A Redescoberta da Cultura

Ciência, Profissões e a Questão da Autonomia Universitária

Simon Schwartzman

Publicado em A Redescoberta da Cultura, São Paulo, EDUSP, 1997.

Sumário

Ciência, profissões e a quetão da autonomia universitária

Da autonomia das corporações à autonomia da ciência

O conteúdo científico das profissões

Tradições científicas e não científicas nas universidades modernas

Dinâmica do ensino superior contemporâneo: hierarquia, igualdade ou diferenciação?

E a autonomia universitária?

Notas


Ciência, profissões e a quetão da autonomia universitária

A Constituição brasileira de 1988 entronizou o princípio da autonomia universitária mais ou menos no atropelo, sem que houvesse tempo de examinar com mais profundidade que autonomia seria esta, qual seu fundamento, qual o seu alcance, e de que forma ela poderia ser implementada. A autonomia inclui o direito de eleger os reitores nas universidades públicas sem que os governos participem da indicação? Universidades autônomas têm ou não o direito de abrir e fechar cursos, fixar salários de professores, alienar seus patrimônios, contratar e demitir funcionários, cobrar anuidades de alunos? Quando o governo paga a conta, que poderes tem de avaliar, interferir e controlar? E quando as universidades são criadas e mantidas por fundações privadas, ou pela Igreja, que direitos de interferência têm as mantenedoras? E mais seriamente: se as universidades são, na realidade, a parte menor de nosso sistema de ensino superior, o que acontecerá com as demais instituições de ensino superior do país? Se transformarão, todas, em universidade? Não terão direito à autonomia? Desaparecerão?

Questões como estas se prestam a todo tipo de interpretações, e deverão gerar uma grande quantidade de normas e leis complementares, que com toda a probabilidade encontrarão resistências e serão objeto de contestações legais de diversos tipos. A principal dificuldade, no entanto, não é a falta de clareza nas leis, mas a falta de consenso sobre a razão de ser da autonomia, que expressa, por sua vez, as contradições que existem no interior de nossas instituições de ensino superior. Vale a pena, por isto, aprofundarmo-nos na questão da autonomia, não na esperança de resolvê-la (porque não se trata, afinal, de uma mera questão de entendimento, mas de contradições reais de objetivos e interesses de diferentes grupos sociais) mas quem sabe na de entender melhor a natureza dos sistemas universitários contemporâneos, suas dificuldades, suas potencialidades, e suas contradições.

Existem duas maneiras diametralmente opostas de entender a questão da autonomia, que no Brasil de hoje se encontram quase totalmente confundidas. A primeira, mais clássica e tradicional, parte da idéia de que as universidades são corporações altamente especializadas, detentoras de um conhecimento que nenhum outro setor da sociedade possui, e que por isto não podem estar sujeitas a nenhuma forma de controle externo, sob pena de não conseguirem realizar seus objetivos de forma adequada. Trata-se de uma extensão das antigas idéias de autonomia das corporações de ofício, e que hoje ainda persistem nos sistemas de auto-controle profissional exercidos no interior das profissões liberais, como a medicina e o direito. Ela repousa, fundamentalmente, em uma presunção de competência específica e intransferível das universidades para a execução de suas funções, e supõe, naturalmente, que as universidades sejam comandadas, em seu interior, pelos que detêm esta competência, ou seja, seus professores.

Corporações tendem a ser governadas de forma hierárquica, com uma oligarquia de mestres no topo, que definem as regras e controlam os procedimentos de acesso de novos membros ao seu interior, assim como os mecanismos de prestação de serviços e demais formas de relacionamento com os usuários de seus serviços. Neste sentido elas se chocam com a segunda interpretação sobre o que seja a autonomia, que consiste, simplesmente, na extensão do conceito de democracia majoritária e participativa para o interior dos sistemas educacionais. Nesta perspectiva, a democracia não seria somente um sistema de escolha de autoridades públicas pela via do voto, mas deveria existir no interior de cada unidade de organização social. Em todas as partes, o princípio democrático deveria ser o do poder da maioria, com a exclusão de interferências externas: os operários e empregados deveriam comandar as fábricas; os médicos, enfermeiras e doentes, os hospitais; os soldados e oficiais, as forças armadas; os funcionários, as repartições públicas, e os estudantes, funcionários e professores, as universidades, cada qual na proporção de seus números. Na sua forma mais extrema, esta concepção não distingue entre o exercício legítimo da autoridade e o autoritarismo puro e simples; ambos seriam formas mais ou menos disfarçadas de opressão, a serem quebradas pela mobilização dos oprimidos. Nesta perspectiva, a Universidade não teria nada que a distinguisse de outras instituições ou organizações públicas: a autonomia conquistada na Constituição seria, tão somente, um sinal de que ela se encontra à frente de outras instituições no caminho da democracia plena.

Estas duas concepções do que seja a autonomia universitária não coexistem facilmente, principalmente porque elas se prestam a interpretações políticas e ideológicas totalmente contraditórias. A defesa da autonomia pode ser lida tanto como um esforço por manter a universidade como vanguarda e guardiã do futuro, e trincheira de resistência contra o capitalismo avassalador, quanto como um movimento defensivo e retrógrado em favor de uma corporação ultrapassada e elitista, a serviço das classes dominantes. Por outra parte, existem bons argumentos, tanto à "direita" quanto à "esquerda", contra a autonomia. A idéia de que as universidades -- e junto com elas os cientistas e todos os profissionais de nível superior -- devem deixar seu isolamento, e ser postos a serviço da sociedade, faz parte tanto dos conceitos Gramcianos de "intelectualidade orgânica" quanto das teorias do capital humano, próprias do pensamento econômico liberal.

No Brasil pós 1985 prevaleceu até agora uma coalizão precária entre as duas noções de autonomia, levando à concepção dominante de que as universidades são instituições autônomas, voltadas para a pesquisa, o ensino e a extensão, e governadas pelo princípio majoritário. A concepção oposta sempre preponderou nos países socialistas, tem encontrado nos últimos anos grande aceitação nos regimes mais conservadores da Europa, a começar pela Inglaterra; e tem mais adeptos do que se pensa em nosso meio. É uma perspectiva segundo a qual os membros das instituições universitárias formam um grupo de interesse como qualquer outro, com uma forte tendência a buscar privilégios à sombra do Estado, e necessitam, por isto, ser estritamente controlados pelo governo, e enquadrados nos planos de desenvolvimento econômico, na vertente socialista ou socializante, ou lançados à própria sorte na busca de recursos no mercado privado pela venda de seus serviços, na versão neo-liberal. Este raciocínio é utilizado, na área científica, argumentando que os cientistas não teriam razões para reivindicar do governo ou da sociedade nenhum tratamento especial, que a diferenciasse dos serviços de energia elétrica ou de controle de epidemias rurais, por exemplo. Os argumentos em prol da autonomia acadêmica e da liberdade de pesquisa não seriam mais do que cortinas de fumaça para a proteção de privilégios antigos e injustificáveis. As universidades, e seus funcionários e professores, deveriam ser tratados como quaisquer outras instituições e seus respectivos empregados, geridas segundo as técnicas mais modernas de administração empresarial, com metas e produtos claramente identificáveis - formação de profissionais dotados de qualificações bem definidas, pesquisas de utilidade claramente perceptível - e rigorosas análises de custo-benefício do uso que fazem de seus recursos. Esta visão, seria desnecessário dizer, encontra acolhida principalmente em agências governamentais, mas também no setor empresarial e entre o próprio público, que freqüentemente se desespera com o contraste entre o que as pessoas esperam das universidades e o que elas proporcionam em termos de pesquisa aplicada, cursos e oportunidades profissionais. Ela tem também um forte apelo à esquerda, com sua ênfase na necessidade de planejar os investimentos e as atividades de educação e de pesquisa científica e tecnológica em função de objetivos sócio-econômicos de longo prazo. No Brasil, esta concepção é mais articulada em relação à pesquisa do que em relação às universidades como tais, mas é bastante provável que comece a ganhar força também aí, alimentada pelas próprias deficiências do sistema de ensino superior.

