BASES DO AUTORITARISMO BRASILEIRO, Simon Schwartzman. Rio de Janeiro, Campus, 163 pp. 850.00
Octávio Tirso de Andrade:
Uma frágil vocação para a liberdade
Jornal do Brasil, Caderno B, 16 de Janeiro de 1982
UMA FRÁGIL VOCAÇÃO PARA A LIBERDADE
Otavio Tirso de Andrade
AOS que aspiram ver o Brasil entre as democracias, o livro de Simon Schwartzman - Bases do Autoritarismo Brasileiro - deixará completamente desiludidos. A sociedade em que vivemos se constituiu de tal forma que a democracia, sem adjetivos, parece um sonho inatingível. O autor não diz isso. Mas foi o sentimento que me acometeu ao fim do seu bem articulado ensaio.
O nosso clima social e político não favorece o desenvolvimento da "plantinha tenra" a que se referiu um dia Octavio Mangabeira. Apesar de estar sempre na boca de todos os políticos, a dernocracia é de tal forma crestada aqui pelo sol do autoritarismo que não chega a medrar. A alegada "vocação democrátIca do nosso povo", ou a afirmativa de que "as massas são as guardiãs da democracia", encontradiças na oratória esquerdista, evaporam-se ao lermos a nossa História. Não passam de colossal falsificação. "No Brasil, as ideologias políticas liberais tendem a se localizar entre grupos sociais relativamente restritos", diz o autor. O adjetivo liberal, nessa frase, é sinônimo do substantivo democracia.
A propósito, ocorre-me observar que não é acertado qualificar de "libertárias" as bandeiras da causa liberal
O qualificativo "libertário" aplica-se em ciência politica ao anarquismo. Não tendo a motivá-la a perfídia, provavelmente, a impropriedade cometida pelo autor nem por isso deixa de merecer correção. O desdobramento do processo de enunciar (ou "narrated event") em proceso de enunciacção é de capital importância em linguística. A transformação semântica, ao tornar-se mais espessa, pode duplicar-se em transfiguraçâo política...
Quanto à linguagem, aliás, Simon Schwartzman surpreendeu-me agradavelmente. Um obcecado em gramatiqulices rearrumaria alguns pronomes e um secretário de redação reclamaria a repetição do antipático verbo compartir. A sua prosa, porém, flui, solta e incontaminada pelo jargão obtuso de certos sociólogos terrivelmente enfadonhos.
Agradou-me ver que o autor não se apresenta em uma dessas camisas de forca ideológicas que obrigam os que nela se meteram a amoldar a verdade a seus pontos de vista. A influência weberiana é evidente no trabalho de Simon Schwartzman, mas ele não incomoda com citações pernósticas. O que emana do contexto não é um esforço de adequar o conhecimento à "coisa em si". O autor procura conformar a verdade à experiência para tentar explicá-la. Assim, insere-se de certo modo entre os neokantianos axiológícos. A axiologia, como se sabe, parte do principio de que existe diferença entre a necessidade ou o determinismo natural e o "dever ser".
Algumas seqüelas do marxismo implacavelmente ministrado em nossas universidades aparecem, no entanto, no decorrer da leitura deBases do Autoritarismo Brasileiro. Tem-se o autor como adversario do autoritarismo. O conceito de liberdade, contudo, é sempre expresso por ele como conotaçoes de tumulto, ancianidade e esclerose.
Tal impostação reacioriária é de grande vetustez. Não é de hoje que os inimigos da liberdade a vêm como doença ou a tomam como desaforo. Na passagem do século XVIII para o século XIX a pespectiva histórica apareceu muito obscura a Frederico Hegel. O Terror surgiu a seus olhos como o triunfo abstrato do Estado. O seu grande sonho helenista dissipou-se. A Revolução Francesa não havia recriado, como supunha e aspirava o filósofo, o cidadão livre da cidade antiga, sobre o qual a totalidade social deveria refletir-se diretamente. A totalidade - Hegel constatou melancolicamente - liquidou a particularidade. Hegel viu a reação thermidoriana e o advento do Diretório - etapas seguintes do movimento - como emenda pior do que o soneto. E considerou verdadeiramente insuportáveis a revanche da sociedade civil e a conseqüente restauração da liberdade. O avô do marxismo temia no liberalismo a oportunidade para a eclosão de todos os egoísmos e o risco de perda do sentido do Estado. Tal e qual os socialístas e estatocratas de hoje em relação à democracia. "Foi então - palavras do próprio Hegel - que se manifestou a necessidade absoluta de um poder estatal. Napoleão o instaurou sob a forma do poder militar e se colocou à frente do Estado Novo como vontade individual" (Lições sobre a Filosofia da História. A citação consta do ultimo ensaio de Roger Garaudy sobre Hegel, ao qual recorri para caracterizar o estado de espirito do filósofo alemão.)
