A Redescoberta da Cultura

Os Paradigmas e o espaço das ciências sociais

Simon Schwartzman

Publicado originalmente em Revista Brasileira de Ciências Sociais 4, 2 Julho, 29-35, 1966. Publicado em A Redescoberta da Cultura, EDUSP, 1996.


A superação do positivismo

As ciências sociais contemporâneas devem a Jeffrey Alexander uma contribuição importante, na forma de uma tentativa ambiciosa e inteligente de dar alguma ordem ao caos epistemológico e conceitual em que ela se debate. Sem pretender reproduzir, aqui, uma análise que podemos ouvir do próprio autor, gostaria no entanto de sumariar alguns aspectos principais, para situar a discussão.

Alexander inicia seus argumentos, muito adequadamente, tratando de limpar o terreno da discussão epistemológica. Em Theoretical Logic (1982), ele procura mostrar como a visão positivista da ciência, que reduz todo o conhecimento à busca de "fatos" empíricos, não se sustenta nem nas ciências sociais, nem nas ciências naturais. Não faz sentido argumentar, como quizeram muitos, que as ciências sociais, por estarem envolvidas todo o tempo com valores e significados, se constituiriam em um campo epistemológico à parte - a resposta "humanista" ao positivismo sociológico. Ao retraçar o caminho percorrido desde os trabalhos de Alexander Koyré (1939) e Michael Polanyi (1958) sobre os supostos culturais (Koyré) e a fundamentação tácita das ciências naturais (Polanyi) até a moderna sociologia da ciência com seus estudos empíricos sobre a construção dos fatos científicos (e passando, inevitavelmente, pela contribuição seminal de Thomas Kuhn sobre os paradigmas do conhecimento) Alexander mostra como os postulados positivistas não passam de uma ilusão dos tempos da ciência normal. A única diferença real entre as ciências naturais e as ciências sociais seria que, nestas, as discussões de valores e princípios são mais constantes e presentes, os supostos tácitos menos fáceis de serem admitidos. A crítica aos supostos positivistas, e a recusa em cair no irracionalismo implícito no "humanismo" antiempírico, justificam o esforço de Alexander em recuperar o nível especificamente teórico e conceitual das ciências sociais.

Seu texto atual (Alexander, 1986) difere do anterior pelo menos em dois pontos importantes. Primeiro, as diferenças entre as ciências sociais e as ciências naturais voltam a ganhar preeminência. Segundo, o que era antes visto como o "nível conceitual" das ciências sociais (na realidade, um contínuo que ia das pressuposições mais gerais, próximas ao ambiente metafísico e não empírico das ciências até os supostos metodológicos da pesquisa) é agora apresentado como constituindo um nível "discursivo". São duas diferenças importantes, que vale a pena explorar um pouco.

Por que as ciências naturais discutem menos seus pressupostos?

Se as ciências naturais são tão dependentes quanto as ciências sociais de pressuposições tácitas (Polanyi), visões de mundo (Koyré) e modelos operacionais implícitos ("examplars", conforme Kuhn), como explicar serem elas muito menos suscetíveis às constantes controvérsias e debates que avassalam as ciências sociais o tempo todo? "It is because natural scientists so often agree about the generalized commitments which inform their craft that more delimited empirical questions usually receive their explicit attention", nos responde Alexander (1986, p.7-8).

Ele não examina em que condições este consenso ocorre ou não, mas é fácil dar pelo menos alguns exemplos. O consenso, que permite uma discussão técnica sobre as funções de uma enzima ou as propriedades de um novo material começa a ser menos claro quando o que se discute é, por exemplo, a segurança de uma usina nuclear ou o grau aceitável de poluição do ar por certos produtos químicos. Nos primeiros exemplos, o que constitui uma "função", ou como se definem as "propriedades" de determinado produto são conceitos que fazem parte da prática quotidiana dos pesquisadores, e não estão em discussão. Nos outros exemplos, a discussão não é necessariamente menos técnica ou científica, mas já não existe consenso tácito sobre o que venham a ser níveis aceitáveis de segurança ou tolerabilidade. O avanço tecnológico que permite a detecção de partículas cada vez mais infinitesimais de produtos químicos em amostras de alimentos, e o avanço dos estudos epidemiológicos que permitem detectar pequenas alterações na probabilidade de ocorrência de determinadas enfermidades em grandes populações, vão tornando estas questões cada vez mais controversas e, na realidade, impossíveis de serem resolvidas dentro de marcos estritamente "tácitos" ou "científicos".