Da autonomia das corporações à autonomia da ciência

Ainda que existam argumentos ponderáveis a favor da descentralização da autoridade e do aumento da participação de todos na gestão de suas atividades, não há como levar muito longe a defesa da autonomia universitária simplesmente nestes termos, dados seus custos evidentes para a sociedade como um todo, e a natural expectativa de que elas correspondam a estes custos com uma prestação adequada de serviços.

A defesa da autonomia universitária torna-se muito mais consistente quando apoiada em uma reivindicação sobre a natureza especial das instituições de ensino superior, tendo como elemento principal a questão da pesquisa científica. De fato, um dos argumentos mais usados em defesa da autonomia universitária é que seus pesquisadores/professores trabalham na fronteira do conhecimento, olhando com visão crítica e inovadora a realidade, e esta é uma atividade que não poderia, por sua própria natureza, se subordinar a controles externos ou metas e avaliações de curto prazo. A atividade de pesquisa seria, assim, uma atividade necessariamente auto-regulada, sob pena de deixar de existir. E como o ensino, para ser de qualidade, deve ser inseparável da pesquisa, o mesmo valendo para a extensão, as universidades como um todo só poderiam existir e florescer com autonomia. O argumento oposto é que a noção da pesquisa como atividade livre e individual é ultrapassada, ciência e tecnologia são uma coisa só, e devem estar integrados a projetos globais de interesse do país e da sociedade. O mesmo valeria para o ensino: caberia à sociedade dizer que tipos e quantos profissionais necessita, e exigir que as universidades entreguem este produto em quantidade e qualidade adequadas e a preços razoáveis(1). Estes profissionais, por sua vez, deveriam perder de vez a ilusão de se organizar em corporações autônomas e auto-reguladas; no mundo cada vez mais capitalizado em que vivemos, eles não seriam senão operários como outros quaisquer, cuja ação política e social só faria sentido no bojo do movimento operário mais amplo(2).

A idéia de autonomia universitária está ligada à tradição de autonomia e auto-regulação das corporações profissionais, e é anterior à entronização da pesquisa científica nas universidades modernas. A auto-regulação profissional sempre teve uma dupla face. Por um lado, ela funciona como uma reserva de mercado para um grupo restrito de pessoas, que controla em causa própria os segredos de sua profissão, as regras de admissão de novos membros e os próprios preços e condições em que seus serviços são oferecidos. Por outro, ela permite o desenvolvimento de tradições profissionais e de competência que são passadas de geração em geração, e dão condições para a produção de bens e serviços que a sociedade aprecia, e que dificilmente existiriam ou seriam desenvolvidos com tanta perfeição fora das corporações profissionais. No limite, não podem existir corporações profissionais cujos serviços não sejam valorizados por ninguém, a não ser, talvez, na forma de corporações militares que se mantêm pela violência contra outros grupos sociais. Por outra parte, seria difícil manter o monopólio profissional sobre atividades de natureza transparente, que qualquer pessoa pode aprender e replicar, sem passar pelos rituais de aprendizagem e iniciação próprios das corporações. Entre estes dois extremos - a atividade técnica totalmente transparente e universalmente acessível, e o controle corporativo de atividades inúteis e habilidades inexistentes - existe um grande espaço para a mistificação e a usurpação de privilégios indevidos, assim como para o desenvolvimento autêntico de competências profissionais especializadas e adquiridas através de sistemas corporativos mais ou menos fechados e auto-regulados. É neste espaço que se dá o eterno debate contra e a favor da autonomia e auto-regulação das profissões, assim como das universidades.

A revolução industrial destruiu aos poucos a autonomia das antigas corporações profissionais, primeiro pela subordinação dos artesãos à fábrica, e mais tarde pela apropriação de sua competência profissional pela tecnologia incorporada às máquinas e aos sistemas de divisão do trabalho(3). Sobraram, na tradição corporativa, aquelas atividades que conseguiram manter um aprendizado mais longo e mais difícil, inicialmente ligado ao conhecimento das letras clássicas, e, mais recentemente, às ciências. Foi este o caso da medicina, do direito e do sacerdócio, ampliado mais tarde, em alguns países, para a engenharia. A engenharia, na França napoleônica, substituiu as antigas profissões como forma de educação e treinamento das elites, uma tradição herdada pelo Brasil. Nos países de tradição alemã ou anglo-saxã, no entanto, (incluindo a Inglaterra, os Estados Unidos e a Alemanha), a engenharia tem até hoje dificuldade em obter reconhecimento similar às outras profissões, ficando freqüentemente fora das universidades, que não tiveram, por outra parte, dificuldades em incorporar as ciências naturais e exatas, como a física, a química e a matemática(4). O Brasil importou este modelo francês, inicialmente para as profissões tradicionais, e mais tarde para um número cada vez maior de profissões de nível superior, todas elas defendendo o controle autônomo de sua área de competência e exercício profissional, e a ajuda do braço do Estado para impedir o trabalho dos que não possuam as credenciais adequadas. Assim como a medicina está associada às ciências biológicas, e a engenharia às ciências físicas e matemáticas, cada profissão trata de identificar suas próprias ciências básicas, suas próprias áreas de pesquisa, seus próprios cursos de graduação, e toda a parafernália que acompanha as ciências modernas - revistas, congressos, viagens internacionais, bancos de dados, e assim por diante.

A incorporação de conteúdos científicos aos cursos de formação profissional, no entanto, foi sempre um processo difícil e contraditório, e de entendimento ainda mais dificultado pelo sentido cambiante que a palavra "ciência" tem tido em diversos contextos, países e épocas históricas. Edmundo Campos, em trabalho recente(5), mostra bem esta variação de sentidos através do tempo e do espaço, e conclui que o ensino sempre esteve associado à pesquisa, em algum de seus múltiplos sentidos, o que tornaria equivocada a tese de que a pesquisa científica, no sentido atual do termo, tem uma relação difícil e nem sempre harmônica com o ensino superior. É uma conclusão que só seria válida - mas trivial - se ampliássemos desmesuradamente o conceito atual de pesquisa científica, para incluir qualquer tipo de atividade intelectual mais viva e criativa. Ninguém poderia defender a idéia de que professores devam ser meros repetidores de conhecimentos enlatados, e que possa haver bom ensino sem experiências de laboratórios, pesquisas bibliográficas mais amplas, leituras inteligentes e críticas de textos e autores, discussão de idéias, interpretação de contextos, e assim por diante. A questão atual, no entanto, não é esta, mas sim a de saber se a pesquisa científica, na forma em que ela é entendida hoje (como pesquisa de ponta, com possibilidades de contribuições significativas a determinados campos de conhecimento, e atividade profissional orientada para a participação em comunidades nacionais e internacionais de pesquisadores) é o único instrumento para produzir o ambiente de criatividade e de scholarship que a atividade educacional requer. Para responder a esta pergunta é necessário ter em conta a multiplicidade de fenômenos que se escondem sob os termos "pesquisa" e "ciência", ao invés de desconsiderá-la.

