ESTADO NOVO - UM AUTO-RETRATO
(Arquivo Gustavo Capanema)

Simon Schwartzman, organizador

Brasília, Editora da Universidade de Brasília, Coleção Temas Brasileiros, 24, 1983.

SUMÁRIO:

APRESENTAÇÃO (Simon Schwartzman)

PRIMEIRA PARTE: GETÚLIO VARGAS E A ORGANIZAÇÃO DO ESTADO
Introdução: Getúlio Vargas e sua Politica
Capitulo 1: Racaonalização do Governo
Capitulo 2: Ordem e Segurança
Capítulo 3: Finanças Públicas
Capitulo 4: Informação Estatística e Geográfica
Capitulo 5: As Forças Armadas
SEGUNDA PARTE: A AÇÃO POLÍTICA E SOCIAL DO ESTADO FOVO
Capitulo 1: A Política Exterior
Capitulo 2: Política do Trabalho
Capitulo 3: Educação
Capitulo 4: Saúde
Capitulo 5: Comunicações e Transportes
Capitulo 6: A Produção Agropecuária
Capitulo 7: Indústrias Extrativas e Produção Industrial


APRESENTAÇÃO

Nos primeiros anos da década de quarenta, o Ministro Gustavo Capanema, da Educação e Saúde, assumiu a responsabilidade de produzir uma obra que desse uma visão aprofundada e de conjunto das realizações do governo Vargas a partir de 1930. Relatos parciais foram solicitados a todos os setores do governo e os texto{ que chegavam iam sendo revistos, reescritos e organizados em capítulos Apesar de muito avançada, foi uma obra que jamais chegou a ser publicada. O arquivo pessoal de Gustavo Capanema. hoje parte do acervo do Centro de Pesquisa e Documentação em Historia Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, contém no entanto a maior parte dos manuscritos, versões preliminares e capítulos acabados que a compõem. Este material forma o mais completo auto-retrato do governo Vargas, que é aqui apresentado pela primeira vez.

Em sua maioria, são textos muito bem cuidados, e escritos dentro de uma perspectiva analítica e histórica, evitando cair em excesso de detalhes ou permanecer no plano das simples declarações de intenção ou propaganda.

Isto não significa, evidentemente, que se trate de uma obra neutra e imparcial. Escrita desde a perspectiva dos governantes, ela é necessariamente unilateral, e deve ser complementada pela pesquisa independente, pelo exame de outras fontes e da literatura histórica e crítica existente sobre o período. Trata-se, acima de tudo, de uma visão interna, "compreensiva," do regime Vargas; e neste sentido é um documento de importância inestimável.

A leitura deste livro dá uma ideia bastante nítida de quanto o Brasil de hoje ainda vive dentro das concepções e estruturas governamentais e institucionais estabelecidas naqueles quinze anos cruciais da história do pais. Para entendermos bem esta questão é necessário pensar que a ação do governo Vargas - como aliás, de qualquer governo - deve ser vista seguindo dois aspectos distintos, os de organização e formação do Estado, e os que se referem à ação de governo propriamente dita. As ações de governo são aquelas que têm a ver com a adoção de políticas governamentais específicas, seja por exemplo na política externa, na determinação das prioridades econômicas ou na política migratória. As ações referidas ao Estado, enquanto isto, afetam a própria estrutura das instituições de que dispõe o governo - sua capacidade extrativa, sua eficiência organizacional, seus sistemas de segurança, seus procedimentos operacionais quotidianos. Na prática, os limites entre estas duas coisas nunca são nítidos, já que modificações de ordem estrutural são normalmente feitas tendo em vista objetivos de política governamental determinados, e estas, por sua vez, geram freqüentemente estruturas estatais mais permanentes. De qualquer forma, não resta dúvida que, mais do que governar, a nova geração que assumiu o poder a partir de 1930 viu como tarefa principal sua a reorganização total do Estado brasileiro, e acreditava que, uma vez conseguida esta organização, as boas políticas decorreriam quase que naturalmente. Sabemos hoje que as coisas não são assim. Mas as estruturas criadas naqueles anos sobreviveram por décadas a seus criadores, muitas delas transformadas em caricaturas de suas intenções iniciais, que ainda nos acompanham.

