
A Redescoberta da Cultura
Os Dinossauros de Roraima (ou, a sociologia da ciência e da técnica
de Bruno Latour)
Simon Schwartzman
Publicado inicialmente em Novos Estudos - CEBRAP,
39, Julho de 1994, 172-179. Incluído em A Redescoberta da
Cultura, São Paulo, EDUSP, 1997.
O que fazia Bruno Latour, sociólogo da ciência e da técnica, passando
pelo Rio de Janeiro em 1991 a caminho de Boa Vista, Roraima? A resposta
surge agora, em um volume formado por vários ensaios sobre, entre outras
coisas, cintos de segurança, histórias em quadrinhos, molas de porta,
chaveiros, dinossauros, anjos, pinturas medievais, capitalismo selvagem
e, como para solucionar o enigma, uma curiosíssima chave encontrada em
um subúrbio antigo de Berlim, que dá nome ao livro(1).
Escrito em estilo leve, cheio de fotografias e desenhos, a coleção de
textos reunida neste livro confirma o lugar de Latour como um dos autores
mais originais e criativos da nova sociologia da ciência, que vem procurando
superar, a meu ver com grande sucesso, os antigos dilemas que opunham
o mundo social ao mundo da técnica e da ciência, assim como a razão científica
à razão prática. Ao final, no que talvez seja a contribuição mais inovadora,
embora incipiente, Latour enfrenta um outro dilema de importância central,
que é o que opõe, e muitas vezes confunde, o pensamento religioso e o
pensamento racional e científico.
Em Roraima, Latour participa de um trabalho de botânicos, pedólogos e
geógrafos franceses e brasileiros que tratam de entender como se dá a
interação entre a savana e a floresta em uma região em que os dois ambientes
se encontram. É a savana que avança sobre a floresta ou, ao contrário,
é a floresta que avança sobre a savana? É isto que interessava aos pesquisadores,
mas não ao sociólogo, que, anos antes, havia inaugurado a tradição, tantas
vezes repetida depois, de acompanhar o trabalho dos cientistas com os
mesmos olhos que os antropólogos acompanhavam a vida dos indígenas, em
um esforço de construir uma interpretação da realidade que pudesse ir
além dos mitos e representações correntes, seja dos pesquisadores, seja
dos pesquisados(2). A "antropologia
da ciência" ajudou a romper as barreiras que tanto a epistemologia
quanto a sociologia tradicionais haviam erigido entre o mundo social,
carregado de valores, conflitos, ideologias, mitos e imprecisões, e o
mundo da ciência, idealizado como o reino na lógica, da razão, da técnica
e da eficiência(3). Vista no seu que-fazer
quotidiano, a pesquisa científica não seria mais nem menos "racional"
do que qualquer outra atividade humana. Os conhecimentos obtidos não derivam
de uma lógica ou razão atemporais, nem de generalizações e abstrações
obtidas diretamente da observação sistemática dos fatos. Eles surgem como
construções provisórias e tentativas, desenvolvidas em um processo gradual
de decisões oportunísticas, negociações e, em muitos casos, a imposição
dos pontos de vista de uns sobre os dos demais. Latour, no entanto, não
acompanha até o final esta desconstrução da ciência a da tecnologia, utilizada
muitas vezes como munição no suposto conflito entre o humanismo e a técnica,
e que corre o risco de desembocar em um niilismo e um relativismo generalizados.
O conhecimento científico e a técnica não são nem produtos universais
da razão e da lógica, como querem os epistemólogos e como sustentam muitos
cientistas, nem o simples mascaramento de convicções irremediavelmente
locais, contingentes e efêmeras. O erro comum a estas duas concepções
seria seu absolutismo. Existem diferenças entre estas duas formas de conhecimento,
mas são diferenças relativas. O encontro da savana com a floresta, em
Roraima, documentado pela "montagem foto-filosófica" que nos
apresenta Latour, é também uma oportunidade para descrever, e tratar de
entender melhor, o encontro do conhecimento de sentido comum, quotidiano,
irremediavelmente localizado e qualitativo, com o conhecimento científico
e técnico.