As universidades tradicionais na Europa sempre buscaram formar o homem culto, conhecedor das tradições gregas, latinas e da escolástica, nas quais se alicerçavam seus conhecimentos de medicina, direito ou teologia. Para os ingleses, a cultura era definida em termos de "scholarship"; os alemães buscavam uma sabedoria mais ampla e abrangente, baseada na filosofia e no humanismo, sob a égide da "Wissenschaft"; os franceses, nos anos iluministas da pós-revolução, punham ênfase no conhecimento da matemática, da lógica, da física racional e da astronomia, uma "Science" com letras maiúsculas e pretensões de verdade absoluta. Robert Gilpin, em várias passagens de seu estudo clássico sobre a ciência francesa, chama a atenção para a contradição que havia entre as concepções básicas e a organização do sistema educacional francês, por um lado, e por outro os requisitos da pesquisa científica moderna, que começavam a ganhar corpo na Alemanha em meados do século XX:
Os franceses idealizavam o professor como um homem de grande cultura e conhecimentos enciclopédicos, e não como um especialista trabalhando em um campo delimitado com o objetivo de trazer alguma contribuição nova ao conhecimento. Ele seria um savant, embebido da cultura antiga e clássica, que deveria ser passada, através de seus estudantes, para a geração seguinte". "O propósito da universidade alemã era ensinar a pesquisar, e não somente o conteúdo da ciência. O ideal germânico contrastava com o francês, ao treinar os estudantes para se transformar em um scholar independente. A diferença crucial era que, na Alemanha, não era suficiente conhecer a ciência: era indispensável saber fazê-la.
A ênfase as ciências matemáticas, que marcou a École Polytechnique e a maioria das grandes écoles, não alterou este quadro:
Para o jovem francês interessado em estudar em uma das grandes écoles, as provas de seleção significavam que ele deveria passar dois ou três anos estudando matemática depois do término do lycée, aos 16 ou 17 anos. Sua chance de passar eram pequenas, mas, passando ou não, ele teria que gastar muitos de seus anos mais criativos aprendendo uma matemática abstrata que teria pouco uso tanto em uma carreira de engenheiro quanto em uma de pesquisador. É certo que a grande ênfase posta na competência matemática nos concursos de admissão às grandes écoles contribuiu de forma importante para a tradicional força dos franceses em matemática pura. Por outro lado, o prestígio da matemática pura sem dúvida desviou pessoas talentosas de outros campos tais como a matemática aplicada e a física matemática(6).
Na Inglaterra, a pretendida nobreza dos scholars não os diferenciava somente dos mais pobres, mas também da aristocracia inculta, e os protegia contra a riqueza arrogante dos burgueses:
O profissional, argumentavam aqueles que desconfiavam das implicações éticas dos aspectos aquisitivos do capitalismo, pensava mais no dever do que no lucro. A gratidão de seu cliente, e não o mercado, definia sua recompensa; e, tecnicamente, ele jamais recebia pagamentos, e sim honorários. Sua reputação era conquistada pela discreção, tato e conhecimento especializado, e não pela publicidade e pelo sucesso financeiro. Ele era um homem culto, sua educação era ampla e abrangente. Diferentemente do homem de negócios, que operava em um mercado impessoal, o profissional se relacionava com seus clientes de forma pessoal e íntima. Idealmente, ele não precisava competir com outros da mesma profissão, ou pelo menos não na mesma medida do que os homens de negócios. As associações profissionais, com seus princípios de admissão controlada por exames de ingresso e numerus clausus, o protegiam das pressões mais severas da oferta e da procura. Suas maneiras, assim, eram contidas, uma qualidade de gentleman que os distinguia da agressividade dos industrialistas do interior e do norte do país(7).
Em todas estas sociedades a dimensão "culta" das profissões mais nobres servia, ostensivamente, para garantir a qualidade de seus membros e os serviços que prestavam; e, na prática, para marcar sua diferença em relação a outras atividades menos nobres. O desenvolvimento de conhecimentos de base experimental na biologia, na química e na física, mais próximos do conceito moderno de "ciência empírica", se deu inicialmente fora das universidades tradicionais, e só aos poucos foi sendo aceito por elas, a princípio nas universidades alemãs, assim como nas universidades escocesas, para mais tarde se incorporar em departamentos especializados e penetrar, finalmente, nos currículos dos cursos profissionais.

A incorporação de novas disciplinas às universidades, a substituição de disciplinas tradicionais por outras mais modernas, a introdução de disciplinas básicas nos cursos profissionais, todo este processo foi o resultado de uma série de fatores relativamente independentes uns dos outros, muitas vezes contraditórios entre si, e por isto mesmo quase sempre recebidos com desconfiança nas carreiras mais tradicionais. Em parte, esta incorporação se explica pelo surgimento, nas universidades, de um novo tipo de scholar, o cientista e pesquisador, em substituição ou ao lado do scholar tradicional, o erudito. Ao contrário dos professores médicos, advogados e engenheiros, típicos das antigas faculdades brasileiras, que só dedicavam pequena parte de seu tempo de trabalho à formação de futuros colegas, o scholar tradicional tinha no ensino sua atividade principal, e, por isto, tratava de valorizá-lo o quanto podia. Nas universidades tradicionais ele era, quase sempre, um sacerdote, que tinha no estudo e na tarefa educativa sua principal missão(8). A partir do século XIX, as universidades alemãs introduzem a competição e a disputa pelos professores de maior prestígio, exigindo deles conhecimentos que íam muito além do que as carreiras tradicionais ou para o magistério requeriam, e oferecendo aos mais qualificados condições de trabalho e de pesquisa até então desconhecidas.

O conteúdo científico das profissões

Não se pode pensar a questão do conteúdo cultural e da cientificização das universidades e das profissões em termos estritamente funcionais. Quanto latim precisa saber um advogado? Quanta matemática e física precisa saber um engenheiro? Quanta biologia (e Latim, e alemão) precisa saber um médico? Se hoje parece ridícula a idéia de que um bom médico tem que saber latim, poucos duvidam da noção de que o bom engenheiro tem que saber física, e o médico, biologia. E no entanto, os que se dedicam a observar mais de perto o conteúdo efetivo de uma atividade profissional como a engenharia notam que ela está longe de consistir em uma simples aplicação prática de conhecimentos físicos.