O arquivo Capanema possui uma primeira prova tipográfica de parte do trabalho, composto em 1943, e provas tipográficas de alguns capítulos feitas em 1945. Naquele ano, o Ministro da Educação informava ao Presidente Vargas já ter concluído o trabalho, e enviado os originais para a Imprensa Nacional (este texto final, no entanto, não foi encontrado) . Os textos de 1943 e 1945 se referem freqüentemente às mesmas áreas de ação governamental, ainda que com redação diferente. Além disto, existem vários textos manuscritos em diferentes estágios de preparação, que não chegaram a ser compostos.

A reorganização dos textos para efeitos de publicação exigiu uma série de decisões que estão referidas em detalhe em cada capítulo. Basicamente, foi necessário escolher qual versão a ser publicada, quando havia mais de uma; decidir quais dos manuscritos ainda não compostos deveriam ou não ser incluídos; quando havia textos revistos, se deveria ser mantida a forma original ou a corrigida; e quais partes já deixaram de ter interesse e deveriam ser eliminadas. Além disto, foi necessário reordenar todo o material, e adaptar os títulos de forma a fazer da obra um todo consistente. Na primeira parte foram reunidos os textos que se referem mais diretamente à organização do Estado, e na segunda, à ação política e social do governo.

O princípio que norteou estas decisões foi o de dar, sempre, a versão historicamente mais densa possível das diversas áreas da política governamental, em detrimento do que fosse meramente ideológico e declaratório, ou simplesmente administrativo e burocrático. Muito pouca coisa foi suprimida: em geral, tabelas muito extensas de dados pouco significativos atualmente, transcrição de legislação ou normas burocráticas, listas extensas de obras públicas de vários tipos. O pesquisador especializado que tiver interesse em examinar o material completo em suas diversas versões poderá consultá-lo pessoalmente no arquivo do CPDOC.

Não haveria como aprofundar nesta curta apresentação a análise de tão rico material. Isto deverá ser feito aos poucos, pelos especialistas de cada área. Vale a pena assinalar, no entanto, que não existe uma coerência ideológica e programática absoluta entre todos os textos. Primeiro, porque eles foram escritos por pessoas e setores governamentais distintos, e não chegaram a ser totalmente padronizados. Segundo, porque existe uma diferença de estilo e ênfase importante entre os textos mais antigos, escritos durante o que pode ser considerado o período de apogeu da versão mais radical e totalitária do Estado Novo, e os redigidos no clima político correspondente ao alinhamento brasileiro contra as potências do Eixo. O que se segue é uma notícia breve sobre cada um dos capítulos, chamando a atenção para uma ou outra questão que pareceu merecer maior destaque.

Do capítulo introdutório só existe um manuscrito datilografado. Seu estilo é do louvor ao Chefe, do culto à personalidade do líder, um estilo que cairia rapidamente em desuso quando o Brasil finalmente tomou partido ao lado dos aliados na Segunda Grande Guerra. Ele é provavelmente anterior a todas as demais partes da obra, e quase certamente não estaria incluído em sua versão final.

O primeiro capítulo, sobre a racionalização do governo, foi escrito no interior do próprio Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP, dirigido desde sua formação por Luís Simões Lopes. O DASP, agência de grande poder e assessoramento direto ao Presidente, foi responsável por trazer ao Brasil os princípios e ideais de uma administração científica e racional, que escapasse das injunções dos interesses particularistas e político-partidários. Foi o DASP quem introduziu o sistema de concursos públicos para os cargos federais, diminuindo assim, em certa medida, a grande pressão por empregos que todos os governantes brasileiros sempre sofreram por parte de seus constituintes. O DASP foi também o responsável pela idéia, até hoje bastante difundida, de que existe uma incompatibilidade radical entre a "racionalidade" da administração e a "irracionalidade" da política. A outra idéia também difundida a partir daí foi a da superioridade da padronização sobre a diversidade no manejo da coisa pública. Finalmente, o DASP foi em boa parte o executor do ideal da integração administrativa entre os diversos níveis do governo federal, estadual e municipal. O capítulo do DASP ainda inclui uma parte referente ao uso oficial da propaganda no governo Vargas, realizada principalmente através do Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP, órgão autônomo e diretamente subordinado à Presidência da República.