A diferença entre as ciências naturais e as sociais seria pois, simplesmente, de grau, e se explicaria pelo fato de estas últimas se referirem mais constantemente a questões de valor. Nas palavras de Alexander, "in its application social science produces so much more disagreement". "Application", aqui, não se refere simplesmente à tecnologia (onde as ciências sociais se encontram evidentemente inferiorizadas), mas, principalmente, ao que elas trazem como avaliação ou interpretação do homem e do mundo em que habita. "Classe social" ou "socialização", por exemplo, não são conceitos que se esgotam em suas determinações lógicas e empíricas; eles conduzem não só a determinados tipos de análise, como trazem também embutidas certas visões mais amplas de como as sociedades se desenvolvem e incorporam o não os indivíduos que as compõem. As controvérsias, como vimos mais acima, não são alheias às ciências naturais, e tornam-se tanto mais intensas quanto as implicações de seus resultados possam ir além de seus marcos "científicos" usuais. Isto não significa, naturalmente, que não existam controvérsias científicas enquanto tal, mas existe aqui uma questão de fronteiras pouco esclarecida. Em que medida esta separação entre os aspectos valorativos e os aspectos mais especificamente cognitivos do conhecimento é válida, nas ciências naturais e nas ciências sociais? Existem tentativas, possivelmente extremadas, de abolir esta separação completamente, como por exemplo na teoria da "finalização" (Böhme e outros, 1976, e böhme, 1977), ou no chamado "programa forte" da sociologia do conhecimento proposta pela escola de Edimburgo (Bloor, 1976). É uma discussão acesa que ainda continuará por muito tempo, inclusive pelas conotações valorativas que implica (veja a respeito Silva, 1985). Um resultado importante, de qualquer forma, já foi obtido: não são só as concepções positivistas e empiricistas da ciência que se vêm ameaçadas, mas também as que pretendem partir de fundamentações lógico-racionais prévias a qualquer antecedente pressuposicional, ou se basear em um princípio de demarcação absoluto entre o científico e o não científico.

Ciência vs. aplicação e teoria vs. discurso nas ciências sociais.

Uma diferença importante entre as ciências sociais e as naturais é pois que, nas primeiras, a própria elaboração de conceitos supostamente "científicos" já traz conotações valorativas e práticas imediatas. Ainda que isto ocorra também nas ciências naturais (e exemplos não faltam, de Galileu a Darwin), nas ciências sociais esta vinculação é muito mais constante, imediata e abrangente, e é por isto que o projeto de construção de uma sociologia "madura", pela acumulação progressiva de conhecimentos parciais, jamais se concretizou (Merton,1967, p. 39-72; Schwartzman, 1971).

Em Theoretical Logic, Alexander parte do pós-positivismo para recuperar a importância da elaboração teórica em sociologia. A teoria, diz ele com razão, não pode ser avaliada simplesmente por suas implicações empíricas, como queriam os positivistas. Existiriam, no entanto, dois critérios fundamentais para decidir quanto à validade da argumentação científica no nível mais teórico. O primeiro seria sua "generalização", ou seja, "principles so broad in scope that they cannot be subsumed by any more empirically-oriented level of the scientific continuum" [entre conceitos gerais e empiria]. Em outras palavras, a teoria deve ser capaz de criar "a framework within which all other scientific commitments can be understood as specifications. even while the latter maintain their analytic independence". O segundo critério seria o da "decisão", ou "decisividade": os conceitos gerais devem ter repercussões em todos os níveis mais específicos da análise social, e não podem ser triviais (Alexander, 1982, p.37).