A primeira fotografia deste ensaio(4)
é de um ponto de encontro da savana com a floresta - situação única, perdida
nas profundezas de Roraima, longe dos homens e da civilização. A última
fotografia é do pesquisador em seu escritório escrevendo em seu notebook
um artigo sobre os resultados da pesquisa, baseado em um gráfico que resume,
em uma página, toda a riqueza e variedade da botânica e do solo da região
pesquisada, em termos que possam ser entendidos universalmente pelos interessados
nos problemas de transição e transformação ambientais(5).
Entre os dois extremos, uma fotografia crucial, que é a do pesquisador
que pega um pedaço de terra, com uma mão, e com a outra o coloca em uma
caixa quadriculada que classifica as amostras do solo por sua posição
e profundidade. É isto, diz Latour, o que significa abstrair: transformar
um objeto concreto, único, local e insubstituível, em um elemento de um
conjunto maior, dentro de uma classificação por cores e posições. Em filosofia
da ciência, observa ele, a mão direita ignora o que faz a mão esquerda,
mas a observação antropológica desfaz este mistério: o pesquisador não
vai de um solo particular a uma "Idéia" ou conceito abstrato
de solo, mas de um pedaço de terra contínuo e múltiple a uma cor discreta
em um conjunto geométrico codificado por uma abscissa e uma ordenada.
É por sucessivas transformações como estas que o conhecimento científico
avança. O que é local, particular, material, múltiplo e contínuo vai perdendo
especificidade ao ser comparado, estandardizado, calculado, transformado
em texto, comunicado, universalizado. É um processo duplo de redução,
a floresta e a savana que agora cabem em um artigo científico, e de ampliação,
uma realidade local e irrepetível que agora faz parte de um universo amplo
de conhecimentos e relações.
Qual é o propósito deste tipo de atividade? Porque algumas sociedades,
grupos e pessoas se dedicam de forma intensa ao desenvolvimento das ciências
e das técnicas, enquanto que outras não o fazem? E em que consiste, afinal,
sua diferença em relação a outras formas de conhecimento?
Aqui Latour deixa para trás o terreno já percorrido da sociologia da
ciência, e parte para formulações mais originais e próprias, e também
mais tateantes. A transição entre a pintura medieval, representando o
sagrado, e um novo tipo de pintura realista que surge com o renascimento,
representando homens de ciência, comerciantes e políticos (o ponto de
partida é o quadro "Os embaixadores", de Holbein, do acervo
da National Gallery, datado de 1533) permite explorar estas diferenças(6).
A pintura sagrada, religiosa, é uma das tantas formas de levar às pessoas
um conhecimento específico de algo que está distante, ou seja, a verdade
religiosa e divina. Os embaixadores, pintados com seus instrumentos de
viagem e conhecimento do espaço físico (instrumentos de cartografia, cosmografia,
topografia), apontam para uma outra forma de trazer conhecimentos longínquos
sobre terras e mundos distantes, para o aqui e agora. Aqui cessa, no entanto,
a semelhança. Porque a mensagem religiosa não busca transmitir um conhecimento
específico, factual, e sim estimular, em cada pessoa, um contato pessoal
e íntimo com uma experiência própria e irredutível. A pintura religiosa,
as igrejas, as procissões, os rituais, os lugares sagrados, as aparições
dos santos e dos anjos, todas estas manifestações são "re-apresentações"
de experiências que se multiplicam e se reproduzem infinitamente, cada
vez de uma outra forma, cada qual com seu próprio conteúdo. É o mensageiro,
mais do que a mensagem, que importa; os anjos e profetas valem pelo que
são, muito mais do que pelo que dizem, e se expressam em uma linguagem
cifrada que cabe a cada um entender e interpretar, e que não corresponde
a nenhuma realidade concreta que se pretenda comunicar.
O modo de conhecimento técnico e científico é diferente. Aqui, o que
importa é transmissão de conhecimentos específicos e locais através de
uma grande rede de mediações, de tal maneira que seja possível representar,
de maneira fidedigna, uma realidade longínqua, ou uma experiência inusitada:
prever um eclipse, registrar em um mapa um roteiro de viagem, produzir
artefactos de forma consistente e estável. A pessoa do comunicador não
tem maior importância. Ao invés de uma lógica da procissão, uma lógica
de rede. Os mesmos conteúdos são transmitidos por sucessivas transformações,
os conhecimentos se acumulam e se concentram em "centros de cálculo"
que os organizam, compatibilizam e condicionam a busca de novas informações.
