
A Redescoberta da Cultura
 O Sentido da Interdisciplinaridade 
Simon Schwartzman
Publicado originalmente em Novos Estudos 
                  CEBRAP 32, março, 191-198. Publicado em A Redescoberta 
                  da Cultura, EDUSP, 1997.
      
      
O ensino de graduação em ciências sociais e humanidades passa por momentos 
        de perplexidade, e é bastante razoável indagar se parte da solução não 
        estaria na busca de uma interdisciplinaridade efetiva entre as diversas 
        linhas de trabalho que hoje coexistem sob esta denominação tão geral. 
        Eu gostaria de tratar desta questão desde quatro pontos de vista. O primeiro, 
        mais geral, consistirá em uma breve discussão sobre o que são as "ciências 
        sociais" e as humanidades; o segundo será uma tentativa de ligar 
        este tema mais geral ao contexto da Faculdade de Filosofia da USP, em 
        uma perspectiva histórica. O terceiro será uma discussão sobre a questão 
        da interdisciplinaridade; finalmente, eu tentaria fazer algumas conexões 
        entre a questão da interdisciplinaridade e a discussão sobre as perspectivas 
        futuras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. 
      
"Ciências Sociais" e "Ciências Humanas", 
        ou humanidades, são expressões quase sinônimas em nosso meio. No entanto, 
        elas têm sentidos distintos em seu ambiente de origem, na Europa, e o 
        fato de parecerem intercambiáveis talvez explique algo de nossas atuais 
        dificuldades. 
      
Na tradição européia, a separação entre "humanidades" e "ciências" 
        correspondia, essencialmente, à divisão entre o "trivium" (gramática, 
        retórica e lógica) e o "quatrivium" (geometria, aritmética, 
        música e astronomia), que formavam as sete "artes liberais" 
        cujo estudo precedia a educação para as profissões universitárias, o direito, 
        a teologia e a medicina. Com o tempo, o campo das humanidades se ampliou 
        com o estudo da filosofia, da literatura e da história, enquanto que as 
        ciências se ampliaram pela incorporação da biologia, da física e da química. 
      
      
A história da separação entre as humanidades e as ciências, e entre os 
        cursos propedêuticos e profissionais, é tão interessante quanto a das 
        diversas tentativas de romper esta divisão. Nos tempos antigos, as humanidades 
        e as ciências não eram vistas como tão estanques como parecem hoje, como 
        se pode ver nas ligações entre a matemática e a música, a filosofia e 
        a física (denominada no passado de "filosofia natural"), assim 
        como nos conteúdos éticos, religiosos e mágicos presentes no estudo da 
        astronomia (como astrologia) e da química (como alquimia). De Aristóteles 
        a Auguste Comte, imaginava-se que seria possível desenvolver uma cultura 
        verdadeiramente universal, e educar as pessoas para que elas pudessem 
        se mover com igual naturalidade no mundo as letras, das artes e das ciências. 
        Com o tempo, no entanto, as diferenças foram se aprofundando, não só pela 
        quantidade de informação e especialização que cada uma requeria, como 
        principalmente pela diferença de estilos cognitivos e modelos intelectuais 
        típicos das "duas culturas" do conhecimento. De um lado, uma 
        cultura baseada no uso extenso de várias linguas, e na familiaridade com 
        tradições literárias extensas e sutis; no outro, o uso do raciocínio abstrato 
        e dedutivo, a organização sistemática das informações, o uso cada vez 
        maior de instrumentos e a manipulação direta da natureza. 
      