Mas é claro que, se existe um nível discursivo (e não simplesmente teórico ou racional) nas ciências sociais, as divergências que nele se manifestam não podem ser resolvidas pela simples aplicação de critérios analíticos como os que propõe Alexander, ou seja, o poder de generalização e a "decisividade" dos conceitos e teorias. Esta dificuldade é explicitada no novo texto de Alexander, que explica a divisão das ciências sociais em "escolas", assim como a perenidade dos clássicos em suas sucessivas releituras e reinterpretações, pela existência de discursos irredutíveis.

Não podendo utilizar-se de critérios racionais, ou formais, para introduzir sua proposta teórica, Alexander se confessa, ele mesmo, discursando, e procura se inserir em um movimento pendular que acredita detectar, e que oscilaria entre o coletivo e o individual, o macro e o micro, o racional e o afetivo. Existiria atualmente um ponto de convergência neste movimento, pelo revigoramento do conceito de cultura, que permitiria a integração dos diferentes pontos de vista hoje em confronto nas ciências sociais. Sem negar o eventual interesse desta proposta teórica, é bastante claro, no entanto, que nem ela nem outras conseguirão se firmar pela simples força de sua argumentação lógica, ou pela persuasividade do discurso que a acompanha. Existe um nível de sustentação mais profundo que deve ser alcançado, que é o da vinculação entre o discurso e a realidade social a partir da qual este discurso é produzido e defendido. É na análise das relações entre esta prática, os discursos a ela relacionados e os níveis mais racionais e empíricos do conhecimento que se situa, a meu ver, a possibilidade de um entendimento mais adequado dos problemas e das potencialidades das ciências sociais no mundo de hoje.

Prática, discurso e conceitos nas ciências sociais brasileiras: uma incursão.

Em 1980 a revista Dados publica uma série de artigos sobre "ciências sociais, democracia e dependência", que buscavam, basicamente, examinar em que medida as condições especiais em que as ciências sociais eram produzidas em nosso meio influenciavam seu conteúdo. Wanderley Guilherme dos Santos discute, em termos muito amplos, a ciência política na América Latina, e a vê como afligida pelos males de um economicismo e historicismo empobrecidos, assim como por um marxismo de segunda classe. Para ele, este era o lado negativo do processo de compartimentalização e especialização das ciências sociais latinoamericanas, que deveria ser compensado, presumivelmente, pelo trabalho interdisciplinar. Se a crítica era correta, a interpretação era duvidosa, já que os males que apontava pareciam, na realidade, afligir muito mais os países em que as ciências sociais não haviam se institucionalizado do que propriamente ao Brasil, onde esta institucionalização havia ido mais longe. Não pareceria que o conceito de especialização e divisão social do trabalho intelectual fosse suficiente para explicar a predominância do discurso historicista, economista e empobrecidamente marxista de nossos cientistas sociais (Santos, 1980, p. 15-28). Fábio Wanderley Reis, em um artigo totalmente distinto, comparte com Wanderley dos Santos a noção de que as condições "externas" do trabalho científico podem certamente prejudicar sua qualidade, mas não chega a avançar nenhuma hipótese sobre estas condições e os conteúdos substantivos dos discursos (Reis, 1980, p.59-78).