O capítulo sobre ordem e segurança é originário do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Suas duas primeiras partes consistem em uma análise bastante aprofundada da evolução do sistema jurídico brasileiro até o Estado Novo, tanto do ponto de vista de sua base legal quando no que se refere à organização administrativa do sistema judiciário. Na parte do processo civil, ele acentua o fortalecimento dos poderes do juiz e a criação de procedimentos mais rápidos e eficientes de justiça, como aspectos mais importantes da reforma do Código feita pelo governo Vargas. Na área do direito penal material, é acentuado o ecletismo que combina a responsabilidade moral e penal e as medidas de segurança. Na área do processo penal. a ênfase é na "primazia do interesse social sobre o dos indivíduos, sem sacrifício, porém, da defesa dos acusados". Em relação aos serviços judiciários, a nota principal é a extinção da justiça federal, com transferência de suas funções para os Estados, permanecendo o governo central somente com as áreas de competência originárias do Supremo Tribunal Federal, da Justiça Militar, da Justiça do Trabalho e do Tribunal de Segurança Nacional, cujas funções são descritas em detalhe. A parte referida à defesa das instituições Nacionais abandona a linguagem jurídica anterior, e adota a terminologia própria dos órgãos de segurança política e social. Ela contém uma breve história do comunismo no Brasil, apresentada como uma conspiração feita por "agitadores estrangeiros" e "maus brasileiros" que culminou com a Lei de Segurança Nacional de 1935 e a Intentona do mesmo ano. Sob o item "outras atividades defensivas" há uma referência à extinção dos partidos políticos e à revolta integralista de 1937, que visava a implantar entre nós uma "odiosa ditadura fascista". A legislação sobre estrangeiros, finalmente, dá ênfase ao problema da formação de quistos de nacionalidade estrangeira em território brasileiro, procurando corrigir o "erro fundamental do passado," quando "não se cogitou de evitar a formação de núcleos coloniais com predominâncias raciais estrangeiras muito acentuadas."

O capítulo sobre as finanças públicas assinala a transformação do Orçamento de um instrumento do controle político do Parlamento sobre o Executivo em um elemento central do plano financeiro e de instrumento da própria administração. Com isto os poderes legislativos sobre o Orçamento são reduzidos, enquanto a autoridade do Executivo é aumentada. Esta transferência de funções aparece como ligada à ampliação das funções do Estado moderno, que é um Estado "nitidamente intervencionista e disciplinador," e como tal destina grandes somas à "previdência, amparo, assistência, educação, etc., e ao fomento da economia em seus diversos aspectos". Esta ampliação, por sua vez, estaria ligada à passagem do Brasil do estágio de um pais agrícola para o de um pais industrializado. A economia do pais é caracterizada como não tendo atingido ainda "a fase propriamente capitalista e que se apóia na extração e exportação de matérias-primas e produtos agrícolas, apresentando ainda uma indústria incipiente. financiada por capitais estrangeiros." Ao mesmo tempo, no entanto, já estariam lançadas as bases para a industrialização e para a independência econômica do país, com o fim da importação de capitais. Trata-se de uma concepção desenvolvimentista bastante pioneira para a época, principalmente se observamos que a parte sobre a economia, elaborada sob a orientação do Ministério da Agricultura, ainda insistia na tese da vocação agrícola brasileira. O sistema tributário é analisado de forma histórica, e a partir desta visão. Na área da despesa há uma análise da evolução da divida pública brasileira desde a independência, tanto interna quanto externa, e sobre o que o governo Vargas vinha fazendo a este respeito. Um dos aspectos básicos da nova política teria sido a subordinação da gestão financeira dos Estados e Municípios à União, responsável por "incontáveis benefícios" ao país.

