A Redescoberta da Cultura

A Transição Mineira

Simon Schwartzman

Este texto foi escrito como comentário ao trabalho de Francisco Iglésias, História, Política e Mineiridade em Drummond, preparado para apresentação no ciclo de conferências "Drummond - Alguma Poesia", Rio de Janeiro, Fundação Cultural Banco do Brasil, 24 de abril de 1990. Publicado em "A Redescoberta da Cultura", EDUSP, 1996.


Carlos Drummond viveu o suficiente, física e intelectualmente, para fechar o ciclo de três eras da vida intelectual mineira, o tempo dos literatos, o tempo das ciências sociais e o de uma nova fascinação com os tempos da literatura. De uma forma imperfeita e confusa, este foi também o ciclo da contemplação, do engajamento na política e da volta ao distanciamento literário; ou ainda, se quizermos, do individualismo, da imersão na militância coletiva, e da recuperação do eu, com toda sua possível riqueza, mas também com sua fragilidade.

No começo era o jovem Drummond, cultivado nos círculos afrancesados dos literatos mineiros, que dialogava com Mário de Andrade, tratava de conhecer o mundo pela via da poesia, e buscava pela revolução da palavra a transformação da mentalidade e da realidade de seu país. Depois são os tempos contraditórios da proximidade com o poder, Drummond assistindo e participando, à sua maneira, da grande revolução educacional e cultural tentada por Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação de Getúlio Vargas. Mais tarde é o Drummond engajado, redator da Tribuna Popular, quase candidato a deputado pelo Partido Comunista; finalmente é frustração com a política e a volta à crônica, à literatura, primeiro talvez como um refúgio, mais tarde, finalmente, como consagração. A poesia, nos diz agora Francisco Iglésias, é a forma suprema de conhecimento do humano, certamente superior à história, e a vida literária que Drummond conduz com criatividade e graça até o fim de seus dias deve também servir, por implicação, de paradigma que homens e mulheres de idéias deveriam emular.

No mundo de Minas, ninguém mais que o próprio Iglésias, talvez, tenha vivido as ambigüidades destes dilemas eternos entre a intuição e a razão, a empatia e o conhecimento sistemático, a contemplação literária e o engajamento político, o desnudamento de sí próprio no presente e a análise fria da sociedade e do passado. Nutrido pela melhor tradição literária da geração que lhe antecede, Iglésias acompanha a Drummond em seu mergulho na política nos anos quarenta, e emerge não como mais um literato mineiro -- como seus contemporâenos Fernando Sabino, Rubem Braga, ou Paulo Mendes Campos -- mas como historiador, e como tal o primeiro, e mestre, de toda a geração de cientistas sociais que se formou em Minas a partir dos anos 50. Agora, ao declarar a superioridade da poesia, Iglésias parece fechar, ele próprio, o ciclo percorrido por Drummond, (e que talvez prenuncie o momento, esperado por todos, que sua obra poética guardada todos estes anos, e que temos certeza que existe, finalmente venha à luz).

É significativa, nesta transição, a fusão constante entre três coisas distintas, a maneira de conhecer o mundo, o engajamento na vida pública, e a questão do individual e do coletivo. Drummond participa intensamente da vida pública desde os tempos do Ministério da Educação, prossegue em seus anos de namoro com o Partido Comunista no pós guerra, e continua pelos anos afora pelo trabalho jornalístico. Os tempos com Capanema devem ter sido difíceis, não só pela proximidade do governo Vargas com as ideologias fascistas, como também pelo extremo conservadorismo e clericalismo com que Capanema tratava conduzir seu Ministério. Explicar a presença incômoda de Drummond neste ministério por simples razões de amizade, ou dizer que sua atuação foi simplesmente burocrática e administrativa, é fazer pouco de sua inteligência e seus valores. Pelo que sabemos, Drummond tratou, naqueles anos, de manter aberto o espaço para o lado mais criativo e moderno do Ministério Capanema e do país, o da cultura, do patrimônio histórico e das artes, e desta maneira talvez tenha se resignado a assistir impotente o que ocorria na área da educação. Seu engajamento político nos anos seguintes, junto aos grupos de esquerda, sugerem uma busca de expiação daqueles anos difíceis e ambíguos, em troca de um engajamento mais definido e claro.

Talvez não saibamos nunca se Drummond chegou a namorar o Marxismo naqueles anos de engajamento, e pensou em substituir sua forma de conhecimento do mundo, pela via da literatura e da poesia de corte pessoal e intimista, pelo "conhecimento científico" que o Marxismo prometia. Alguns dos trabalhos daqueles anos, que Iglésias cita, podem sugerir uma tentativa de aproximação com o "realismo socialista" que dominava os círculos literários da esquerda, e que ainda não havia revelado suas feições mais caricatas. Se houve algo disto, certamente durou pouco, tanto pela bagagem literária que o poeta já tinha, e que lhe dava ancoradouro firme, quanto pela dificuldade que seria aprender, com a mesma competência, esta nova linguagem. O certo é que o envolvimento com a esquerda organizada significava, naqueles anos, não só uma postura política, como também uma nova definição da hierarquia de conhecimentos e atitudes - o Marxismo no topo, a literatura como instrumento de ação social, o individual a serviço do coletivo - e Drummond não atravessaria incólume as exigências deste credo.