O trabalho de Bolivar Lamounier (1980, p. 29-58) é complexo e difícil de resumir, a não ser em uma interpretação livre como a que fazemos aqui. Tal como Alexander para a sociologia, ele busca examinar a evolução de alguns conceitos centrais das ciências políticas contemporâneas - o Estado, a ação coletiva - e observa que é este "o aspecto da análise política mais sensível à influência dos contextos sociais específicos: a porta pela qual as diversas 'ontologias' do social penetram no discurso científico, e, ao fazê-lo, mostram seus limites" (p. 44). Tal como em Alexander, está presente a idéia do "discurso"; indo mais além, no entanto, Lamounier trata de identificar, por um lado, sobre quais conteúdos os discursos incidem mais diretamente; e, por outro, os contextos sociais específicos que os condicionam. Na segunda parte de seu trabalho, ele propõe uma periodização da ciência política brasileira e de seus temas respectivos: o período até 1945, caracterizado por ensaístas preocupados com os problemas da formação do Estado Nacional; o período 1945-1964, orientado para as questões da expansão da cidadania e da capacidade de ação racional do Estado; e o período pós 1964, em que as ciências políticas se institucionalizam ou se esfacelam, e refletem criticamente sobre as experiências anteriores (interpretação semelhante para o desenvolvimento da antropologia no Brasil é desenvolvido por Peirano, 1981). Se até 1945 os intelectuais brasileiros participavam, individualmente, de um projeto de construção do Estado tornado ilegítimo com a democratização do pós-guerra (Oliveira Viana é o grande exemplo), e se nos anos seguintes pretendeu-se, pelo engajamento partidário ou ação grupal, uma liderança em um processo político de ampliação da participação e do aumento da racionalidade do Estado (o exemplo aqui é o Instituto Superior de Estudos Brasileiros), no período pós 64 se instala uma grande divisão que Lamounier percebe, mas não explica em maior profundidade. Por um lado, há uma visão fortemente militante, trabalhado com um estilo de análise "demasiado globalizante e demasiado insensível ao caráter constitutivamente precário de toda a integração política" (p. 56), e sujeita, podemos acrescentar, às críticas de Wanderley dos Santos no artigo citado mais acima. Por outro, surge uma ciência política particularizada, perdida em uma miríade de estudos isolados de processos decisórios, participação eleitoral e tantos outros, mas incapaz, na visão de Lamounier, de enfrentar com a devida atenção as grandes questões da ciência política contemporânea, que giram ao redor do tema do controle democrático sobre os sistemas políticos de larga escala. Ambos seriam produtos de uma ciência política afastada e de costas para o poder político constituído; o primeiro grupo possivelmente mais vitimado pela repressão ideológica, e sofrendo o impacto de um sistema universitário em decomposição; o segundo mais isolado e trabalhando em instituições que, de alguma maneira, conseguiram se desenvolver de forma até mais estável do que nas décadas anteriores, mas que pouco podiam pretender além do trabalho acadêmico enquanto tal. Se o primeiro discurso é globalizante e simplificador, o outro tenderia à complexidade, ao detalhe e à inconclusividade; se um é mais próximo do ethos da militância política ou do intelectualismo alienado, o outro se aproximaria do estilo dito "científico".

Um artigo de Valéria Pena (1980, 93-110), já agora sobre a sociologia, procura recuperar o sentido positivo da segmentação, do não enfrentamento das "questões centrais" tão cruciais nas preocupações de Bolivar Lamounier. A virtude da "nova sociologia" brasileira (que ela faz acompanhar,precavidamente, de um ponto de interrogação) seria exatamente a convivência com a diversidade, o tratamento do concreto, a descoberta de que "as hierarquias são muitas e as opressões várias", e que por isto vários deverão ser não só os conhecimentos, mas também as próprias práticas políticas (p. 93). A mulher, o quotidiano dos trabalhadores, os problemas dos negros, a sociedade camponesa, os padrões quotidianos de convivência, cada uma destas coisas vem encontrando seus estudiosos, seus apaixonados e seus novos militantes. Não existe discurso, mas discursos. No fundo, uma sensação de que os "grandes temas" são inacessíveis, tanto quanto o poder político também o era. Mas a vida continua, tem muitas facetas, e as ciências sociais poderiam, quem sabe, encontrar novo alento no contato com a realidade concreta dos homens.