A construção destas grandes redes de conhecimento e informações depende
da construção de "objetos" técnicos e científicos que consolidam
informações, procedimentos e experiências em conceitos, equipamentos,
instrumentos e teorias, que, uma vez estabilizados, passam a funcionar
como "caixas pretas", unidades aparentemente simples e independentes
que se incorporam a processos de generalização, cálculo e integração de
informações ainda maiores.
Latour nos diz algo sobre as razões pela qual estas grandes redes de
conhecimento se desenvolvem. Em um de seus primeiros trabalhos, sobre
Louis Pasteur e o movimento higienista, ele ataca a noção usual de uma
sequência que vai de uma teoria abstrata, sobre a natureza das infecções,
a uma realidade complexa e ampla que foi o movimento higienista(7).
Na disputa pela consolidação do movimento pasteuriano, o movimento higienista
foi reduzido aos seguidores de Pasteur, estes à pessoa do cientista e
daí, finalmente, aos "fundamentos teóricos" de suas idéias.
Este processo culmina com a frase, encontrada nos livros escolares e em
tantas outras partes, sobre a "revolução introduzida na medicina,
biologia e higiene pelos trabalhos de Louis Pasteur". É o mesmo erro,
nos diz Latour, que explicar as guerras napoleônicas pelo gênio militar
de Napoleão, ou sua derrota pelas estratégias de Kutusov, explicações
que Tolstoi tratou de desmontar em Guerra e Paz. Não se trata
de negar a importância de Pasteur, Napoleão ou Kutusov, mas de mostrar
como suas atividades faziam parte de um conjunto de relação de forças
e influências muito mais amplo e complexo, cuja compreensão é essencial
para que o trabalho destas personalidades também faça sentido, além dos
mitos e simplificações construidos pela história.
Em um livro posterior(8), Latour fala
da tendência ao estabelecimento de grandes redes de controle da informação
e do poder da "tecnociência" moderna, que teria as mesmas raízes
que o capitalismo e a racionalização do mundo. É uma explicação de forte
conteúdo weberiano, à qual se acrescenta uma visão autoritária e hierárquica
das sociedades modernas. A "tecnociência" ordena as pessoas,
os animais, os objetos, os artefactos e os conceitos em redes cada vez
mais abrangentes e centralizadas, que permitem que seja possível, a quem
está no centro, ir e voltar com grande eficiência e velocidade à periferia,
mas condena, a quem está na periferia, a se acomodar a padrões de comportamento
e conhecimento cada vez mais complexos, distantes e inacessíveis.
"Retrato de um biólogo como capitalista selvagem"(9), um dos capítulos do livro atual, confirma este
pano de fundo weberiano, quase marxista. O exame detalhado da estratégia
profissional de um biólogo de renome, obtido através de entrevistas, mostra
que toda sua atuação, na escolha de temas de pesquisa, nas mudanças de
locais de trabalho, na relação com superiores e subordinados, obedece
a uma lógica dominada, não pela busca da verdade, mas pela competição,
maximização de oportunidades, acumulação de credibilidade científica,
obtenção de fundos, redução de riscos, exploração do trabalho de assistentes
e colaboradores. Nas vésperas de um congresso científico, o pesquisador
pensa em sua estratégia para vencer os concorrentes, não abrir flancos
ao ataque, e firmar sua posição(10). Tal
como o capitalista puritano de Weber, que não se interessava pelo uso
dos frutos da riqueza, e sim pela sua maximização, o cientista de Latour
tampouco se interessa pelo conteúdo do que faz, mudando de tema e de objeto
sempre que outros investimentos intelectuais e profissionais pareçam mais
rentáveis. A acumulação de conhecimentos, que resulta do trabalho do cientista,
não é mais do que um sub-produto de algo mais fundamental, a acumulação
de instrumentos sem valor de uso, que servem para aumentar cada vez mais
o poder do investidor. Não é que o capital científico, na forma de prestígio
e credibilidade, se pareça ao capital monetário, ou que o "espírito
do capitalismo" influencie o "espírito científico". Não,
diz Latour, se trata exatamente do mesmo fenômeno, o mesmo capitalismo,
fruto da mesma revolução.
