BASES DO AUTORITARISMO BRASILEIRO, Simon Schwartzman. Rio de Janeiro, Campus, 163 pp. 850.00


Octávio Tirso de Andrade: Uma frágil vocação para a liberdade

Jornal do Brasil, Caderno B, 16 de Janeiro de 1982



Para o cientista social Simon Schwartzman será muito difícil vencer o autoritarismo que domina todos os aspectos da vida social brasileira

DEPOIS de mais uma dezena de anos de estudo sobre o autoritarismo brasileiro, um ponto da questão parece inteiramente claro a Simon Schwartzman, professor do Iuperj e pesquisador do Cpdoc: o fenômeno está muito mais profundamente enraizado na tradição do que geralmente se imagina; conseqüentemente, a tendência autoritária e centralizadora não será facilmente revertida. Isto é o que ele afirma no cerne de seu novo livro, Base do Autoritarismo Brasileiro, publicado pela Editora Campus, Rio, 164 páginas, Cr$ 850.

- Para mim - diz o autor - fica difícil concordar com alguns colegas, estudiosos da história brasileira, para os quais a complexidade crescente da nossa sociedade, por si mesma, deverá levar à organização de um sistema político partidário mais aberto, com formas crescentes de participação social e política, Vai ser muito difícil dar marcha à ré nessa tradição. E isso não será alcançado, como querem alguns, por meio de simples fórmulas político-eleitorais; ou, como querem outros, graças a uma súbita revolução libertadora.

Três grandes temas são desenvolvidos no livro de Schwartzman. O primeiro é o papel preponderante desempenhado pelo Governo central e da rnáquina do Estado na vida social do pais, dos seus primórdios até hoje. O segundo é o relacionamento entre o poder central e a sociedade brasileira. O último, a critica das concepções unlineares de desenvolvimento social e político, que procuram identificar, na historia do país, coisas como um eventual período feudal ou uma revolução burguesa.

Schwartzman reconhece a importância de outros trabalhos que, antes do seu, abordaram aspectos dessas mesmas questões. De modo particular o de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, que ao ser lançado em 1958 "foi praticamente ignorado pelos nossos cientistas sociais".

- Naquele livro - recorda o autor de Bases do Autoritarismo Brasileiro - Faoro defendia a noção de que o Brasil era comandado, desde o período colonial, por um estamento burocrático todo poderoso. Por que o livro passou em brancas nuvens? Porque os cientistas sociais em geral tinham dificuldade em pensar o sistema governamental a não ser como uma superestrutura dos interesses das classes sociais. Acho a colocação de Faoro unilateral, pelo fato ele deixar espaço para as formas mais autônomas de organização e participação social. Mas é fora de dúvida que o seu livro aborda um lado importante da realidade brasileira, lado esse que um certo pseudomarxismo vigente entre nós impedia de olhar de frente.

Ao estudar o relacionamento entre o poder central e a sociedade brasileira, Schwartzman assinala que a questão adquire uma forma de distribuição muito peculiar. Algumas regiões assumem um tipo de papel bem diferente do que se observa em outras. Ele se detém sobre o exemplo de São Paulo, que apesar de centro econômico e social do país, tem sido historicamente marginal, do ponto de vista político, em relação ao poder central. Outro foco de interesse de sua pesquisa, no item do relacionamento, é a base regional do autoritarismo brasileiro, para ele essencialmente gaúcho em suas origens.

- Trato de mostrar, como tese, que existe uma contradição bem marcada entre o tipo de sociedade e de formas de participação política originários do centro dinâmico da economia do país, e aquelas decorrentes do centro político administrativo e das regiões periféricas e dependentes do poder central.