Em certo sentido, o trabalho de Valéria Pena assinala o fim de um grande círculo iniciado muitos anos antes, quando, no Brasil, a sociologia surgiu como contestação ao pensamento jurídico, consolidado no poder e apropriado pelas elites mais tradicionais. A sociologia se pretendia então militante, globalizante, histórica, incluía o econômico e, sobretudo, o político. Em parte pelo próprio processo de institucionalização das disciplinas acadêmicas, em parte pelo ambiente político e institucional que passa a existir no Brasil a partir dos anos 60, este quadro vai se alterando. A economia se transforma cada vez mais em disciplina independente, fechada em seus diferentes paradigmas, apresentando-se muitas vezes como "técnica" e despolitizada, e de qualquer forma sem reconhecer a legitimidade acadêmica e intelectual das demais ciências sociais. A ciência política, que não existia na tradição brasileira a não ser como um ramo do Direito (a chamada "teoria geral do Estado), encontra sua identidade a partir, principalmente, do mundo acadêmico norteamericano, e começa a absorver muitos dos sociólogos formados na tradição mais globalista (e francesa) anterior. Reduzido ao econômico, por um lado, e ao político, por outro, o social perde legitimidade como objeto, e a crise da sociologia como disciplina se instala. Esta crise explica, de alguma forma, a transformação que se opera na antropologia brasileira, que gradualmente começa a voltar seus olhos das populações indígenas para a realidade do mundo dito "civilizado", e mais especificamente para seus setores menos privilegiados, os camponeses, os pobres das cidades e os negros. É junto a esta antropologia do mundo moderno que a nova sociologia identificada por Valéria Pena vai buscar sua inspiração mais fecunda.

A convivência com a fragmentação e o plural, no entanto, requer a estabilidade relativa da vida acadêmica. Todos os trabalhos examinados por Valéria Pena foram elaborados nas principais instituições de pesquisa em ciências sociais do país -- IUPERJ, Universidade de São Paulo, Museu Nacional do Rio de Janeiro, CEDEC. Enquanto isto, os cursos de pós-graduação continuavam a formar cientistas sociais que as instituições acadêmicas não mais absorveriam, ou só absorveriam precariamente. Ao mesmo tempo, o regime militar começava a mostrar suas fissuras, e os movimentos reivindicativos da sociedade se tornavam cada vez mais fortes e audaciosos. Era uma nova realidade que surgia, e nela uma boa parte das ciências sociais brasileiras mergulharia de cabeça.

Era chegada a hora, como assinalou um observador atento, Mark Oziel, de "ir para o povo" (Oziel, 1984, p. 245-275). Os intelectuais, que no tempo do ISEB e do Movimento de Cultura Popular pretendiam ser a cabeça pensante da nação, e com isto conquistar seu apoio, agora confessam humildemente sua ignorância, e a necessidade de aprender com a gente simples. O povo, no novo discurso, sabe votar, é intrinsecamente democrático, tem uma sabedoria recôndita muito superior, por definição, aos artificialismos da cultura importada. O intelectual agora assumía a tarefa de dar dignidade e respeitabilidade às coisas do povo -- sua linguagem, sua religião, seus valores -- e, a partir deste trabalho redentor, conquistar seu novo espaço. Esta nova produção intelectual não se canalizava para as sizudas revistas científicas, mas para os jornais e revistas de grande circulação, para os partidos políticos e para as salas de aula repletas de jovens que ingressavam em um sistema universitário em expansão e que viam pouco sentido na antiga racionalidade acadêmica que, muito suspeitamente, havia florescido nos anos da ditadura, e parecia ter suas origens no exterior. O novo discurso valoriza o estilo, a paixão, a simpatia e o compromisso inalienável com os dogmas populares (a sabedoria do povo, a valorização do emocional e do intuitivo, a crítica ao raciocínio frio e desumanizado, a oposição à tecnocracia e ao poder constituído em todas as suas formas. Nem por isto, no entanto, é um discurso inculto. Para isto estão, e são citados conforme os gostos e as necessidades, Lacan, Bourdieu, Foucault, Feyerabend, e até mesmo Derrida para os mais sofisticados. Manejar autores tão complexos em estilo comunicativo não é tarefa fácil, e por isto uma nova hierarquia vai se estabelecendo no mundo intelectual, baseada em um discurso radicalmente oposto e sem diálogo ou síntese possíveis com as ciências sociais tradicionalmente constituídas, e alimentado cada vez mais por novos que atores até então não haviam mostrado sua presença, os filósofos e os críticos literários.