A segunda transformação foi o desenvolvimento das profissões de base 
        técnica e científica a partir do século XIX, com a química na Alemanha, 
        a engenharia na França, e mais ou menos em toda a parte a medicina de 
        base empírica e experimental, que começou a romper com a divisão, e sobretudo 
        com a hierarquia entre "conhecimento puro" e "conhecimento 
        prático", ou aplicado. Os ponto essenciais, aqui, foram o desaparecimento 
        da distinção, antes tão nítida, entre os níveis propedêutico, formativo, 
        e o profissional; e o surgimento de profissões liberais baseadas não mais 
        nas humanidades, mas na ciência empírica, de prestígio e reconhecimento 
        crescentes. Na França, a educação propedêutica, de cunho humanista, ficou 
        quase que restrita aos centros de formação de professores e ao ensino 
        de segundo grau, enquanto que as escolas superiores se dedicaram exclusivamente 
        ao ensino para as profissões, com ênfase na engenharia e no aprendizado 
        da matemática; é desta forma que a École Normale se desenvolve como o 
        grande celeiro de intelectuais humanistas, enquanto que a École Polytechnique 
        se constitui no principal centro das formação de elites políticas e administrativas. 
        A Alemanha e a Inglaterra mantiveram a engenharia e o ensino técnico fora 
        das universidades, abriram algum espaço para as ciências naturais, mas 
        insistiram em manter suas universidades como centros de formação nas humanidades, 
        que preparavam para as carreiras no serviço público e na política. 
      
A tentativa de transformar as humanidades em "ciências sociais" 
        é uma história complexa, e em grande medida um fenômeno francês, no esforço 
        de dar a elas o "status" intelectual que as ciências naturais 
        gozavam naquele país. Em parte, esta transformação foi tentada pela incorporação, 
        às humanidades, de alguns paradigmas analíticos e indutivos próprios das 
        ciências naturais, como o uso da estatística, dos modelos experimentais 
        e da formalização matemática. Além desta origem acadêmica, as ciências 
        sociais se desenvolveram em muitos países europeus, e também nos Estados 
        Unidos, como tradições independentes de trabalho na área da criminalidade, 
        da educação, da pobreza e do desajuste social. Trata-se, assim, de um 
        duplo movimento, um interno ao mundo acadêmico, outro impulsado por pressões 
        e necessidades externas. Em ambos casos, havia o desejo de trazer às questões 
        da sociedade e da cultura o prestígio e, quem sabe, as potencialidades 
        analíticas e preditivas das ciências naturais. Mas as culturas da academia 
        e das novas profissões não se superpunham completamente, tornando ainda 
        mais complexa as divisões e entrecruzamentos entre as ciências e as humanidades. 
      
      
A partir de matrizes institucionais, intelectuais e profissionais tão 
        complicadas, as ciências sociais contemporâneas só poderiam ser como são 
        hoje: múltiplas, contraditórias, incorporando elementos das tradições 
        humanísticas e técnico-científicas, ligadas ao ensino de segundo grau 
        e ao embasamento de profissões emergentes, e divididas em especializações 
        cada vez maiores.
      II
      
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP nasceu em meio a este quadro 
complexo, que se tornou ainda mais difícil pela pluralidade de influências européias 
que recebeu. Instituída em 1934, ela foi criada conforme a legislação de 1931 
de Francisco Campos, copiada da Itália, que ainda retinha o formato universitário 
da universidade clássica abolido na França com a revolução, baseado na concepção 
das ciências e das artes como forma superior de conhecimento, que deveria dar 
fundamento intelectual, científico e ético aos estudos aplicados e práticos. A 
Faculdade foi formada com professores da França, Itália e Alemanha, e desde o 
início viveu os dilemas das diferentes tradições intelectuais de seus professores, 
somados àqueles próprios de nosso meio. 
A idéia central, de que a nova Faculdade de Filosofia deveria servir 
        de ponto de união e base científica para as demais escolas profissionais 
        da nova universidade, fracassou desde o início. Os "filósofos" 
        foram rejeitados pelas faculdades estabelecidas de medicina, agronomia, 
        engenharia e de direito, que desenvolviam à sua maneira suas tradições 
        específicas de pesquisa e de trabalho, e nunca chegou a estabelecer pontes 
        efetivas com os centros de pesquisa científica do Estado, como o Instituto 
        Biológico, o Instituto Butantã ou o Instituto de Pesquisas Tecnológicas. 
        Dentro da Faculdade, a principal tensão se deu entre os que a viam como 
        um centro de formação e pesquisa científica, na tradição alemã, e os que 
        tratavam de orientá-la para a formação de professores de segundo grau, 
        conforme previsto na legislação de Francisco Campos. E haviam ainda os 
        que viam na nova instituição, principalmente, um centro de atividade literária 
        e cultural, um espaço cosmopolita para as "belle-lettres" que 
        não excluía a discussão literária de conceitos e idéias das ciências exatas, 
        em um estilo apreciado pelas elites paulistas, como notou Lévi-Strauss 
        em "Tristes Trópicos". 
      