Não há como deixar de ler esta análise do cientista e do papel da ciência
e da tecnologia modernas como uma crítica. A estes elementos Latour acrescenta
um outro, que é a mistificação que fazem o cientista e o tecnólogo na
natureza de seu trabalho. Os cientistas e tecnólogos escondem os rastros
de seu trabalho, as tentativas e erros, os caminhos percorridos e abandonados,
as disputas pela hegemonia na consagração de determinadas interpretações
e alternativas sobre as demais, enfim, a natureza essencialmente social
de seu trabalho, e apresentam seus produtos acabados como necessários
e definitivos. Para ilustrar este ponto, Latour conta a fábula de um sociólogo
da ciência que sonhou que tinha como projeto descobrir quem nasceu primeiro,
o realsauro, o cientosauro ou o popsauro(11).
Os paleontólogos diziam que a questão era absurda, que o mais antigo era
obviamente o realsauro, que tinha milhões de anos, enquanto que o cientosauro
só havia começado a se desenvolver nos últimos 150 anos. Não adiantava
o sociólogo mostrar que, cada vez que o cientosauro se transformava, com
novos dados e teorias, o realsauro também mudava, ficando óbvia a precedência
do primeiro sobre o segundo. Ao final, frustrado e desmoralizado pelos
paleontólogos, o sociólogo resolve estudar o popsauro, tal como aparecia
no cinema, nas histórias em quadrinhos e nos programas de televisão, e
conclui que, em grande parte, era o popsauro que determinava as características
do realsauro. Antes de escrever seu trabalho, que significaria sem dúvida
o fim de sua reputação científica, o sociólogo acordou.
Apesar destas críticas, Bruno Latour se define como um "amante das ciências"
(un amateur de sciences), e não se alinha com os irracionalistas e nihilistas
do desconstrutivismo. Ainda que ele não explicite, parece claro que sua sociologia
da ciência, e o relativismo que defende, não são um ataque à ciência e à tecnologia,
mas buscam revelar e recuperar a natureza humana da atividade científica, da mesma
maneira que sua fascinação com os objetos tecnológicos do quotidiano mostra um
lado mais democrático da tecnologia, que não é necessariamente privilégio dos
grandes sistemas científicos e tecnológicos, mas está ao alcance e de fato impregna
o quotidiano de cada um de nós, ajudando a dar forma e tornar menos árdua nossa
vida em sociedade. O cinto de segurança, a mola das portas, os chaveiros, todos
estes objetos técnicos da vida quotidiana são analisados para mostrar a natureza
intrinsecamente social destes instrumentos. O exemplo mais acabado é o da chave
de Berlim, simétrica, com um ferrolho em cada ponta. Só é possível entender este
estranho objeto, nos mostra Latour, se conseguimos entender também a sociedade
para a qual ela foi desenhada. Colocada no portão de entrada de uma vila, ela
faz com que as pessoas sempre tenham que trancar a porta quando passam, durante
a noite, ou tenham que mantê-la destrancada durante o dia, conforme a posição
de uma outra fechadura manejada pelo porteiro. Ela regula e compatibiliza, assim,
o comportamento de muitas pessoas que têm que viver em comum, que não podem dispor
de um guarda permanente na entrada da vila, e detêm certos hábitos de circulação
social. Tal como a mola da porta, que também substitui o porteiro, ou a necessidade
de todos se lembrarem de fechar a porta ao em tempos de inverno, para reter o
calor, ou para manter o ambiente refrigerado no inverno...
Faltam muitas coisas, no entanto, para que o quadro que Latour nos oferece
da ciência e da tecnologia modernas se complete. Não há nenhuma discussão
sobre as semelhanças, diferenças e relações entre os artefactos tecnológicos
do quotidiano, que existem de uma forma ou de outra em todas as sociedades,
e os grandes sistemas científico-tecnológicos das sociedades modernas,
que Latour vincula, como Weber, à "racionalização" trazida pelo
capitalismo. Estaria ele defendendo, implicitamente, uma tecnologia "doce",
"apropriada", que viesse a substituir os grandes sistemas científicos
e tecnológicos? Também não existe nenhuma referência às ciências sociais.