Engenheiros trabalham a partir de tradições de ação pragmática e controlada que se fundam muito mais na experiência acumulada da profissão do que nos conhecimentos teóricos da física, de aplicabilidade freqüentemente muito mais reduzida. Richard Whitley resume desta forma o que se sabe hoje sobre as profundas diferenças entre engenharia e a ciências físicas:
"Porque os engenheiros têm que produzir artefatos que preenchem determinadas funções em circunstâncias particulares que eles não controlam, a relevância de teorias gerais de relações entre propriedades abstratas de fenômenos idealizados em condições altamente controladas de laboratório é muito limitada". "Enquanto que os físicos se preocupam principalmente em entender e prever as propriedades da matéria, e se concentram, no caso da mecânica de fluidos, nas equações diferenciais de movimentos, os engenheiros precisam construir artefatos úteis e não se preocupam tanto com o conhecimento detalhado de processos internos. O conhecimento na engenharia, por isto, está menos orientado para os detalhes ontológicos, e mais para a racionalização e a síntese de ajustes e técnicas ad hoc de utilização prática. Seu conhecimento é organizado de acordo com leis físicas, mas focalizado em métodos de solução de problemas, antes que em marcos de referência explicativos. O aspecto distintivo do conhecimento técnico e prático reside em que a aquisição de conhecimentos científicos, por si só, não produz engenheiros competentes, e a capacitação para atividades de síntese é distinta da capacitação para a pesquisa científica. A formalização de boa parte do conhecimento de engenharia, para propósitos de ensino, assim como o uso da matemática, não caracterizam, por si mesmos, a "cientifização" da engenharia, mas a racionalização das habilidades técnicas ao redor de marcos de referência sintéticos e conceitos analíticos úteis para os propósitos da engenharia, isto é, para poupar tempo e evitar erros. A competência em engenharia não consiste pois, simplesmente, na aplicação do conhecimento científico a problemas tecnológicos, mas sim no uso de marcos de referência e abordagens tecnológicas, que incorporam teorias científicas, na concepção e desenvolvimento de artefatos e processos. Ela envolve habilidades profissionais na avaliação de constantes, etc.; conhecimentos organizacionais sobre convenções e preferências; e experiência no tratamento de um grande número de problemas e situações relativas ao contexto de trabalho. a maior parte da prática de engenharia não utiliza de forma direta o conhecimento adquirido na Faculdade, e quando existem teorias tecnológicas sobre artefatos, como por exemplo no caso da teoria de Rankine sobre motores a vapor, são necessários desenvolvimentos e especificações posteriores, para que eles possam ser úteis para os engenheiros(9).
O mesmo pode ser dito da medicina, onde a tradição clínica tende a colocar em um plano subordinado as contribuições e aplicações da ciência básica. Observa Whitley que
"Porque os médicos praticantes, ou suas elites, exercem um controle substancial sobre a maneira pela qual os problemas médicos são definidos e atribuídos a diferentes competências profissionais, assim como sobre a maneira pela qual os resultados dos tratamentos devem ser interpretados, eles são capazes de determinar o uso de tecnologias de base científica e seus resultados. Diagnósticos e decisões de tratamento permanecem essencialmente como atividades artesanais governadas por convenções que são transmitidas por métodos tradicionais de aprendizagem, antes que por métodos formais". O resultado é separação entre a clínica e a pesquisa: "esta separação das atividades de pesquisa do artesanato na solução dos problemas não somente serve para manter a autonomia do médico praticante, como também para manter a autonomia do cientista em relação às pressões para produzir resultados práticos relevantes. Porque os procedimentos de tratamento, assim como os métodos de resolver problemas, são controlados pelos praticantes, os pesquisadores podem se concentrar no estudo dos processos biológicos independentemente de problemas médicos, e evitar assim serem julgados pelo valor específico de seu trabalho para problemas médicos determinados. (...). Assim, cientistas e clínicos seguem diferentes objetivos e métodos de avaliação, mesmo quando estão, aparentemente, trabalhando com o "mesmo" problema"(10).
Estas citações ajudam a entender que o conteúdo "científico" das modernas profissões é bastante mais problemático do que geralmente se supõe. Não há dúvida que a troca do latim pela biologia, nas faculdades de medicina, assim como a incorporação da matemática e da física nas faculdades de engenharia, ao lado de suas razões de ordem técnica, fizeram parte de um claro movimento de manutenção do caráter esotérico, fechado, autônomo e auto-regulado destas profissões. É isto que torna possível argumentar que os médicos cercam suas atividades de mais mistério do que seria necessário, que os engenheiros na realidade aprendem a maior parte do que sabem dos mestres de obra, e assim por diante; e torna possível dizer também que estas e outras profissões inventam necessidades que antes não existiam, simplesmente para aumentar sua importância e seu mercado. Poucos duvidam, por outra parte, que esta transição melhorou o conteúdo técnico destas e outras profissões.

Esta descrição sumária comporta muitas variações, assim como desenvolvimentos imprevisíveis. Existem hoje áreas inteiras da medicina que escapam à tradição clínica, como as de engenharia médica e às vinculadas à pesquisa básica em genética, citologia, imunologia, e assim por diante. Na área das novas engenharias existe todo um conjunto de novos desenvolvimentos, como os da microeletrônica, que dependem diretamente de resultados da pesquisa básica em física da matéria condensada. O desenvolvimento de "expert systems" computadorizados, associados às dificuldades de manutenção de médicos e engenheiros como profissionais liberais, por outra parte, ameaça liqüidar com muitos dos "mistérios" e segredos destas profissões, da mesma forma que a revolução industrial liqüidou com as corporações de ofício. Finalmente, existe hoje, em muitos países, movimentos destinados a difundir entre a população conhecimentos e capacidade de decisão que até então eram zelosamente mantidos como monopólios das profissões(11).

Tradições científicas e não científicas nas universidades modernas

A predomínio de conteúdos científicos às profissões tradicionais nunca foi tão completa quanto quiseram os cientistas. Em toda parte, as faculdades de medicina, engenharia e direito continuaram a existir ao lado dos institutos de biologia, física, matemática e ciências sociais, às vezes em harmonia, às vezes coexistindo de forma mais ou menos tensa. Na prática, as universidades modernas mantiveram, de diversas maneiras, as duas tradições de scholarship e de formação profissional que já haviam se constituído de forma diferenciada desde a Idade Média, com a separação entre os cursos formativos básicos, o trivium e o quadrivium, e os cursos de formação profissional em direito, teologia e medicina(12). Estas duas tradições tinham em comum sua pretensão à exclusividade, à erudição e à autonomia; elas se diferenciavam, no entanto, pelo fato de que o scholar era um homem voltado para a vida intelectual e o trabalho na universidade, enquanto que o profissional era um homem do mundo. Diversas sociedades adaptaram e organizaram estas duas tradições à sua maneira. Nos países de tradição latina, o Brasil inclusive, procurou-se deixar o ensino das disciplinas formativas, das artes liberais, para as escolas secundárias, reservando as universidades para o ensino profissional. Os países de tradição germânica e anglo-saxã mantiveram as artes liberais nas universidades, principalmente para formação de clérigos e de professores de ensino básico e secundário, e mantiveram suas faculdades profissionais diferenciadas, quando não completamente excluídas do sistema universitário (como ocorreu com o ensino técnico na Alemanha)(13).

Todos estes arranjos sempre pressupunham uma universidade de recrutamento restrito, seja pela existência de outras alternativas educacionais (tão ou até mais apreciadas por muitos setores de elite), seja pela existência de canais alternativos de mobilidade e ocupação de posições de poder e prestígio, seja, finalmente, pela existência de barreiras sociais que de fato mantinham restritos os níveis de aspiração educacional por parte de amplos setores da população. A França optou pela educação de suas elites em escolas governamentais localizadas fora do sistema universitário (as grandes écoles), e criou um sistema independente e separado de pesquisa científica(14); as universidades inglesas mais tradicionais afastavam os homens de negócio(15); nos Estados Unidos, as "graduate schools", que são hoje a base de seu excepcional sistema de pesquisa universitária, se desenvolveram principalmente como escolas de formação de professores para o ensino pré-universitário(16); só a Alemanha, entre os países com sistemas universitários mais desenvolvidos no século XIX, fez da educação universitária um canal importante para a ascensão a postos governamentais significativos, ainda que fossem mantidos canais alternativos, como o do sangue azul, para as carreiras militares(17).

A massificação dos sistemas de ensino superior é um fenômeno da segunda metade do século XX, e está associada a dois processos distintos mas que muitas vezes se confundem, ou seja, a valorização do conhecimento técnico e científico como ingrediente central das sociedades modernas, e a expansão das aspirações de mobilidade social através da educação, e principalmente através da pressão pela generalização do modelo profissional da educação liberal tradicional.

Por não distinguir entre estes dois processos, alguns autores começaram a falar de uma "nova classe" profissional, baseada no controle do conhecimento, que substituiria a antiga polarização entre capital e trabalho na sociedade industrial(18). Outros, mais céticos, não viram neste processo senão a generalização de sinecuras obtidas graças à monopolização de privilégios garantidos por credenciais distribuídas pelos sistemas educacionais(19).