Imagino que a geração seguinte, sentindo-se talvez apequenada pela obra dos poetas modernistas, mas fortalecida pela própria juventude, pudesse tentar ir mais longe, adotando como ponto de partida a primeira e mais tradicional das ciências sociais, a história. A ignorância literária da terceira geração tornou esta passagem, mais do que natural, quase inevitável. Ainda aqui, a mudança não era somente na forma de conhecimento e de produção intelectual, mas atingia também as demais esferas. Para a nova geração de cientistas sociais, conhecer e transformar a realidade eram quase o mesmo ato, o trabalho poético e literário fazia sentido quase que só como panfleto, e não deveria haver lugar para a atividade intelectual de tipo intimista ou cultural, que não fosse socialmente transformadora.

Não caberia descrever em detalhe, aqui, como este círculo se encerra em crise, e de que forma a literatura volta a ser entronizada como forma suprema de conhecimento social. Basta assinalar que houveram, pelo menos, dois caminhos paralelos. Para uns, o encerramento desta fase veio de um simples alargamento de horizontes, do reconhecimento de que existem outras tradições intelectuais que não a marxista, que tratam de forma menos pretenciosa e mais adequada a questão da objetividade, que não se consideram guardiãs do futuro da história, que admitem uma relação mais frouxa e complexa entre o mundo do conhecimento e o mundo da ação, que não pretendem comandar e subordinar a produção literária e artística a seus conceitos, e que não requerem que as pessoas entreguem seu espaço individual e privado à ação coletiva. Para outros, foram necessárias as crises sucessivas da esquerda e do marxismo em todo o mundo, do início da desestalinização na União Soviética em 1956 à Perestroika 25 anos depois, passando pelas frustrações e reexames de consciência forçados pela oposição inglória a 20 anos de governo militar no Brasil, que culminam na república de Sarney.

Destes dois processos, o primeiro é o mais difícil e incerto, o segundo mais certeiro e doloroso. É difícil desenvolver tradições intelectuais ricas e complexas sem um sistema universitário bem estabelecido, sem vínculos culturais intensos com outras partes do mundo, sem tempo de maturação, e sem um certo espaço e distanciamento em relação às crises e pressões do quotidiano. A expansão desordenada do espaço universitário brasileiro nas últimas décadas propiciou pouco destas condições, e abriu, ao mesmo tempo, um grande espaço para a incorporação da vulgata marxista, ao mesmo tempo revolucionária e simples, senão simplista, em sua interpretação do mundo do conhecimento, da ação política e da vida social. Quando o mundo real, em sua brutalidade, coloca a nú seus equívocos, o que entra em seu lugar não são formas superiores de conhecimento e alternativas de participação social. Tudo parece destruído, os valores, o sentido de responsabilidade para com o outro, as maneiras de conhecer e entender o mundo. Resta, quem sabe, a poesia.

Para os que ainda têm este recurso - e são poucos, infelizmente - o retorno à poesia e à literatura é como a volta à terra firme. Francisco Iglésias, historiador e cientista social, nos diz como não gosta de conceitos como o de "mineiridade", carregados de conotações essencialistas, antropomóficas e, no fundo, preconceituosas sobre povos e nações. Mas logo depois Iglésias, o homem de letras, leitor de Drummond desde a adolescência, nos mostra como, pela poesia, "Drummond é que melhor traduz Minas Gerais, quem mais profundamente penetrou em sua essência. Ele e Guimarães Rosa".

Mas esta terra firme não tem porquê, em um imperialismo às avessas, substituir outras modalidades de conhecimento, da mesma forma que não é possível pretender que a crônica jornalística drummoniana das últimas décadas substitua todas as formas de análise social e política existentes. Não é mais possível, simplesmente, voltar aos tempos da Rua da Bahia, e retomar o projeto literário daqueles anos, ou mesmo o mais bem articulado deles, o do modernismo liderado por Mário de Andrade, em toda a sua ambição e inocência. Opor a poesia à história, a literatura às ciências sociais, a arte à ciência, a intuição ao conhecimento racional, é, simplesmente, repetir os reducionismos do passado, só que com o sinal trocado. Reencontrar a Drummond, seguir sua trajetória, absorver sua lição de fidelidade a si próprio, recuperar a importância da poesia e da literatura como meios insubstituíveis de capturarmos os sentidos múltiplos da experiência humana, são tarefas que devem nos conduzir a horizontes cada vez mais largos, e nunca a novas prisões.

Petrópolis, abril de 1990