Esta é, na realidade, uma característica geral da nova sociologia da ciência,
que, ao contrário dos positivistas do passado, que queriam que as ciências
sociais fossem tão "hard" quanto as ciências naturais, preferem
defender a tese oposta, ou seja, de que as ciências naturais são tão "soft"
quanto as ciências do homem. Os grandes sistemas técnico-científicos descritos
por Latour, no entanto, se não são tão "hard" em sua estrutura
lógica e racional quanto querem nos fazer crer os cientistas e tecnólogos,
são certamente duros pela abrangência, consistência e estabilidade das
grandes redes de conceitos, artefatos e comportamentos que conseguem estabelecer,
coisa que as ciências sociais não conseguem fazer, a não ser ocasionalmente
e em um sentido completamente distinto, como ideologia ou visão de mundo.
Se as ciências sociais fossem só isto, no entanto, elas não seriam senão
uma outra forma de conhecimento religioso. Ao distinguir o conhecimento
religioso, a "procissão", conduzida por anjos e profetas, do
científico e técnico, a "rede", articulada por instrumentos
consolidados e previsíveis, Latour aponta para dois tipos puros de conhecimento
separados pelos séculos, e que no entanto, como ele mesmo mostra, acabam
se misturando. Os missionários jesuítas, na China, deveriam rezar a missa
em Latim ou em chinês? Ao optar, nesta "querela dos ritos",
pelo Latim, a Igreja Católica, na interpretação de Latour, teria buscado
dar aos rituais religiosos um caráter técnico e científico, de instrumento,
abandonando, implicitamente, sua vocação pastoral e mística. Atacada pelas
heresias, pelo protestantismo e pelo cientificismo agnóstico, a Igreja
coloca em segundo plano a conversão das almas, estimulada pelo profetismo,
e defende a fidelidade à uma realidade empírica específica, a verdade
de seus dogmas. Daí a rigidez dos rituais, a complexidade do direito canônico,
dos tribunais e dos processos eclesiásticos.
Esta capitulação implícita tem sua contrapartida na sacralização da ciência
e da tecnologia, que ocultam as mediações entre as experiências concretas
e as generalizações e abstrações, e apresentam suas conclusões como a
própria verdade "descoberta"(12).
Desta forma, dois tipos fundamentais de experiência humana, o da convicção
religiosa e o da experiência prática da construção do conhecimento empírico,
se mascaram. "Nós não compreendemos mais a religião", diz Latour
ao final de seu livro, "porque deixamos também de entender as ciências,
e os próprios religiosos, transformados em cientistas, aceitaram a humilhação
de tomar como uma crença aquilo circulava, até então, como uma procissão".
Pareceria que Latour não atribui nenhum valor às crenças, que postulam
transcendências que seriam, em última análise, mistificações. É possível
que ciências sociais, ao tratarem de combinar a continuidade das tradições
intelectuais e interpretativas, típicas dos testemunhos dos anjos, com
o conhecimento instrumentalizado e técnico das ciências naturais, acabem
estimulando a crença simultânea nos dois tipos de transcendência, reunindo,
assim, o pior de dois mundos, o da religião rotinizada e burocrática,
e o da ciência mistificada e hipostasiada.
Esta conclusão, no entanto, não é necessária, assim como não é necessária
a oposição drástica que Latour parece estabelecer entre a crença e a compreensão,
ou entendimento. Outros sociólogos da ciência já deixaram claro que o
conhecimento científico e técnico ocorre sempre em um contexto de tradições
de pensamento e de trabalho, autoridades que controlam as fronteiras do
legítimo e do ilegítimo, e crenças e consensos descritos, algumas vezes,
como "paradigmas", e outras como o "componente tácito"
do conhecimento(13). No outro extremo,
as religiões, mesmo no passado, sempre tiveram um papel de explicação
e mesmo de manipulação empírica do mundo, através dos rituais, da magia
e dos tabus, cuja eficiência nem sempre foi inferior a muitos dos procedimentos
técnicos propostos pela ciência e pela tecnologia. Em outras palavras,
redes e procissões, crença e compreensão, não são formas absolutamente
opostas de conhecimento, mas aspectos diferentes de um mesmo processo
de transmissão e re-transmissão de imagens e informações, da mesma forma
que o conhecimento de sentido comum, as ciências sociais e as ciências
naturais, em suas diversas versões, são manifestações diferentes deste
mesmo processo.