Discursos e a natureza do conhecimento social.

A sociologia da ciência, ao colocar o conhecimento científico (ou pelo menos seu "discurso") no contexto de seus condicionantes sociais, corre o risco de alimentar uma tese profundamente irracionalista, que é a de que, no fundo, todas as formas de conhecimento não passam de discursos alternativos, todos os conhecimentos são iguais, e a noção de "verdade" nada mais é do que a expressão do poder político (ou da "hegemonia") de um grupo sobre os outros.

Esta conclusão, no entanto, não é necessária. Diversos tipos de conhecimento produzem diferentes resultados, e podem ser avaliados pelo que alcançam. Alguns trazem dividendos políticos; outros atraem grandes públicos, e formam opinião; outros permitem previsões acuradas de determinados fenômenos em determinadas condições; outros dão sentido e coerência a coisas que, de outra forma, permaneceriam estranhas e ininteligíveis; outros, finalmente, privilegiam o controle sobre a natureza, a eficiência administrativa e empresarial. Conforme o ambiente histórico, o clima político, as solicitações e as condições de trabalho dos cientistas sociais (e não só deles), buscam-se coisas diferentes, e os resultados, por isto, nem sempre são comparáveis e analisados sob a mesma lógica. O que ocorre cada vez mais com as ciências sociais, no Brasil como em outras partes, é que os muros que porventura tenham existido entre o ambiente acadêmico (onde prevalecem os valores da explicação mais abrangente e mais econômica, da complexidade e do ceticismo organizado) e os demais são constantemente penetrados de lado a lado, e o próprio cientista social não sabe que papel desempenha a cada momento.

As dificuldades trazidas por esta situação se tornam evidentes quando contrastamos o trabalho de Alexander com, por exemplo, recente ensaio de Eunice Durham sobre a antropologia no Brasil (Durham, 1986). Alexander, em Theoretical Logic, chama a atenção para três pecados que teriam prejudicado a produção teórica na sociologia: a redução da problemática teórica ao engajamento político, presente no debate sobre ideologia; sua redução às questões de preferências metodológicas, no debate sobre positivismo; e sua redução a proposições empíricas, no debate sobre o conflito. Superados estes reducionismos, acredita Alexander estar aplainado o caminho para a restauração plena do discurso lógico nas ciências sociais, quando então se torna possível discutir o status teórico de termos como cultura, indivíduo, ordem social, poder, etc.

Eunice Durham, em seu ensaio, também se preocupa com os deslocamentos no uso de conceitos teóricos, e assinala algumas interpretações sobre o contexto da atividade do antropólogo brasileiro e suas implicações epistemológicas. Nós antropólogos, diz ela, "estamos passando da observação participante para a participação observante e resvalando para a militância" (p. 27). Paradoxalmente, diz ela, "ao mesmo tempo em que os antropólogos se politizam na prática do campo, a partir de seu engajamento crescente nas lutas travadas pelas populações que estudam, despolitizam os conceitos com os quais operam". Este paradoxo teria duas explicações, uma no nível social, outra no nível epistemológico. No nível social, a despolitização dos conceitos seria uma forma de solucionar o conflito entre dois papéis contraditórios, o acadêmico e o militante. Ela não se utiliza desta terminologia sociológica, mas diz que "o que estamos fazendo é operar os conceitos [de classes sociais, ideologia, pessoa, individualismo e identidade) de tal modo que, evitando o tratamento direto da problemática social e política que neles está contido, preservamos uma alusão a esta problemática" (p. 32). A explicação epistemológica é mais complexa, e teria que ver com a impossibilidade de os antropólogos pensarem a totalidade das sociedades complexas, da mesma forma que o fazem para as sociedades primitivas, de escala mais reduzida. Ao buscar fazer uma antropologia "colada" às populações que estuda, e que não representam, nas sociedades complexas, senão fragmentos de um todo mais amplo, o antropólogo terminaria também por se fragmentar, caindo nos "deslizes semânticos" que consistiriam, basicamente, na utilização de conceitos de forma desligada do contexto histórico e ideológico em que surgiram.