Um dos conceitos teóricos mais longamente estudados pelo autor deBases do Autoritarismo Brasileiro é o de patrimonialismo, do cientista social alemão Max Weber. Mas ao discutir tanto este como outro conceitos - na tentativa de compreender por que a sociedade civil brasileira não tem sido capaz de criar um sistema político em condições de se contrapor efetivamente ao peso do poder central - ele chama a atenção para o fato de que os modelos unilineares de desenvolvimento, freqüentemente utilizados no estudo da historia do Brasil, apóiam-se na experiência da Europa Ocidental. São modelos, diz ele, que não se aplicam ao que vem ocorrendo nos chamados países dependentes ou periféricos "onde a organização do Estado precede a estruturação do sistema social e econômico".

Bases do Autoritarismo Brasileiro tem uma história longa. Na verdade, consiste na revisão e atualização de outro livro publicado pela autor, São Paulo e o Estado Nacional (Difel, 1975), que por sua vez teve origem em um artigo publicado na revistaDados, em 1970, como título de "Cooptação e Representação Política do Brasil". Do livro existe ainda urna versão em inglês, inédíta, apresentada em 1973 como tese de doutoramento à Universidade da Califórnia, em Berkeley. Schwartzman admite que, na forma atual, o estudo representa a consolidação das suas idéias sobre os temas tratados:

- Muitas idéias que nas versões anteriores eram simples hipóteses de trabalho, aqui admitem caráter significativo, graças a estudos e pesquisas realizadas nos últimos anos. Por exemplo, uma das minhas hipóteses era a de que os dirigentes oligárquicos da República Velha - e não só dela - governam de costas para os interesses de seus próprios Estados. Portanto, ao contrario do que todos pensavam, não representavam as oligarquias rurais e seus interesses mais diretos. Isto porque, julgava eu, eram essencialmente Governos de cooptação e não de representação. Trabalhos recentes sobre a política mineira, entre os quais os de Amílcar Martins e do Brazilianist John Wirth, confirmam meu ponto de vista.

Simon Schwartzman (que é autor, ainda, de Formação da Comunidade Científica, A Política do Conhecimento e o recente Ciência, Universidade e Ideologia) reconhece que seu livro transmite uma "inescapável sensação de ceticismo" quanto às possibilidades da democracia no país. À constatação de que a tradição autoritária e centralizadora tem raizes profundas. só pode seguir-se a conclusão de que a democratização da sociedade brasileira será uma tarefa longa e difícil.

A democratização, segundo o autor, deverá ser conquistada passo a passo. Terá que ir ocupando, um a um, os mais diversos setores da vida nacional - a família, a escola, os locais de trabalho, as organizações profissionais, os Partidos políticos. "A tradição autoritária brasileira não se resume, como poderia parecer aos menos avisados, ao que ocorre no sistema político; tem manifestações nos aspectos mais insuspeitados de nossa vida cotidiana." Portanto, embora seja multo Importante o que acontece na política, mais importante é o que ocorre na sociedade. As formas de organização e participação que aí se registram, afirma o autor, tendem a ser freqüentemente ignoradas e esvaziadas pela obsessão de tantos com o jogo político.

- A democracia a ser construída no Brasil - Schwartzman enfatiza - tem de passar necessariamente pela sociedade.


UMA FRÁGIL VOCAÇÃO PARA A LIBERDADE

Otavio Tirso de Andrade

AOS que aspiram ver o Brasil entre as democracias, o livro de Simon Schwartzman - Bases do Autoritarismo Brasileiro - deixará completamente desiludidos. A sociedade em que vivemos se constituiu de tal forma que a democracia, sem adjetivos, parece um sonho inatingível. O autor não diz isso. Mas foi o sentimento que me acometeu ao fim do seu bem articulado ensaio.

O nosso clima social e político não favorece o desenvolvimento da "plantinha tenra" a que se referiu um dia Octavio Mangabeira. Apesar de estar sempre na boca de todos os políticos, a dernocracia é de tal forma crestada aqui pelo sol do autoritarismo que não chega a medrar. A alegada "vocação democrátIca do nosso povo", ou a afirmativa de que "as massas são as guardiãs da democracia", encontradiças na oratória esquerdista, evaporam-se ao lermos a nossa História. Não passam de colossal falsificação. "No Brasil, as ideologias políticas liberais tendem a se localizar entre grupos sociais relativamente restritos", diz o autor. O adjetivo liberal, nessa frase, é sinônimo do substantivo democracia.