Na perspectiva Instórica em que se situa, Schwartzman aponta no "patrimonialismo burocratico" a principal matriz do autoritarismo no Brasil. A história de nosso país - diz ele - não teria conhecido a relaçâo de poder contratual da qual o sistema tradicional seria o feudalismo e o moderno seria "a dominação racional legal" (pg. 48). "No caso brasileiro" - afirma Schwartzman - "a coexistência de um Estado com fortes características neo-patrimoniais levou, no passado, à tentativa de organização da sociedade em termos corporativos tradicionais, criando uma estrutura legal de enquadramento e representação de classe que perdura até hoje".
A forma pela qual o Estado brasileiro impõe a sua tutela é denominada por Schwartzman de "cooptação política". A esse respeito transcreve oportunas e verazes palavras de Richard Morse: "Os povos latino-americanos preferem alienar e não delegar poderes a seus líderes escolhidos ou aceitos." É a pura verdade!
A discrepancia entre o tamanho econômico de São Paulo e a sua respectiva dimensão política é objeto de longa análíse no ensaio. Um conceito extremamente feliz, que o autor expende com naturalidade, resume todo o problema de maneira lapidar: "Para os paulistas, a politica era uma forma de melhorar os seus negócios; para quase todos os outros, a política era o seu negócio. É nisto que reside a diferença e, em última analise, a marginalidade política dequele Estado".
Os lúcidos capítulos sobre a consolidação da fronteira, a formação do Exército Nacional e a base regional do militarismo mereceriam um artigo especial. A caracterização do Rio Grande do Sul como "única fronteira viva no país", e a psicologia dos líderes dessa "marche" da nação brasileira explícam muitos aspectos do importante papel dos gaúchos na política nacional.
Não resisto à tentação de lembrar, a proposito, que a primeira intervenção direta do exército contra a sociedade civil, nos tempos de Roma, foi efetuada por Sylvia, em 88, no comando de tropa de fronteira... Depois foi Comelius Ciriu, e 40 anos mais tarde Cesar se dispos a atravessar o Rubicão... Sempre com gente da fronteira.
Ao analisar a importancla política da fronteira e as causas do autoonomismo gaúcho, lamento que o autor não tenha dedicado algumas linhas, ao menos, ao muito que a Guerra do Paraguai concorreu para fortalecer a unidade nacional (leia-se, a propósito, Vicente Licínio Cardoso). Infelizmente, talvez em consequência de alguma cláusula secreta nos acordos para construção de Itaipu, tornou-se moda menoscabar aquele episódio essencial da História do Brasil e caricaturar, senão denegrir, os que concorrem para a vitória brasileira na luta.
Ainda a propósito da génese do patrimonialismo burocrático faz falta ao ensaio, no meu entender, um capítulo ou alguns parágrafos sobre a estreita dependência da economia luso-brasileira à Grã Bretanha nos séculos XVIII e XIX. O estudo de Julien Schneider é muito esclarecedor sobre a matéria (ver Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930). O historiador francês Plerre Chaunu afirma que o Brasil esteve de tal forma exposto aos interesses ingleses no século XVIII, que fomos então tratados palos governmtes de Londres como a segunda Irlanda. (Uma das melhores coisas que poderiam ter acontecido ao nosso país, na passagem do século XVIII para o século XIX, seria se Canning e Castlereagh, que eram inimigos, tivessem se batido em duelo e morrido ambos...)
Concluindo: ao sobrepormos ao cenário do "patrimonialismo burocrático" a atual filosofia da administração pública brasileira e as horripilantes deformações provocadas nela pela acromegalia estatal, não podemos ter espererança no futuro da democracia entre nós.
Na França ocupada pela Wermacht, vencida e humilhada, um poema de Paul Eluard, distribuido clandestinamente, reanimava os timidos e fortalecia os combatentes. Transcrevo os seus últimos versos:Et par le pouvoir d'un motA leitura do lívro de Schwartzman acentua em mim a desconfiança de que os brasileiros não nasceram para gritar: Liberdade! É natural que não posssam conhecê-la.
Je recommence na vie
Je suis né pour te connaitre
Pour te nommer
LIBERTÉ!
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