Simon Schwartzman
Publicado em A Redescoberta da Cultura, São Paulo, EDUSP, 1997.Sumário
Ciência, profissões e a quetão da autonomia universitária
Da autonomia das corporações à autonomia da ciência
O conteúdo científico das profissões
Tradições científicas e não científicas nas universidades modernas
Dinâmica do ensino superior contemporâneo: hierarquia, igualdade ou diferenciação?
E a autonomia universitária?
Notas
Os franceses idealizavam o professor como um homem de grande cultura e conhecimentos enciclopédicos, e não como um especialista trabalhando em um campo delimitado com o objetivo de trazer alguma contribuição nova ao conhecimento. Ele seria um savant, embebido da cultura antiga e clássica, que deveria ser passada, através de seus estudantes, para a geração seguinte". "O propósito da universidade alemã era ensinar a pesquisar, e não somente o conteúdo da ciência. O ideal germânico contrastava com o francês, ao treinar os estudantes para se transformar em um scholar independente. A diferença crucial era que, na Alemanha, não era suficiente conhecer a ciência: era indispensável saber fazê-la.A ênfase as ciências matemáticas, que marcou a École Polytechnique e a maioria das grandes écoles, não alterou este quadro:
Para o jovem francês interessado em estudar em uma das grandes écoles, as provas de seleção significavam que ele deveria passar dois ou três anos estudando matemática depois do término do lycée, aos 16 ou 17 anos. Sua chance de passar eram pequenas, mas, passando ou não, ele teria que gastar muitos de seus anos mais criativos aprendendo uma matemática abstrata que teria pouco uso tanto em uma carreira de engenheiro quanto em uma de pesquisador. É certo que a grande ênfase posta na competência matemática nos concursos de admissão às grandes écoles contribuiu de forma importante para a tradicional força dos franceses em matemática pura. Por outro lado, o prestígio da matemática pura sem dúvida desviou pessoas talentosas de outros campos tais como a matemática aplicada e a física matemática(6).Na Inglaterra, a pretendida nobreza dos scholars não os diferenciava somente dos mais pobres, mas também da aristocracia inculta, e os protegia contra a riqueza arrogante dos burgueses:
O profissional, argumentavam aqueles que desconfiavam das implicações éticas dos aspectos aquisitivos do capitalismo, pensava mais no dever do que no lucro. A gratidão de seu cliente, e não o mercado, definia sua recompensa; e, tecnicamente, ele jamais recebia pagamentos, e sim honorários. Sua reputação era conquistada pela discreção, tato e conhecimento especializado, e não pela publicidade e pelo sucesso financeiro. Ele era um homem culto, sua educação era ampla e abrangente. Diferentemente do homem de negócios, que operava em um mercado impessoal, o profissional se relacionava com seus clientes de forma pessoal e íntima. Idealmente, ele não precisava competir com outros da mesma profissão, ou pelo menos não na mesma medida do que os homens de negócios. As associações profissionais, com seus princípios de admissão controlada por exames de ingresso e numerus clausus, o protegiam das pressões mais severas da oferta e da procura. Suas maneiras, assim, eram contidas, uma qualidade de gentleman que os distinguia da agressividade dos industrialistas do interior e do norte do país(7).Em todas estas sociedades a dimensão "culta" das profissões mais nobres servia, ostensivamente, para garantir a qualidade de seus membros e os serviços que prestavam; e, na prática, para marcar sua diferença em relação a outras atividades menos nobres. O desenvolvimento de conhecimentos de base experimental na biologia, na química e na física, mais próximos do conceito moderno de "ciência empírica", se deu inicialmente fora das universidades tradicionais, e só aos poucos foi sendo aceito por elas, a princípio nas universidades alemãs, assim como nas universidades escocesas, para mais tarde se incorporar em departamentos especializados e penetrar, finalmente, nos currículos dos cursos profissionais.