Se estas tensões já existiam desde o início, elas foram em parte amortecidas 
        pela pouca integração que de fato havia entre os diferentes setores da 
        Faculdade (apesar dos encontros nos corredores e, quem sabe, de certa 
        convivência social), e pelo fato de que nos anos trinta e até, possivelmente, 
        os anos 50, a formação de professores de segundo grau, a formação para 
        as ciências e a formação "cultural" ainda não haviam se tornado 
        tão distantes como atualmente, principalmente nas áreas das antigas ciências 
        sociais e das humanidades. Mesmo assim, a Faculdade de Filosofia deixou 
        de lado, desde o início, o projeto de formar profissionais na área das 
        ciências sociais, tarefa que ficou para a Escola de Sociologia e Política. 
        De maneira simplificada, pode-se dizer uma divisão de trabalho natural 
        acabou se estabelecendo, com a formação de professores ocupando seu espaço 
        natural nas áreas de geografia, história e letras, os departamentos de 
        física e química desenvolvendo programas de pesquisa e formação para as 
        ciências modernas, e as ciências sociais, aos poucos, encontrando um espaço 
        próprio como centro de pensamento político e de crítica social. Com a 
        reforma de 1971 as ciências naturais buscaram caminhos próprios, criando 
        institutos e departamentos independentes, em aproximação ao modelo das 
        "graduate schools" americanas, de formação de cientistas especializados, 
        como uma profissão paralela às tradicionais. Estes novos centros cresceram 
        e prosperaram, e hoje são responsáveis por parte significativa da pesquisa 
        científica que se faz no Brasil, assim como pelo prestígio nacional e 
        internacional de que a Universidade desfruta. 
      
A Faculdade de Filosofia perdeu as ciências, e ficou somente com as humanidades, 
        as letras e as ciências sociais. Em uma visão negativa, pode-se dizer 
        que ela ficou com o que sobrou. Vista mais positivamente, é possível que 
        ela tenha se mantido fiel aos ideais da unificação dos conhecimentos e 
        da cultura, vendo as ciências naturais como ovelhas desgarradas que um 
        dia voltariam ao aprisco; como um bastião dos antigos ideais da cultura 
        humanística, com um importante componente de reflexão política e crítica; 
        e como centro de formação do professorado de segundo grau. 
      
A esta combinação de funções se juntou um outro elemento, próprio da 
        tradição brasileira, que é a norma de que todos os cursos superiores devem 
        prover uma credencial profissional, para o mercado de trabalho. Neste 
        mercado, a profissão de professor secundário perdeu progressivamente seu 
        prestígio, entre outras razões pela própria expansão das universidades. 
        Com a massificação do ensino superior, ocorrida sobretudo na década de 
        70, aumentou muito o número de alunos dos cursos de ciências sociais e 
        das humanidades, recrutados em grande parte entre aqueles que não conseguiam 
        ingressar em carreiras de mais prestígio, buscando uma profissionalização 
        pouco definida que a Faculdade nunca soube estruturar, e requerendo um 
        atendimento muito mais estruturado pedagogicamente do que a Universidade 
        estava preparada para dar. 
      
