma das figuras centrais na invenção da bomba atômica. Em seu lugar vai surgindo aos poucos a figura de E. Teller, considerado o pai da bomba de hidrogênio, e também o pai da "guerra nas estrelas". Teller é caricaturizado como o "Dr. Strangelove" em um filme famoso, quando pula de um avião montado, como um " cowboy" em sua bomba atômica querida. Na caricatura, surge o tipo de cientista sem princípios, fascinado com o poder que o conhecimento lhe proporciona, e que só vê com desprezo os que ainda defendem os ideiais românticos da ciência pura do passado.

Esse é o contexto, essas são as discussões e dilemas que surgem no contexto internacional a partir da segunda guerra mundial. Essa discussão continua até hoje, como numa tensão mais ou menos latente que ocorre, em quase todos os países do mundo, entre a pesquisa que se faz ligada à área militar aos grandes complexos industriais e aquela que se dá basicamente na área acadêmica e na área universitária, segundo as normas científicas mais tradicionais. Os países que, hoje em dia, conseguem ter uma atividade científica complexa, rica e diferenciada, são os que de alguma maneira conseguem fazer as duas coisas. Eles não subordinam completamente a atividade científica ao complexo industrial-militar. Tratam de manter uma área grande e ampla da atividade científica fucionando dentro do modelo polaniyano, acadêmico -- mas evidentemente o outro lado também existe. Nos Estados Unidos os dois tipos de pesquisa se desenvolvem simultaneamente. Quando os russos lançaram o Sputnik, e os americanos julgaram que estavam perdendo a corrida científica e tecnológica, responderam dando incentivo não só a pesquisa militar mas, também à pesquisa acadêmica.

As fronteiras entre estes dois tipos de pesquisa, que já se haviam tornado confusas durante a guerra, tornaram-se ainda mais embaralhadas com o surgimento da uma indústria de base científica, não só na área química mas também na eletrônica e em outras áreas. Esse é um fenômeno que eu diria ser mais recente, dos últimos quinze ou vinte anos.

O que acontece no Brasil, enquanto isto? O Brasil tem uma tradição de não valorizar a ciência acadêmica; toda a tradição brasileira é muito aplicada e imediatista. No passado, nossos melhores pesquisadores na área da saúde buscavam soluções para as doenças tropicais e faziam todo um esforço para desenvolver, ao lado, uma pesquisa mais acadêmica, mais universitária, menos ligada a resultados de curto prazo; mas era um tipo de "desvio" que sempre encontrou muita resistência e incompreensão. Há um famoso livro do matemático Amoroso Costa, década de vinte e trinta que se chama, Pela Ciência Pura(5). É uma das poucas defesas da idéia de que o Brasil deveria começar a desenvolver uma ciência que não tivesse objetivos de curto prazo, mas que se preocupasse, sobretudo, com o desenvolvimento da própria ciência, e com a formação de verdadeiros cientistas. Não era uma idéia muito popular.

O conhecimento científico como atividade intelectual e cultural, apoiado fortemente em instituições universitárias, é uma concepção é que nunca ganhou muita voga em nosso meio; quando começa a se difundir no Brasil a idéia de que a universidade deve incluir a pesquisa, na década de 60, isto é justificado em termos daquilo que ela poderia fazer de útil para o desenvolvimento econômico e social, e inclusive militar, do país. Antes, nos anos 50, tivemos a criação do CNPq no bojo de um ambicioso (ew frustrado) porjeto militar de desenvolvimento da tecnologia nuclear.

A Universidade de São Paulo, criada na década de 30 dentro de uma concepção muito mais acadêmica, é a grande exceção a esta regra. Apesar de que muitas das instituições que vieram a integrar a Universidade tivessem uma vocação aplicada e prática, sua grande inovação, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, não visava a nenhum objetivo de curto prazo; mas é de lá que terminam saindo muitos dos cientistas brasileiros mais competentes, alguns dos quais se dedicaram, depois, a projetos com objetivos mais imediatos e práticos.