A propósito, ocorre-me observar que não é acertado qualificar de "libertárias" as bandeiras da causa liberal

O qualificativo "libertário" aplica-se em ciência politica ao anarquismo. Não tendo a motivá-la a perfídia, provavelmente, a impropriedade cometida pelo autor nem por isso deixa de merecer correção. O desdobramento do processo de enunciar (ou "narrated event") em proceso de enunciacção é de capital importância em linguística. A transformação semântica, ao tornar-se mais espessa, pode duplicar-se em transfiguraçâo política...

Quanto à linguagem, aliás, Simon Schwartzman surpreendeu-me agradavelmente. Um obcecado em gramatiqulices rearrumaria alguns pronomes e um secretário de redação reclamaria a repetição do antipático verbo compartir. A sua prosa, porém, flui, solta e incontaminada pelo jargão obtuso de certos sociólogos terrivelmente enfadonhos.

Agradou-me ver que o autor não se apresenta em uma dessas camisas de forca ideológicas que obrigam os que nela se meteram a amoldar a verdade a seus pontos de vista. A influência weberiana é evidente no trabalho de Simon Schwartzman, mas ele não incomoda com citações pernósticas. O que emana do contexto não é um esforço de adequar o conhecimento à "coisa em si". O autor procura conformar a verdade à experiência para tentar explicá-la. Assim, insere-se de certo modo entre os neokantianos axiológícos. A axiologia, como se sabe, parte do principio de que existe diferença entre a necessidade ou o determinismo natural e o "dever ser".

Algumas seqüelas do marxismo implacavelmente ministrado em nossas universidades aparecem, no entanto, no decorrer da leitura deBases do Autoritarismo Brasileiro. Tem-se o autor como adversario do autoritarismo. O conceito de liberdade, contudo, é sempre expresso por ele como conotaçoes de tumulto, ancianidade e esclerose.

Tal impostação reacioriária é de grande vetustez. Não é de hoje que os inimigos da liberdade a vêm como doença ou a tomam como desaforo. Na passagem do século XVIII para o século XIX a pespectiva histórica apareceu muito obscura a Frederico Hegel. O Terror surgiu a seus olhos como o triunfo abstrato do Estado. O seu grande sonho helenista dissipou-se. A Revolução Francesa não havia recriado, como supunha e aspirava o filósofo, o cidadão livre da cidade antiga, sobre o qual a totalidade social deveria refletir-se diretamente. A totalidade - Hegel constatou melancolicamente - liquidou a particularidade. Hegel viu a reação thermidoriana e o advento do Diretório - etapas seguintes do movimento - como emenda pior do que o soneto. E considerou verdadeiramente insuportáveis a revanche da sociedade civil e a conseqüente restauração da liberdade. O avô do marxismo temia no liberalismo a oportunidade para a eclosão de todos os egoísmos e o risco de perda do sentido do Estado. Tal e qual os socialístas e estatocratas de hoje em relação à democracia. "Foi então - palavras do próprio Hegel - que se manifestou a necessidade absoluta de um poder estatal. Napoleão o instaurou sob a forma do poder militar e se colocou à frente do Estado Novo como vontade individual" (Lições sobre a Filosofia da História. A citação consta do ultimo ensaio de Roger Garaudy sobre Hegel, ao qual recorri para caracterizar o estado de espirito do filósofo alemão.)