Isto não significa, é claro, que religião, ciência, alta tecnologia,
tecnologias do quotidiano, ciências sociais, ciências naturais, crença
e magia sejam tudo a mesma coisa. O que a nova sociologia do conhecimento
faz, ao explicitar a base comum de todas estas formas de conhecimento
e estruturação da realidade, é criar as condições para que suas diferenças
e semelhanças apareçam com clareza, livres das mistificações e empostações
com que cada qual trata de se defender das demais. É esta, acredito, a
grande contribuição Bruno Latour, em mais este livro brilhante e sugestivo,
que tem que ser lido para ser verdadeiramente apreciado.
Notas
1. Bruno Latour, La Clef de Berlin et autres leçons
d'un amateur de sciences. Paris, La Découverte, 1993.
2. Bruno Latour e Steve Woolgar, La Vie de laboratoire,
La Découverte, Paris, 1988.
3. "Antropologia" ou "sociologia"?
Latour usa os dois termos indiferentemente. É provável que o termo "antropologia"
se refira ao método da observação participante de pequenos grupos e sociedade,
enquanto que "sociologia" se refira principalmente ao tipo de
interpretação que é oferecida para os processos estudados
4. "Le 'pédofil' de Boa Vista - montage photo-philosophique",
pp. 171-225.
5. A conclusão da pesquisa, para os intressados, é
que é a floresta que avança, graças às minhocas que vão transformando
o solo arenoso da savana em um solo argiloso-arenoso, mais propício à
vegetação densa.
6. "Les anges ne font pas de bons instruments
scientifiques", pp.226-152.
7. Les Microbes - Guerre et Paix, suivi de Irreductions.
Paris, Ed. A. M. Métailié, 1984.
8. Science in Action: how to follow scientists
and engineers through society. Harvard University Press, 1987.
9. "Portrait d'un biologiste en
capitaliste sauvage", pp. 100-129.
10. "L'angoisse du conférencier, le soir, dans
son hotel", pp. 79-82.
11. "Trois petits dinosaures ou le cauchemar
d'un sociologue", 130-142.
12. Analizando uma foto difundida pelo Instituto
Psicológico francês, Latour protesta contra a imagem da ciência que ela
projeta: "même si l'on peut apprécier que la science soit une femme
à grandes ailes qui soulève délicatement les voiles de la vérité - au
lieu du mâle habituel violant ses secrets -, il est difficile de croire
que la vérité sorte nue de ses rencontres avec les savants. Il semble
que les chercheurs aiment plutôt la vérité chaudement vêtue, délicatement
voilée par les instruments mêmes qui la révèlent" ("Le travail
de l'image ou l'intelligence savante distribuée", p. 154.)
13. Os textos clássicos a este respeito são os de
Michael Polanyi, Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy,
London, Routledge & Kegan Paul, 1962; e Thomas S. Kuhn, The Structure
of Scientific Revolutions, Chicago, University of Chicago Press,
1970 (2 edição ampliada). Os economistas descobriram, mais recentemente,
a importância estratégica do conhecimento tácito, como pre-condição e
pano de fundo de qualquer atividade científica e tecnológica sustentada.
Veja, entre outros, A. Abramovitz, "Catching Up, Forging Ahead and
Falling Behind", Journal of Economic History, June 1986,
46(2), 386-406; R. Nelson and G. Wright, "The Rise and Fall of American
Technological Leadership: The Postwar Era in Historical Perspective",
Journal of Economic Literature, vol. XXX, December 1992, 1931-1964;
e Paul David, Knowledge, Property and the System Dynamics of Technological
Change, paper prepared for the World Bank Annual Conference on Development
Economics, Washington, April-May, 1992.