"Porque os engenheiros têm que produzir artefatos que preenchem determinadas funções em circunstâncias particulares que eles não controlam, a relevância de teorias gerais de relações entre propriedades abstratas de fenômenos idealizados em condições altamente controladas de laboratório é muito limitada". "Enquanto que os físicos se preocupam principalmente em entender e prever as propriedades da matéria, e se concentram, no caso da mecânica de fluidos, nas equações diferenciais de movimentos, os engenheiros precisam construir artefatos úteis e não se preocupam tanto com o conhecimento detalhado de processos internos. O conhecimento na engenharia, por isto, está menos orientado para os detalhes ontológicos, e mais para a racionalização e a síntese de ajustes e técnicas ad hoc de utilização prática. Seu conhecimento é organizado de acordo com leis físicas, mas focalizado em métodos de solução de problemas, antes que em marcos de referência explicativos. O aspecto distintivo do conhecimento técnico e prático reside em que a aquisição de conhecimentos científicos, por si só, não produz engenheiros competentes, e a capacitação para atividades de síntese é distinta da capacitação para a pesquisa científica. A formalização de boa parte do conhecimento de engenharia, para propósitos de ensino, assim como o uso da matemática, não caracterizam, por si mesmos, a "cientifização" da engenharia, mas a racionalização das habilidades técnicas ao redor de marcos de referência sintéticos e conceitos analíticos úteis para os propósitos da engenharia, isto é, para poupar tempo e evitar erros. A competência em engenharia não consiste pois, simplesmente, na aplicação do conhecimento científico a problemas tecnológicos, mas sim no uso de marcos de referência e abordagens tecnológicas, que incorporam teorias científicas, na concepção e desenvolvimento de artefatos e processos. Ela envolve habilidades profissionais na avaliação de constantes, etc.; conhecimentos organizacionais sobre convenções e preferências; e experiência no tratamento de um grande número de problemas e situações relativas ao contexto de trabalho. a maior parte da prática de engenharia não utiliza de forma direta o conhecimento adquirido na Faculdade, e quando existem teorias tecnológicas sobre artefatos, como por exemplo no caso da teoria de Rankine sobre motores a vapor, são necessários desenvolvimentos e especificações posteriores, para que eles possam ser úteis para os engenheiros(9).O mesmo pode ser dito da medicina, onde a tradição clínica tende a colocar em um plano subordinado as contribuições e aplicações da ciência básica. Observa Whitley que
"Porque os médicos praticantes, ou suas elites, exercem um controle substancial sobre a maneira pela qual os problemas médicos são definidos e atribuídos a diferentes competências profissionais, assim como sobre a maneira pela qual os resultados dos tratamentos devem ser interpretados, eles são capazes de determinar o uso de tecnologias de base científica e seus resultados. Diagnósticos e decisões de tratamento permanecem essencialmente como atividades artesanais governadas por convenções que são transmitidas por métodos tradicionais de aprendizagem, antes que por métodos formais". O resultado é separação entre a clínica e a pesquisa: "esta separação das atividades de pesquisa do artesanato na solução dos problemas não somente serve para manter a autonomia do médico praticante, como também para manter a autonomia do cientista em relação às pressões para produzir resultados práticos relevantes. Porque os procedimentos de tratamento, assim como os métodos de resolver problemas, são controlados pelos praticantes, os pesquisadores podem se concentrar no estudo dos processos biológicos independentemente de problemas médicos, e evitar assim serem julgados pelo valor específico de seu trabalho para problemas médicos determinados. (...). Assim, cientistas e clínicos seguem diferentes objetivos e métodos de avaliação, mesmo quando estão, aparentemente, trabalhando com o "mesmo" problema"(10).Estas citações ajudam a entender que o conteúdo "científico" das modernas profissões é bastante mais problemático do que geralmente se supõe. Não há dúvida que a troca do latim pela biologia, nas faculdades de medicina, assim como a incorporação da matemática e da física nas faculdades de engenharia, ao lado de suas razões de ordem técnica, fizeram parte de um claro movimento de manutenção do caráter esotérico, fechado, autônomo e auto-regulado destas profissões. É isto que torna possível argumentar que os médicos cercam suas atividades de mais mistério do que seria necessário, que os engenheiros na realidade aprendem a maior parte do que sabem dos mestres de obra, e assim por diante; e torna possível dizer também que estas e outras profissões inventam necessidades que antes não existiam, simplesmente para aumentar sua importância e seu mercado. Poucos duvidam, por outra parte, que esta transição melhorou o conteúdo técnico destas e outras profissões.
"Esta subordinação da pesquisa ao ensino, e da educação superior às necessidades da educação secundária, foi encorajada por um padrão de carreira que conduzia o futuro professor universitário a vários anos de ensino los liceus, antes que fosse possível conquistar uma posição na universidade. Com poucas exceções, os intelectuais franceses passavam muitos anos ensinando em escolas secundárias, e alguns dos professores franceses mais proeminentes, principalmente nas humanidades, preferiram permanecer nos liceus por toda a vida. O filósofo Alain, por exemplo, considerava com razão que os melhores liceus eram lugares mais prestigiados do que as faculdades. Se esta relação do ensino superior com o secundário teve a vantagem de dar à França um excelente sistema de educação secundária, ele significou também que muitos cientistas promissores terminaram perdidos para a ciência"(22).Situação semelhante ocorria no Brasil até algumas décadas atrás, quando uma posição de professor titular do Colégio Pedro II, ou da Escola Normal do Rio de Janeiro, não perdia em prestígio para uma posição universitária. A gradual introdução dos padrões de pesquisa científica nas universidades brasileiras, estimulada em parte pela expansão das oportunidades de emprego para professores universitários, com a generalização dos regimes de tempo integral nas universidades públicas, levou a uma estratificação crescente entre o pesquisador-professor, voltado basicamente para a carreira universitária, e o professor de nível médio, que terminou sendo uma profissão residual para os que não conseguiam melhores oportunidades. Enquanto isto, as funções supostamente mais nobres relacionadas com o ensino básico (orientação escolar, supervisão, planejamento, administração escolar) passaram a ser objeto de cursos especializados nas faculdades de educação, deixando o ensino propriamente dito para um proletariado feminino de nível médio cada vez mais rebaixado em termos de remuneração e prestígio social.
Profissões de alto prestígio e valorização | profissões de baixo prestígio e desvalorização | |
Tradição das profissões liberais | profissões liberais clássicas: medicina, direito, engenharia. | profissões técnicas e "modernas": contabilidade, biblioteconomia, serviço social, processamento de dados, etc. |
Tradição acadêmica | carreiras científicas e de pesquisa: física, biologia, economia, antropologia, etc | magistério secundário (história, geografia, matemática, pedagogia). |