O mais importante e o mais complicado talvez tenha sido a idéia de que 
        todas estas funções pudessem ser atendidas ao mesmo tempo, pelas mesmas 
        pessoas, sem uma divisão mais explícita de funções e sem, principalmente, 
        que a maioria das pessoas se desse conta destes diferentes papéis, e das 
        tensões e contradições que poderiam existir entre eles. A unificação das 
        ciências é um belo ideal do passado, tanto quando o homem universal do 
        renascimento. A formação humanística e de ciências sociais de alto nível 
        é ainda um objetivo acadêmico válido e importante, mas claramente incompatível 
        com o ensino massificado. A formação de professores de nível médio está 
        cada vez mais distante da formação do pesquisador, do cientista e do erudito, 
        pelo recrutamento social distinto dos que se dedicam a estas atividades, 
        e pelo tipo de formação que o professor de nível médio requer, muito mais 
        voltada para o conhecimento geral e a pedagogia do que para o conhecimento 
        especializado e a pesquisa. A formação profissional nas ciência sociais 
        continua sendo uma questão difícil e polêmica, com algumas tentativas 
        mais bem sucedidas em alguns países, na área das políticas publicas, por 
        exemplo. Mas, de uma maneira geral, o campo das profissões sociais vem 
        sendo tomado pela administração, a economia e o próprio direito, assim 
        como por algumas carreiras administrativas oriundas do setor técnico, 
        como a engenharia da produção, sobrando pouco para as faculdades de filosofia. 
        Finalmente, se a Universidade ainda retém uma presença intelectual e um 
        papel de centro de reflexão crítica sobre a sociedade como um todo, isto 
        não é, de nenhuma maneira, um papel exclusivo, ou mesmo privilegiado, 
        das antigas faculdades de filosofia, na USP ou fora dela.
      III
      
É neste contexto que surge a questão da interdisciplinaridade, sobre 
        a qual algo já foi dito, indiretamente, mais acima. É bastante óbvio que 
        a divisão do conhecimento entre disciplinas científicas e acadêmicas, 
        ou entre formativas e aplicadas, não se deve a uma divisão "natural" 
        dos objetos na natureza, mas a diferentes tradições de trabalho, estabelecidas 
        por razões históricas e institucionais. Elas não consistem, simplesmente, 
        em corpos de idéias e conceitos diferenciados, mas também em grupos sociais 
        concretos, cada qual com histórias, valores, normas e hábitos de trabalho 
        próprios. Existirão sempre disputas de fronteiras, que jamais serão resolvidas, 
        e o desenvolvimento de disciplinas intersticiais, que eventualmente se 
        transformarão em novas disciplinas. 
      
A natureza contingente e histórica das disciplinas e das profissões não 
        significa que elas sejam intercambiáveis, ou que as divisões e diferenças 
        sejam irrelevantes. É no interior das disciplinas e das profissões que 
        se estabelecem as tradições de pesquisa e de trabalho, e é através delas 
        que se dá a socialização das jovens gerações nos modos de pensar e proceder 
        que são a base sobre a qual o trabalho científico, cultural e técnico-profissional 
        se desenvolve. O trabalho interdisciplinar é, por definição, efêmero, 
        e depende da existência prévia de pessoas formadas em disciplinas bem 
        definidas, que em determinados momentos buscam conhecimentos e estabelecem 
        formas de cooperação com pessoas de outras áreas. Se as "inter-disciplinas" 
        se desenvolvem e se consolidam, elas se transformam em novas disciplinas 
        ou subdisciplinas como é o caso, por exemplo, a biologia molecular, da 
        história econômica ou da físico-química. As tentativas de constituir campos 
        de trabalho a partir de temas, objetos ou problemas específicos, como 
        a educação, o urbanismo, a administração e os problemas sociais, apresentam 
        mais fracassos do que sucessos, e os sucessos que surgem dependem sempre 
        da forte presença de pessoas com formação disciplinar bem definida, em 
        psicologia, economia, sociologia, ciência política, ou pedagogia. 
      
As disciplinas se transformam lentamente, porque fazem parte de instituições 
        muitas vezes pesadas, e o dinamismo de um ambiente científico e cultural 
        pode ser medido, em parte, por sua capacidade de abrir espaço para a modernização 
        de antigas disciplinas, ou para o desenvolvimento de novas. Seria um equívoco, 
        no entanto, supor que a "interdisciplinaridade" tenha um conteúdo 
        bem definido que permita que ela possa, ela mesma, ser institucionalizada, 
        ou que termine por abolir as diferenças, e até mesmo os abismos de comunicação 
        que existem entre as diversas tradições de trabalho. 
      