Na perspectiva Instórica em que se situa, Schwartzman aponta no "patrimonialismo burocratico" a principal matriz do autoritarismo no Brasil. A história de nosso país - diz ele - não teria conhecido a relaçâo de poder contratual da qual o sistema tradicional seria o feudalismo e o moderno seria "a dominação racional legal" (pg. 48). "No caso brasileiro" - afirma Schwartzman - "a coexistência de um Estado com fortes características neo-patrimoniais levou, no passado, à tentativa de organização da sociedade em termos corporativos tradicionais, criando uma estrutura legal de enquadramento e representação de classe que perdura até hoje".

A forma pela qual o Estado brasileiro impõe a sua tutela é denominada por Schwartzman de "cooptação política". A esse respeito transcreve oportunas e verazes palavras de Richard Morse: "Os povos latino-americanos preferem alienar e não delegar poderes a seus líderes escolhidos ou aceitos." É a pura verdade!

A discrepancia entre o tamanho econômico de São Paulo e a sua respectiva dimensão política é objeto de longa análíse no ensaio. Um conceito extremamente feliz, que o autor expende com naturalidade, resume todo o problema de maneira lapidar: "Para os paulistas, a politica era uma forma de melhorar os seus negócios; para quase todos os outros, a política era o seu negócio. É nisto que reside a diferença e, em última analise, a marginalidade política dequele Estado".

Os lúcidos capítulos sobre a consolidação da fronteira, a formação do Exército Nacional e a base regional do militarismo mereceriam um artigo especial. A caracterização do Rio Grande do Sul como "única fronteira viva no país", e a psicologia dos líderes dessa "marche" da nação brasileira explícam muitos aspectos do importante papel dos gaúchos na política nacional.

Não resisto à tentação de lembrar, a proposito, que a primeira intervenção direta do exército contra a sociedade civil, nos tempos de Roma, foi efetuada por Sylvia, em 88, no comando de tropa de fronteira... Depois foi Comelius Ciriu, e 40 anos mais tarde Cesar se dispos a atravessar o Rubicão... Sempre com gente da fronteira.

Ao analisar a importancla política da fronteira e as causas do autoonomismo gaúcho, lamento que o autor não tenha dedicado algumas linhas, ao menos, ao muito que a Guerra do Paraguai concorreu para fortalecer a unidade nacional (leia-se, a propósito, Vicente Licínio Cardoso). Infelizmente, talvez em consequência de alguma cláusula secreta nos acordos para construção de Itaipu, tornou-se moda menoscabar aquele episódio essencial da História do Brasil e caricaturar, senão denegrir, os que concorrem para a vitória brasileira na luta.

Ainda a propósito da génese do patrimonialismo burocrático faz falta ao ensaio, no meu entender, um capítulo ou alguns parágrafos sobre a estreita dependência da economia luso-brasileira à Grã Bretanha nos séculos XVIII e XIX. O estudo de Julien Schneider é muito esclarecedor sobre a matéria (ver Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930). O historiador francês Plerre Chaunu afirma que o Brasil esteve de tal forma exposto aos interesses ingleses no século XVIII, que fomos então tratados palos governmtes de Londres como a segunda Irlanda. (Uma das melhores coisas que poderiam ter acontecido ao nosso país, na passagem do século XVIII para o século XIX, seria se Canning e Castlereagh, que eram inimigos, tivessem se batido em duelo e morrido ambos...)

Concluindo: ao sobrepormos ao cenário do "patrimonialismo burocrático" a atual filosofia da administração pública brasileira e as horripilantes deformações provocadas nela pela acromegalia estatal, não podemos ter espererança no futuro da democracia entre nós.

Na França ocupada pela Wermacht, vencida e humilhada, um poema de Paul Eluard, distribuido clandestinamente, reanimava os timidos e fortalecia os combatentes. Transcrevo os seus últimos versos:
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence na vie
Je suis né pour te connaitre
Pour te nommer
LIBERTÉ!
A leitura do lívro de Schwartzman acentua em mim a desconfiança de que os brasileiros não nasceram para gritar: Liberdade! É natural que não posssam conhecê-la.
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