É difícil avaliar em que medida estes diferentes processos se superpõem, se reforçam e se contradizem. O surgimento de atividades profissionais e industriais dotadas de um forte componente científico e tecnológico é um fenômeno muito recente (dos últimos 10 ou 20 anos), limitado a um conjunto restrito de atividades de grande impacto (as chamadas "novas tecnologias"), e em grande parte realizado no interior de grandes corporações industriais e em estabelecimentos militares que investem pesadamente em tecnologia e dão formação especializada a seu pessoal, recrutado no início de suas carreiras em instituições educacionais de elite. Parece haver uma noção crescente, hoje em dia, de que empresas têm mais dificuldades do que universidades de alta qualidade de recrutar o melhor talento e estimular a criatividade de pessoas envolvidas em pesquisa básica sem objetivos tecnológicos bem definidos, vindo daí a tendência ao estabelecimento de vários tipos de associação entre universidades e empresa, e a criação dos chamados "parques tecnológicos" ao redor de centros universitários mais importantes. Esta tendência marca uma revalorização da pesquisa universitária, mas está longe de justificar seja a cientificização de todo o ensino superior, seja a incorporação da pesquisa tecnológica enquanto tal à Universidade, como atividade de grande escala(20).

A generalização das aspirações às carreiras profissionais é um fenômeno relativamente mais antigo, e tem sido estimulado mais pelo prestígio das antigas profissões liberais do que propriamente pela sua cientificização. Existe um fenômeno curioso de defasagem temporal neste processo: enquanto um grande conjunto de "novas profissões" tratam de emular o modelo profissional da medicina, por exemplo, e conquistar privilégios equivalentes, os médicos passam a trabalhar em grandes organizações, perdendo cada vez mais o controle técnico e financeiro sobre sua atividade profissional, e conseqüentemente, sua característica como "profissão liberal" clássica. O resultado desta "tecnificação" da profissão liberal (que ocorre também com a engenharia, e em diferentes medidas com o próprio direito, além de outras profissões mais tradicionais como a odontologia e a farmácia) é introduzir uma grande ambigüidade nos sistemas educacionais destinados a formação destes e de outros profissionais. Por um lado, a antiga valorização da "cultura" como elemento distintivo da formação profissional se soma à valorização da ciência para reforçar o modelo acadêmico, com ênfase no ensino de disciplinas básicas e valorização da pesquisa e da pós-graduação; por outro, generaliza-se a idéia de que o que vale, na formação profissional, são seus aspectos práticos e operacionais, ou seja, a posse de competências que podem ser melhor vendidas no mercado de trabalho, gerando uma grande desvalorização e esvaziamento das atividades e disciplinas de tipo mais formativo ou básico(21).

Um outro fenômeno característico da massificação do ensino superior moderno é a situação em que se encontra a formação do magistério para o ensino fundamental e secundário. O sistema tradicional brasileiro mantinha o ensino das primeiras letras sob a responsabilidade de mestre-escolas ou professoras semi-profissionalizadas, enquanto que o ensino secundário, orientado para o ensino das artes liberais, era proporcionado por sacerdotes e professores de nível universitário. As Faculdades de Filosofia, criadas a partir dos anos 30 no Brasil, eram freqüentemente indistinguíveis de Faculdades de Educação, e havia pouca noção de que a formação do pesquisador em disciplinas eminentemente acadêmicas, como matemática, português, história ou física, pudesse ser algo distinto da formação de professores para o ensino secundário. Esta é mais uma herança direta da França, que tradicionalmente fez da pesquisa uma atividade menor e subordinada ao ensino, e das universidades centros de formação de professores. Como mostra Gilpin,
"Esta subordinação da pesquisa ao ensino, e da educação superior às necessidades da educação secundária, foi encorajada por um padrão de carreira que conduzia o futuro professor universitário a vários anos de ensino los liceus, antes que fosse possível conquistar uma posição na universidade. Com poucas exceções, os intelectuais franceses passavam muitos anos ensinando em escolas secundárias, e alguns dos professores franceses mais proeminentes, principalmente nas humanidades, preferiram permanecer nos liceus por toda a vida. O filósofo Alain, por exemplo, considerava com razão que os melhores liceus eram lugares mais prestigiados do que as faculdades. Se esta relação do ensino superior com o secundário teve a vantagem de dar à França um excelente sistema de educação secundária, ele significou também que muitos cientistas promissores terminaram perdidos para a ciência"(22).
Situação semelhante ocorria no Brasil até algumas décadas atrás, quando uma posição de professor titular do Colégio Pedro II, ou da Escola Normal do Rio de Janeiro, não perdia em prestígio para uma posição universitária. A gradual introdução dos padrões de pesquisa científica nas universidades brasileiras, estimulada em parte pela expansão das oportunidades de emprego para professores universitários, com a generalização dos regimes de tempo integral nas universidades públicas, levou a uma estratificação crescente entre o pesquisador-professor, voltado basicamente para a carreira universitária, e o professor de nível médio, que terminou sendo uma profissão residual para os que não conseguiam melhores oportunidades. Enquanto isto, as funções supostamente mais nobres relacionadas com o ensino básico (orientação escolar, supervisão, planejamento, administração escolar) passaram a ser objeto de cursos especializados nas faculdades de educação, deixando o ensino propriamente dito para um proletariado feminino de nível médio cada vez mais rebaixado em termos de remuneração e prestígio social.

Dinâmica do ensino superior contemporâneo: hierarquia, igualdade ou diferenciação?

O resultado dos grandes movimentos históricos de criação de novos cursos e carreiras, do surgimento de novas profissões, das ampliações e transformações dos sistemas tradicionais de ensino, e da alteração no status profissional de grupos sociais inteiros, portadores de diferentes níveis e tipos de educação, é que já não é mais possível falar em "A Universidade" como um ente genérico, e muito menos postular a respeito de suas características essenciais, sejam elas a autonomia, a função crítica ou a suposta indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. É necessário, ao invés disto, poder pensar nos sistemas educacionais como um conjunto complexo de grupos sociais distintos, com interesses e motivações muitas vezes contraditórios, e cada qual buscando consolidar suas posições de prestígio e reconhecimento no contexto da sociedade mais ampla à qual pertencem. Pensar nos três estamentos que participam das universidades - professores, alunos, funcionários - já não é suficiente. Distinguir entre um "alto" e um "baixo clero" introduz um elemento adicional importante. Tomar em consideração as diferenças entre o setor público e o privado enriquece ainda mais o quadro, principalmente se partimos das reais características que os diferenciam ou assemelham no contexto brasileiro, e que são muito distintas das que prevaleciam nas décadas passadas, quando os debates sobre o ensino público adquiriram preeminência(23)

Além disto, no entanto, é necessário poder pensar nas diferentes tradições intelectuais, profissionais e educacionais que coexistem, de forma nem sempre harmônica, no interior de nossos sistemas educativos. Uma primeira aproximação a este respeito pode ser obtida a partir do quadro abaixo:

  Profissões de alto prestígio e valorização profissões de baixo prestígio e desvalorização
Tradição das profissões liberais profissões liberais clássicas: medicina, direito, engenharia. profissões técnicas e "modernas": contabilidade, biblioteconomia, serviço social, processamento de dados, etc.
Tradição acadêmica carreiras científicas e de pesquisa: física, biologia, economia, antropologia, etc magistério secundário (história, geografia, matemática, pedagogia).