Clifford Geertz, que tem se dedicado como poucos aos problemas da diversidade 
        e das possibilidades de integração entre culturas, tanto em sociedades 
        tradicionais quanto modernas, nos diz que: 
      
 A esperança, tão difícil de morrer, de que possa surgir novamente 
  (supondo que tivesse existido um dia) uma alta cultura integrada, ancorada nas 
  classes educadas e definindo as normas intelectuais para a sociedade como um 
  todo, deve ser abandonada, em favor de uma ambição muito mais modesta, a de 
  que intelectuais, artistas, cientistas, profissionais e (podemos ter esperanças?) 
  administradores que são tão diferentes, não somente em suas opiniões, nem mesmo 
  em suas paixões, mas no próprio fundamento de suas experiências, possam começar 
  a encontrar algo circunstancial para dizer-se uns aos outros(1). 
      
E mais adiante: 
 O que marca a consciência moderna, como tenho dito até a exaustão, 
  é sua enorme multiplicidade. A imagem de uma orientação, perspectiva ou Weltanschauung 
  geral, derivada dos estudos humanísticos (ou científicos) e dando forma à cultura 
  é uma quimera. A base de classe para este "humanismo" unitário não 
  existe mais, tendo desaparecido junto com outras coisas como banheiros adequados, 
  ou táxis confortáveis; mas, mais importante do que isto, desaparececeu o acordo 
  que antes existia sobre os fundamentos da autoridade intelectual, a respeito 
  de livros antigos e de maneiras ainda mais antigas. 
      
A "cultura geral", nos diria Geertz em uma linguagem que não é sua, 
antes de ser uma realidade intelectual e conceitual, é um fenômeno de classe, 
associado a elites homogêneas e hegemônicas. Em suas próprias palavras, as diferenças 
entre as disciplinas não são apenas de objeto, método, técnica, tradições intelectuais 
e coisas do estilo, mas atingem o próprio marco de nossa existência moral. É por 
isto que "a concepção de um 'novo humanismo', a tentativa de forjar uma ideologia 
geral 'do melhor que tem sido pensado e dito', e de colocar tudo isto em um currículo, 
é não só implausível, mas totalmente utópica. E também, possivelmente, um pouco 
preocupante". 
Se não é possível mais uma "culture générale d l'esprit" (que 
        Geertz, muito apropriadamente, menciona em francês), será que estaríamos 
        condenados à anarquia, à disputa sem princípios por financiamentos, e 
        às formas mais acabadas de solipsismo? Talvez seja possível encontrar 
        um espaço intermediário entre estes extremos.
      
O problema da integração da vida cultural é hoje o de tornar possível 
        que pessoas que vivem em mundos diferentes tenham um impacto genuíno e 
        recíproco umas sobre as outras. Se é verdade que existe algum tipo de 
        consciência geral, ela consiste na interação entre uma multidão de visões 
        não completamente comensuráveis, e a vitalidade desta consciência depende 
        da criação das condições sob as quais esta interação irá ocorrer. E para 
        isto, o primeiro passo consiste, certamente, em aceitar estas diferenças; 
        o segundo em entender em que estas diferenças consistem; e o terceiro 
        em construir um tipo de vocabulário através do qual estas diferenças possam 
        ser formuladas publicamente - um vocabulário no qual econometristas, epígrafos, 
        citoquímicos e iconólogos possam dar-se conta de si mesmos uns aos outros, 
        com credibilidade.
      IV
      
A tarefa que espera a Faculdade de Filosofia da USP não é muito distinta 
        daquela proposta por Clifford Geertz, que é de reconhecer suas próprias 
        diferenças e contradições, ter suficiente humildade para não impor uma 
        visão única, ou majoritária, sobre os demais nem mesmo a da interdisciplinaridade! 
        e ir trabalhando aos poucos nas possibilidades do diálogo e da tradução 
        entre línguas, culturas e tradições. 
      