É interessante lembrar um pouco da história de nossos físicos nucleares. No final dos anos 30 o Brasil começa, graças à presença de alguns físicos e matemáticos vindos da Itália para a USP, a formar um pequeno grupo de pesquisadores de boa qualidade, que começam a trabalhar numa área de fronteira da época, a de física de altas energias. Durante a guerra, enquanto os melhores cientistas do ocidente estavam construindo a bomba atômica, os brasileiros continuavam pesquisando, estudando partículas e física teórica, e os trabalhos apareceram depois da guerra. É este pequeno grupo de físicos bem treinados, alguns deles, como Cesar Lattes, que adquirem alguma projeção internacional, que vai ser chamado para participar da tentativa de trazer o Brasil para a área da política nuclear, para construir, se não uma bomba atômica, pelo menos a energia atômica no Brasil. É este projeto que leva à criação do CNPq, da Comissão Nacional de Energia Nuclear e a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no início dos anos 50.

Este projeto fracassa por uma série de razões, entre as quais, a pressão norte-americana, que veta a tentativa brasileira de ter uma política nuclear própria. Mas haviam, possivelmente outros problemas, entre os quais o próprio desconhecimento que os físicos brasileiros tinham da tecnologia nuclear. O fato é que, a partir de 1954-1955, esse projeto é basicamente abandonado, e o Conselho Nacional de Pesquisas passa a ser um órgão de apoio à pesquisa científica em menor escala, convencional.

Em resumo, esta história nos diz que a primeira tentativa de implantação de uma política científica nacional, está muito no espírito da guerra e do pós-guerra, que é o de colocar a ciência a serviço de projeto nacional de forte componente militar. Não é atoa que Álvaro Alberto era militar e almirante. A ciência é vista como atividade de Estado, de segurança nacional, e sujeita a todas as vicissitudes - mas, se der certo, todos os recursos - que isto implica.

Eu diria concluiria dizendo que o debate a que estou me referindo, e que balançou as comunidades científicas na Europa e nos Estados Unidos, praticamente não chegou ao Brasil. Apesar de que tivéssemos um Amoroso Costa, que defendia a ciência pura no início do século, no Brasil nunca se discutiu realmente a sério sobre a relação que a atividade científica deve ter com o Estado, por um lado e com a indústria por outro. No Brasil nunca discutiu-se realmente qual é o espaço da atividade acadêmica, qual o espaço de autonomia do cientista, qual o espaço de autonomia da pesquisa. Qual é o grau de interferência que o Estado pode ou deve ter e, qual o grau de comando que o Estado pode ou deve ter sobre a atividade científica.

A experiência internacional indica duas coisas: quando o Estado entra na área científica, ele pode carrear uma quantidade de recursos muito grande, o que pode produzir alguns resultados espetaculares: a bomba atômica, o homem na lua. A experiência internacional também parece mostrar que os países que só fazem isso, ou que subordinam a sua atividade científica a necessidades de curto prazo ou a um comando militar direto e político, em geral não conseguem desenvolver suas atividades científicas de maneira adequada. O grande exemplo contemporâneo parece ser o da União Soviética, que agora se dá conta de seu atrazo, apesar de tantas façanhas tecnológicas.

Pode ser que lembrar os dilemas vividos pelos cientistas nesse período da guerra e do pós-guerra, seja útil quando estamos no Brasil, nos confrontando com os destinos incertos toda uma estrutura governamental na área de ciência e tecnologia construída nos últimos anos.


Notas

1. Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy, Londres, 1962.

2. Thomas S. Khun, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago University Press, 1970.

3. Rober K. Merton, Science, Technology and Society in Seventeenth Century England, New York, Harper, 1970.

4. Rober K. Merton, The Sociology of Science: Theoretical and Empirical Investigations, editad por Norman W. Storer, Chicago, University of Chicago Press.

5. Publicado em Idéias Fundamentais da Matemática e outros ensaios,Ed. Grijalbo e Universidade de São Paulo, 1971. <