O topo da escala de prestígio dos sistemas de educação superior é disputado pelas tradições das profissões liberais e pela tradição acadêmica. Existe bastante superposição entre ambas, no ensino das chamadas "disciplinas básicas" nos cursos profissionais, na adoção de um formato "científico" para os cursos de pós-graduação de tipo profissional, assim como pelas tentativas de regulamentação e "profissionalização" das carreiras científicas e acadêmicas. A reforma universitária de 1968 pretendeu consagrar o predomínio da tradição acadêmica por sobre as profissionais, pela criação dos institutos básicos e a organização das universidades através das departamentos organizados por disciplina. No entanto, a separação se mantém, como prova a preservação das faculdades de medicina, direito e engenharia como unidades autônomas e freqüentemente isoladas fisicamente dos centros de pesquisa básica, não só nas universidades brasileiras, como em todo o mundo(24).

Como a competição entre as tradições profissional e acadêmica não revelam um claro vencedor, elas induzem a que as carreiras de menor prestígio e valorização procurem emular os de alto prestígio, seja pela através da busca da garantia de monopólios profissionais, via legislação, seja pela cópia das instituições e padrões de comportamento próprios das comunidades científicas das disciplinas acadêmicas mais estabelecidas.

Esta tendência à equalização é resistida pelas profissões mais estabelecidas, assim como pelos cursos e carreiras com tradições científicas mais assentadas. Os argumentos contra a equalização são ao mesmo tempo corporativos, em causa própria, e em defesa da qualidade do ensino e da pesquisa. Os médicos, por exemplo, se opõem não só à expansão dos cursos de medicina, mas inclusive ao desenvolvimento de outras profissões de saúde que não reconheçam seu papel secundário em relação à medicina; com isto, conseguem manter o ensino médico dentro de certos padrões de qualidade, e, ao mesmo tempo, seu monopólio profissional. O mesmo ocorre com os grupos científicos mais bem constituídos, com sua ênfase nos valores da qualidade acadêmica e sua resistência às tentativas de trivializar o conceito de "pesquisa científica", e de distribuir recursos para a pesquisa por critérios regionais ou de conveniência de um ou outro tipo.

Esta disputa por prestígio, reconhecimento e os benefícios que eles produzem leva a uma dinâmica paradoxal. Por uma parte, forma-se um aparente consenso sobre a igualdade formal entre todas as profissões, carreiras e instituições de ensino superior, e a necessidade de elevar cada vez mais seu nível de qualificação. Por outro lado, a manutenção desta igualdade formal contribui para acentuar cada vez mais as desigualdades existentes, intensificar a estratificação e minar os próprios valores que a sustentariam.

Os exemplos abundam, a começar pela própria educação fundamental. Antes, quatro anos eram suficientes para uma criança recebesse um certificado de conclusão do curso primário; hoje, quem completar somente seis ou sete anos de educação básica não é senão um fracassado. Antes, uma educação profissional de nível médio, ou pós-secundária mas de curta duração, pareciam objetivos bastante razoáveis a serem atingidos por muitas pessoas; agora, só os cursos universitários plenos são considerados de valor. Antes, podiam haver cursos superiores orientados exclusivamente para a formação profissional, para o mercado de trabalho; agora, as instituições que não tiverem pesquisa e pós-graduação não obtém prestígio, reconhecimento e apoio financeiro, e os "meros" diplomas universitários já não valem muito. Antes, era possível formar professoras razoavelmente competentes nas escolas normais, de segundo grau; hoje, as universidades públicas só se interessam pelos poucos estudantes que possam se orientar para carreiras científicas, expulsando os possíveis candidatos ao magistério pré-universitário pelos rigores dos vestibulares e das exigências dos cursos. Como nunca ficou definido o predomínio da tradição acadêmica sobre as tradição do ensino profissional, as pressões pela equalização se fazem ao mesmo tempo segundo os dois modelos. Por um lado, todas carreiras profissionais procuram ter suas pós-graduações, suas disciplinas científicas, suas revistas especializadas, seus congressos; por outro, cada uma delas procura se organizar como profissão regulamentada, e garantir sua pequena reserva no mercado de trabalho profissional.

Como os exemplos acima sugerem, esta tendência ao nivelamento formal e por cima produz dois efeitos igualmente perversos(25). Por um lado, a fixação de metas cada vez mais altas intensifica as possibilidades de fracasso dos projetos educacionais em todos os níveis, e aumenta a estratificação e as desigualdades sociais, ao invés de reduzí-las; por outro elas levam à busca de mecanismos compensatórios que terminam por minar os próprios valores que fundamentam e legitimam as instituições educacionais e as profissões. Se todo mundo deve fazer pesquisa, mas se fazer pesquisa de qualidade é difícil e complicado, ampliemos o conceito de pesquisa, de tal maneira que todos possam participar; se as universidades são seletivas, baixemos os critérios de seleção nos vestibulares, estabeleçamos sistemas de quotas por origem sócio-econômica ou outros critérios, e eliminemos os sistemas de exames de conhecimento e reprovações; se algumas profissões conseguem manter seus monopólios e privilégios no mercado de trabalho, generalizemos os monopólios e privilégios para todas as profissões. Como acontece com tanta freqüência, a defesa de valores aparentemente indiscutíveis, como o da qualidade do ensino e o da igualdade para todos, acaba produzindo precisamente o seu oposto.

As dificuldades com a inflação de credenciais acadêmicas e profissionais não são muito distintas das que acompanham a inflação monetária. É possível manipular até certo ponto a distribuição de prestígio e privilégios dentro de uma sociedade, gerando a impressão de que todos, de alguma forma, saem ganhando. Mas a simples manipulação destes direitos, assim como a simples produção e distribuição de papel moeda ou dinheiro fiduciário, não bastam para produzir riquezas. O que elas geram, no melhor dos casos, são mecanismos alternativos, freqüentemente mais sutís e não explicitados, de diferenciação; e, no pior, a desorganização do sistema produtivo, com perdas para todas as partes envolvidas.

A experiência internacional sugere que só países pequenos, ricos e socialmente homogêneos, como os do norte da Europa, conseguem manter sistemas educacionais com pouca estratificação interna. Estes são, também, países de forte tradição social-democrática, que não costumam a proporcionar às universidades mais autonomia do que aquela estritamente necessária à consecução dos objetivos considerados socialmente válidos, e nem permitem às corporações profissionais a liberdade de ação que elas encontram em outros contextos. Países mais diferenciados e de maior porte que têm sistemas educacionais bem desenvolvidos - Inglaterra, França, Estados Unidos, e mesmo Alemanha e Japão - têm diversas combinações de universidades, escolas técnicas superiores, institutos universitários privados, escolas "vocacionais", universidades abertas, escolas de formação de professores, e assim por diante. É inevitável que existam diferenças de prestígio e reconhecimento entre estes diferentes tipos de instituição; mas elas tendem a ocupar lugares distintos na sociedade, responder a públicos diferentes, com diferentes aspirações e segundo metodologias e tradições de trabalho também especializados, e por isto as diferenças de prestígio e reconhecimento não são suficientes para fazer com que todos tratem de se amoldar às instituições de maior fama.