Talvez seja necessário, para aceitar melhor as diferenças, entender primeiro 
        suas origens, assim como as origens do projeto de uma universidade hierárquica 
        e unificada, cujas concepções se perdem nas brumas de uma herança que 
        nos chegou da Itália pelas mãos de uma legislação corporativista, e que 
        passou por tantas reinterpretações e retraduções nestes últimos sessenta 
        anos. O que caracteriza as universidades modernas não é a concepção medieval 
        de um conhecimento universal e integrado, mas a multiplicidade, a diversidade 
        e o respeito mútuo entre pessoas, grupos, tradições de trabalho e interesses 
        profissionais distintos. Será necessário entender melhor o que ocorre 
        hoje com as diversas funções que se espera das universidades de massa 
        a formação profissional, a educação geral, a preparação de professores, 
        a pesquisa acadêmica, o trabalho intelectual e avaliar com realismo o 
        que pode ser feito junto e o que deve ser tratado de forma separada, dentro 
        do atual formato institucional ou de outro que venha a ser desenvolvido. 
      
      
Uma vez entendidas as diferenças, será necessário permitir que elas floresçam 
        e se desenvolvam, e ir explorando aos poucos, de forma tentativa e humilde, 
        as possibilidades de diálogo, tradução recíproca e desenvolvimento de 
        linguagens de comunicação. A humildade consiste em levar a sério o que 
        aprendemos no primeiro ano dos cursos de ciências sociais, sobre a relatividade 
        de nossos valores e de nossa cultura. Não há nada que indique que o sociólogo, 
        historiador, filósofo ou homem ou mulher de letras seja intelectualmente 
        superior, tenha uma visão mais profunda das coisas, um pensamento mais 
        crítico, ou uma capacidade interpretativa superior à do físico, do engenheiro, 
        do médico, do economista ou do administrador de empresas. Não existem 
        disciplinas que sejam por natureza mais "formativas", "críticas", 
        "fundacionais", "reflexivas" ou "abrangentes" 
        do que outras; estes atributos, seja o que signifiquem, vêm com as pessoas, 
        ou grupos, e não com áreas de conhecimento ou atividade profissional. 
        A humildade requer também abandonar a noção de que a Universidade é uma 
        instituição excepcional e privilegiada, que deve resistir ao "resto" 
        da sociedade e dizer a ela o que deve e não deve ser feito. As universidades 
        vêm perdendo rapidamente sua condição de monopólio do ensino, da pesquisa 
        e da difusão do conhecimento, se é que um dia o tiveram, e têm que se 
        preparar para provar à sociedade para que servem e o que fazem com o dinheiro 
        público a que têm acesso. 
      
Para que esta atitude e entendimento se transformem em realidade, eles 
        devem se materializar em ações e comportamentos práticos. A verdadeira 
        interdisciplinaridade é incompatível com processos plebiscitários de decisão 
        majoritária, que deixam pouco espaço para a diferença e o pluralismo de 
        idéias, estilos e valores. 
      
Talvez não faça sentido falar de um "projeto acadêmico" para 
        a Faculdade de Filosofia como um todo, e sim de projetos distintos para 
        os diferentes setores que, por afinidades reais e efetivas, encontrem 
        terrenos comuns de atividade. É absurdo acreditar que projetos definidos 
        politicamente, seja em votações, seja em assembléias, seja em reuniões 
        de congregações e colegiados, tenham condições de instituir a interdisciplinaridade 
        onde ela não foi construída de baixo para cima. 
      
No seu gigantismo, na burocratização de sua vida quotidiana, na pouca 
        autonomia acadêmica e administrativa de suas unidades acadêmicas e pedagógicas, 
        nas tentativas de estabelecimento de hegemonias de orientação ou de grupos, 
        a Faculdade de Filosofia da USP talvez seja o último dos dinossauros de 
        uma época já extinta, que ainda resiste a dar lugar às novas espécies 
        que buscam seu oxigênio e seu lugar ao sol. Mas talvez já esteja soando 
        a hora e a vez de sua perestroika. 
      
      
Notas 
1. As referências abaixo são traduzidas com certa 
        liberdade de Clifford Geertz, "The Way We Think Now: The Ethnography 
        of Modern Thought", em Local Knowledge, Basic Books, 1983, 
        p. 160-161.