A proposição de que a ambigüidade de papéis dos antropólogos (e, por extensão, de outros cientistas sociais) leva a um uso ideológico de conceitos, por uma parte, e a um tratamento exclusivamente conceitual e teórico da prática política, por outro, que decorre sem muito esforço do texto de Eunice Durham, parece bastante rica. Por outro lado, suas conclusões mais propriamente teóricas, opostas às de Alexander, conduzem, me parece, a um beco sem saída. Enquanto Alexander procura construir, no terreno movediço dos discursos e dos condicionantes sociais do conhecimento, uma fundação para uma lógica teórica de validade geral, Eunice Durham parece requerer, não somente que os antropólogos se "descolem" de seus objetos de estudo, mas inclusive que se construa, "em algum lugar da reflexão antropológica" brasileira, um quadro conceitual adaptado à nossa realidade, e que possa substituir, presumivelmente, o uso de conceitos como os de classe social, grupo de status, identidade, ideologia ou pessoa. Se levada ao extremo, seria uma tese que iria contra toda a tentativa de dotar as ciências sociais de generalidade e abrangência explicativa. Dentro de seus limites, ela é útil para lembrar que nem o engajamento puro e simples, nem o uso abstrato e vazio de conceitos, e muito menos a esquizofrenia de tentar fazer as duas coisas ao mesmo tempo, produz uma ciência social realmente significativa. A boa ciência social, poderíamos acrescentar, supõe um interesse genuíno do pesquisador pela realidade que estuda, uma compreensão adequada dos contextos sociais em que surgem e se desenvolvem as idéias, e um esforço de trabalhar com conceitos cada vez mais universais e abrangentes.

A "nova república" traz para as ciências sociais brasileiras novas condições, e novas necessidades de exame e interpretação. Se antes os muros acadêmicos já eram penetrados pelo "hype" dos meios de comunicação de massas e da mobilização política, agora chegam também as demandas de participação na administração da coisa pública. Já não basta interpretar, criticar e analisar, é necessário agora poder agir, mas sem deixar de criticar nem de manter a linguagem da comunicação bem sucedida. Se alguns cientistas sociais se especializam em alguns destes papéis -- renunciando, quem sabe, aos favores dos mídia em benefício do trabalho acadêmico, ou renunciando à possibilidade de participar no governo em nome da militância política, ou vice-versa -- a maioria prefere conviver com a multiplicidade de papéis e tratar, de alguma forma, de conciliá-los, gerando dificuldades como as que Eunice Durham evidencia. A tarefa é cada dia mais complexa.

A conclusão é que, se os discursos nas ciências sociais se explicam por condicionantes sociais e institucionais passíveis de serem reconhecidos, a discussão intelectual e conceitual sobre sua validade não pode ser desligada não só de uma análise, como tampouco de um envolvimento pessoal constante e permanente dos cientistas sociais a respeito do espaço social que deve caber em determinado meio para eles próprios, e dentro do qual eles possam florescer em um sentido ou outro.

O Brasil, em comparação com muitos outros países, já logrou muito nesta direção, e por isto as ciências sociais brasileiras têm florescido. Mas é importante ter sempre presente e problematizado o contexto em que trabalhos. As ciências sociais, em suas diversas modalidades, necessitam de espaços relativamente permanentes e estáveis, para que a discussão sobre as condições dos discursos não dominem toda a sua atenção, deixando pouco espaço para a produção de conhecimentos enquanto tal.

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