Sistemas sociais que admitem diferenças e trabalham a partir delas são, na aparência, menos democráticos e igualitários do que aqueles que não admitem senão o princípio da igualdade. Na realidade, no entanto, o que define a eqüidade social não é a igualdade formal, mas a efetiva igualdade de oportunidades e uma distribuição adequada da riqueza. O importante, para garantir e fortalecer os princípios da eqüidade social, é não fazer da diferenciação dos sistemas educacionais uma barreira intransponível na defesa dos privilégios de uns poucos, como ocorria em muitos países no passado, quando os sistemas educacionais se estratificavam freqüentemente por critérios raciais, lingüísticos, religiosos ou de nobreza e sangue. Na medida, no entanto, em que as linhas divisórias entre os diversos segmentos dos sistemas educacionais se mantenham fluidas, em que haja lugar para alternativas, novas experiências, mudanças de ênfase e disputa por espaço e reconhecimento, não só o princípio, mas a própria essência da eqüidade social estará sendo preservada, muito mais, seguramente, do que em sociedades onde o princípio igualitário coloca a todos na mesma camisa de força.

E a autonomia universitária?

É somente dentro deste contexto mais amplo que a questão da autonomia universitária ganha algum sentido que possa ir além das pretensões de poder político de determinados grupos no interior das instituições acadêmicas. É possível ver, agora, que a universidade de pesquisa, cujo modelo parece fundamentar o princípio da autonomia, se refere somente a uma pequena parte dos sistemas modernos de ensino superior, deixando de lado tanto as escolas profissional quanto a enorme variedade de cursos e sistemas educacionais de nível pós-secundário. Mesmo as chamadas universidades de pesquisa, no mundo de hoje, já não são simples comunidades de scholars e pesquisadores, mas tendem a se transformar em grandes complexos que produzem desde a pesquisa mais avançada ao ensino profissional de rotina, passando pela assistência técnica, os cursos de reciclagem e as atividades de extensão de todo tipo. Nestes complexos, é natural o desenvolvimento de vocações e especializações e são raras as unidades ou as pessoas que se dedicam com igual ênfase ao ensino, à pesquisa científica, à reciclagem, à assistência técnica e às atividades de extensão em suas diversas modalidades; o que significa que, mesmo nestas universidades, pesquisa científica ocupa um lugar relativamente limitado, ainda que muitas vezes de grande visibilidade.

Muitos concluiriam desta análise que a questão da autonomia já não tem mais sentido, e que as universidades, tanto quando as demais instituições educacionais, deveriam ser forçadas a abandonar de vez suas pretensões à excepcionalidade, e se enquadrarem de uma vez por todas às regras gerais de subordinação e obediência funcional que regem todo o resto do serviço público. Este raciocínio estaria perfeito, não fosse pelo fato, de todos conhecido, de que o serviço público raramente funciona de forma adequada. Vista por esta ótica, a questão da autonomia universitária não surge mais como ligada ao prestígio da ciência e de sua indissolubilidade com o ensino e com a extensão, e muito menos com a questão da democracia. Ela aparece relacionada, isto sim, às dificuldades de funcionamento das grandes burocracias, e da necessidade, hoje reconhecida em todos os setores da atividade humana, de devolver a iniciativa e a autonomia de ação e decisão às pessoas de carne e osso que têm a responsabilidade pelo dia a dia das organizações e instituições em que trabalham.

Quanto desta "devolução" de competências e responsabilidades é possível, quanto de centralização, coordenação e controle são possíveis e necessários, e em que tipos de atividade, são questões de grande complexidade técnica, que variarão de uma a outra esfera de atividade, e terão sempre um incontornável componente político. A conclusão parece ser, de qualquer forma, que existe uma base importante e inquestionável para a demanda por autonomia por parte das instituições educacionais, que são as tradições de competência que elas corporificam, sejam elas de tipo científico, humanístico, profissional ou técnico. A extensão desta autonomia será sempre objeto de negociação, porque as instituições educacionais vivem de e para a sociedade mais ampla. O importante é preservar e ampliar esta base de competência como princípio legitimador da atividade educacional. Sem ela, não só a autonomia, mas tudo o mais, estará perdido.



Notas

1. Esta linha de argumentação perdeu muito de sua força nos últimos anos, com a constatação do fracasso das tentativas de definir, com um mínimo de precisão, as necessidades de pessoal de nível superior futuras, que seriam indispensáveis para poder planejar a expansão e a orientação do ensino superior em qualquer país. A principal dificuldade é que a "demanda social" de graduados de nível universitário depende muito pouco de necessidades técnicas definíveis, e muito de convenções e privilégios consolidados de forma mais ou menos contingente. Veja, a respeito, O. Fulton, A. Gordon, e G. Williams, Higher Education and Manpower Planning: A Comparative Study of Planned and Market Economies, Genebra, International Labour Office, 1982.

2. O processo de sindicalização de profissionais de nível superior, e inclusive de professores universitários, que tem se acentuado no Brasil nos últimos anos, reflete bem esta tendência em sua vertente "à esquerda". Esta perspectiva é elaborada com clareza por Magali Sarfatti Larson, na conclusão de seu estudo sobre as profissões de nível superior no mundo moderno: "The autonomy and the 'intelligence of the whole' traditionally vested in professional work appear to be, now, uncertain privileges. To build or defend monopolies of competence and access does not protect these intrinsic qualities. For this, professional workers, in solidarity with all workers, must find the means of claiming and realizing the full human potential of all work". (The Rise of Professionalism, University of California, Berkeley, 1977, p. 244). A vertente "à direita", presumivelmente, é a que propugna a mercantilização e desregulação total das profissões.

3. Este processo não foi tão universal quando se supõe, e a sobrevivência de tradições artesanais em muitos países tem sido utilizada para explicar suas vantagens relativas no mundo pós-taylorista em que vivemos. Cf. Michael J. Piore and Charles F. Sabel, The Second Industrial Divide -- Possibilities for Prosperity. New York, Basic Books, 1984.

4. Sobre o papel da corporação de engenheiros militares, o "corps de ponts et chaussés", na institucionalização da engenharia francesa, cf. John W. Weiss, "Bridges and Barriers: Narrowing access and changing structure in the French engineering profession, 1800-1850", in Gerald L. Geison, ed., Professions and the French State, 1700-1900, Univ. of Pennsylvania Press, 1984, pp. 15-65. Sobre o papel da École Polytechnique francesa como instituição de elite, veja R. Gilpin, "The Heritage of the Napoleonic System", cap. 4, em France in the Age of the Scientific State, Princeton University Press, 1968, 77-123.

5. A Sinecura acadêmica: a ética universitária em questão, São Paulo, Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988.

6. R. Gilpin, France in the Age of the Scientific State, New Jersey, Princeton University Press, 1968, passim. A tradução para o português é minha.

7. Sheldon Rothblatt, The Revolution of the Dons - Cambridge and Society in Victorian England, Cambridge University Press, 1981. A tradução é minha.

8. O caráter leigo das Faculdades de tipo napoleônico, criadas por toda a América Latina depois da independência, significou a exclusão dos sacerdotes, e conseqüentemente das tradições de scholarship que existiam nas antigas universidades espanholas e portuguesas. Com isto, os conteúdos modernos que estas faculdades trataram de incorporar não encontraram terreno em que se assentar.

9. R. Whitley, Social Science and Social Engineering, trabalho apresentado à reunião da Comissão de Sociologia da Ciência da International Sociological Association, Amsterdam, Novembro de 1988, p. 5 e 6. As principais referências são E. Layton, "American Ideologies of Science and Engineering", Technology and Culture 17, 688-701, 1976; D. F. Channell, "The Harmony of Theory and Practice: The Engineering Practice of W. J. M. Rankine, Technology and Culture, 23, 39-52, 1982; W. G. Vincenti, "Control-Volume Analysis: a Difference in Thinking between Engineering and Physics", Technology and Culture 23, 145-174, 1982; B. E. Seely, "The Scientific Mystique in Engineering. Highway Research at the Bureau of Public Roads, 1918-1940", Technology and Culture, 25, 798-831, 1984; E. Constant, "Communities and Hierarchies: Structure in the Practice of Science and Technology", in R. Laudan, ed., The Nature of Technological Knowledge, Dordrecht, Reidel, 1984; J. L. Bromberg, "Engineering Knowledge in the Laser Field", Technology and Culture 27, 798-818, 1986; P. Walley, The Social Construction of Technical Work, London, MacMillan, 1986.

10. R. Whitley, Social Science and Social Engineering, p. 9. As referências são P. Atkinson, The Clinical Experience, the Construction and Reconstruction of Medical Reality, Farnborough, Hampshire: Gower, 1981; E. Friedson, Professional Powers, University of Chicago Press, 1986; I. Lõwy, "The Impact of Medical Practice on Biomedical Research: the case of Human Leucocyte Antigen Studies", Minerva, 25, 171-200, 1987; A. Cicourel, "The Reproduction of Objective Knowledge: Commonsense Reasoning in Medical Decision-Making", in G. Böhme e N. Stehr, eds., The Knowledge Society, Sociology of Science Yearbook 10, Dordrecht, Reidel.

11. Veja a respeito Frank Fisher, Expertise and empowerment: the elements of participatory research, trabalho apresentado ao XIV Congresso da International Political Science Association, Washington, D.C., 1988. Algumas das principais referências são: Charles H. Kieffer, The Emergence of Empowerment: The Development of Participatory Competence Among Individuals and Citizen Organizations, tese de doutoramento, Universidade de Michigan, Ann Arbor, 1982; Jethro Lieberman, Tyranny of Expertise, New York Walker, 1972; Donald Schon, The Reflective Practioner, New York, Basic Books, 1983; Ann Withhorn, Serving the People: Social Services and Social Change, New York, Columbia, 1984; Tomothy W. Kennedy, "Beyond Advocacy: a Facilitative Approach to Public Participation", Journal of the University Film and Video Association, XXXIV, 3, 1982.

12. O trivium consistia no ensino da retórica, da lógica e da gramática; e o quadrivium, da aritmética, geometria, astronomia e música. Estas disciplinas, em seu conjunto, formavam as sete "artes liberais", que deveriam preceder à formação nas carreiras de medicina, direito e teologia. Para uma visão ampla sobre as universidades medievais, cf. James M. Kittelson e Pamela J. Transue, Rebirth, Reform and Resilience: Universities in Transition, 1399-1700, Columbus, Ohio State University, 1984.

13. É importante ter sempre em mente que a linha divisória entre ensino secundário e universidade, e particularmente a demarcação etária, era muito menos clara no passado do que atualmente. Em geral, a expressão "colégio" (como o "college", na tradição inglesa) tende a se referir a um centro de educação geral que antecede ao estudo profissional. Até hoje as universidades inglesas têm seus "colleges", aonde, cem anos atrás, entravam jovens com a idade dos que hoje iniciam seus cursos secundários. Aonde os colégios eram definidos como pré-universitários, como no Brasil, também havia uma tendência a começar os estudos superiores muito mais cedo.

14. Robert Gilpin, France in the Age of the Scientific State, New Jersey, Princeton University Press, 1968.

15. Em seu estudo sobre os dirigentes da Universidade de Cambridge em meados do século XIX, observa Sheldon Rothblatt que, em 1860, "There was talk of a mutually advantageous arrangement with the Institute of Civil Engineers, but dons doubted whether major firms would employ enough university graduates to justify an investment in an engineering staff and facilities. Dons were even more pessimistic about the chances of attracting a larger number of sons from commercial families. Students preparing for commercial careers, they said, were not accostumed to lowering their standard of living in order to acquire an university education, specially as no commercial advantage could be gained by residence in Cambridge. Stated bluntly by the Tutor of Queens' College, merchants would not consider a Cambridge education appropriate for a Liverpool office". The Revolution of the Dons, 88-89.

16. Roger L. Geiger, To Advance Science: The Growth of American Research Universities, 1900-1940, Oxford University Press, 1986.

17. Cf. Hans Rosemberg, Bureaucracy, Aristocracy and Autocracy - The Prussian Experience, 1660-1815. Cambridge, Harvard University Press, 1966; e Fritz Ringer, The Decline of German Mandarins - The German Academic Community, 1890-1933, Cambridge, Harvard University Press, 1969.

18. Alvin A. Gouldner, The Future of the Intellectuals and the Rise of the New Class, New York, Oxford University Press, 1979.

19. Randall Collins, The Credential Society, New York, Academic Press, 1979; Magali Larson, The Rise of Professionalism, Pierre Bourdieu, Les Héritiers: les étudiants et la culture. Paris, Ed. Minuit, 1974.

20. Esta proximidade entre universidade e indústria leva, em alguns casos, ao estabelecimento de centros de pesquisa tecnológica em universidades que terminam por permanecer ociosos, ou transformados em simples instrumentos de venda de serviços à indústria, com efeitos duvidosos seja do ponto da formação de pessoal qualificado, seja do da pesquisa científica e tecnológica enquanto tais.

21. Na realidade, as sociedades modernas não requerem tanto pessoas com formação "científica", no sentido de que sejam capazes de pesquisar e dar contribuições na fronteira do conhecimento em suas áreas de competência, quanto, principalmente, pessoas dotadas de uma formação genérica suficientemente ampla que as permitam entender o funcionamento de sistemas administrativos e tecnológicos relativamente complexos, e suficientemente flexível que as permitam se adaptar a um mercado de trabalho em constante fluxo; algo semelhante ao que sempre se pretendeu proporcionar com a chamada "educação liberal", ou o ensino secundário de qualidade. É claro que deve fazer parte da educação de qualquer pessoa entender o que é uma pesquisa, e isto se transmite basicamente pela replicação didática de procedimentos de laboratório nas salas de aula, e exercícios correlatos. Cursos sobre "método científico" ou "filosofia da ciência" tendem a transmitir noções simplistas e hipostasiadas sobre ciência, que não servem para nada além de difundir as ideologias associadas à cientificização da atividade de ensino.

22. Gilpin, op. cit., p. 97. A tradução é minha.

23. No passado, a questão do ensino público vs. privado girava ao redor do tema do ensino leigo vs. ensino religioso, e também da educação universal, a ser data pelo Estado, e de elite, que era usualmente feia de forma privada e em associação com a Igreja. Era uma discussão referida essencialmente ao ensino fundamental. No Brasil de hoje, no entanto, e no nível do ensino superior, o que se constata e a já famosa situação em que o ensino público é altamente seletivo e recruta seus alunos principalmente entre os estratos sociais mais altos, enquanto que o ensino privado é mais aberto, usualmente de pior qualidade, e recruta seus estudantes nos estratos sociais menos favorecidos. Para uma visão global da questão contemporânea do ensino público vs. privado na América Latina, cf. Daniel C. Levy, Higher Education and the State in Latin America - Private Challenge to Public Dominance, Chicago, University of Chicago Press, 1986.

24. Este mesmo fracasso ocorreu por ocasião da criação da Universidade de São Paulo, quando se pretendeu que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras funcionasse como elemento de integração de todas as demais. O que aconteceu, principalmente a partir da reforma de 1968, foi que as escolas profissionais mais tradicionais criaram o sistema departamental em seu interior, mantendo, assim, o predomínio de sua identidade profissional.

25. Os "efeitos perversos" dos modernos sistemas educacionais, do ponto de vista da estratificação social, são hoje bem conhecidos. Veja, a respeito, Raymond Boudon, A Desigualdade de Oportunidades, Editora da Universidade de Brasília, 1981 (primeira edição francesa de 1973).