O Recenseamento de 1940 é geralmente considerado um dos mais bem-sucedidos na história do país, e o capitulo sobre a informação estatística e geográfica trata de mostrar o histórico da evolução deste tipo de atividade. Tendo somente à sua disposição os resultados do Censo de 1920, e sem dispor de informações confiáveis obtidas por outros meios, esta era uma lacuna fortemente sentida por um governo que pretendia, como o do Estado Novo, a racionalidade e a interferência em todos os setores da vida nacional. "O governo instituído em 1930 encontrou a nação, a bem dizer, ignorando quase tudo de si mesma." "Os dados, que poderiam caracterizar qualquer aspecto da vida nacional, ou não existiam, ou eram de difícil compreensão, ou eram de difícil pesquisa ou se achavam fragmentária e lacunosamente elaborados, ou eram antiquados ou se contradiziam - quando não se distanciavam visivelmente da realidade" Diante deste quadro, todo o esforço foi feito com o objetivo de criar um "plano orgânico, sistemático e completo,"que proporcionasse as informações necessárias ao esforço racionalizador do governo federal. A criação de órgãos nacionais de estatística, dentre os quais o IBGE, é o caminho encontrado. Mais ainda, a legislação do Estado Novo criou o Conselho Nacional de Estatística. como órgão consultivo de alto nível, responsável pela "orientação da estatística nacional e interpretação de seus resultados'" e opinando sobre questões de política de amparo à família, recomposição do quadro das unidades políticas nacionais, e muitas outras. O setor de estatística se transformou, assim, em importante ponto de reunião de talentos no governo Vargas. O recenseamento culmina todo este esforço, e não deixa de ser significativo que seu primeiro volume seja a obra monumental de Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira. A geografia, entendida menos como disciplina acadêmica do que como um serviço público de importância, é também analisada em sua evolução histórica, até sua vinculação ao IBGE, de forma análoga ao dos serviços de estatística.

O capítulo sobre as forças armadas, escrito no interior de cada uma delas, contém um quadro bastante abrangente e detalhado da organização, capacidade e atividade do Exército, Marinha e Aeronáutica. O capítulo sobre o Exército começa com uma pequena discussão sobre as causas da debilidade histórica das forças armadas brasileiras, que não seriam nem a falta de recursos nem a participação dos militares na política, mas "a inexistência de uma direção firme e consciente, que traçasse rumos definitivos, não apenas para estas instituições. porém para o próprio país, cuja grandeza e soberania delas decorre." O texto sobre o Exército dá grande ênfase ao ensino militar, à construção de rodovias, à organização e disposição dos dispositivos militares, às atividades de apoio de vários tipos, etc. Merece destaque ainda a parte referente à indústria bélica, inclusive em cooperação com a indústria Krupp, alemã, até 1940. A parte sobre a Marinha tem estrutura semelhante, chamando a atenção o desenvolvimento de uma incipiente aviação naval. Existe ainda um apêndice sobre a participação da Marinha na Segunda Grande Guerra, escrito posteriormente. A parte sobre a Aeronáutica não se limita à aviação militar, mas inclui toda uma parte a aeronáutica civil.

Chama a atenção. no capítulo referido à política exterior, que abre a segunda parte, a grande ênfase dada às atividades da diplomacia brasileira no âmbito panamericano e a ausência de referências à presença desta diplomacia em seu ambiente preferido, que foi sempre o europeu. Isto pode ser melhor entendido quando pensamos que, de todas as áreas da atuação do governo, a de relações exteriores talvez tenha sido a que mais foi afetada pela súbita passagem de uma posição de neutralidade, ou mesmo de simpatia do Brasil em relação ao Eixo, à de aliança política e militar com os Estados Unidos. Pareceu sem dúvida ao responsável pela redação que, examinando somente a presença brasileira no contexto panamericano, seria possível encontrar uma certa continuidade na política externa brasileira através do tempo. Mesmo nesta linha, no entanto, é possível ver a transformação de uma postura neutralista à de comprometimento com os aliados, no final do período analisado (trata-se de um texto escrito presumivelmente em 1942). Ao contrário de outras áreas do governo, as relações exteriores já tinham uma estrutura administrativa bastante desenvolvida antes de 1930, e a reforma organizacional mais importante feita pelo governo Vargas foi a unificação dos corpos diplomático e consular.

O capitulo sobre política do trabalho descreve um dos aspectos mais salientes do regime Vargas, que foi a tentativa de organização da sociedade brasileira em moldes corporativos. O princípio liberal da liberdade de ação e negociação entre empregados e empregadores não é aceito, já que ele supunha uma igualdade de condições entre as classes que na realidade não existia: "O direito do trabalhador era um mito." Diante disto, caberia ao Estado assumir a responsabilidade. através da criação de uma Secretaria de Estado que tivesse a responsabilidade de "estudar e executar medidas de proteção aos trabalhadores e harmonizar seus interesses com os empregadores, a fim de disciplinar as forças produtoras em benefício da prosperidade geral da nação." O capítulo descreve em detalhe a legislação criada de proteção ao trabalhador e organização do trabalho, a justiça do trabalho, o regime das profissões e a organização do sistema sindical. A parte sobre a política de povoamento e imigração foi escruta separadamente, e de fato no Brasil nunca esteve vinculada à política do trabalho. Sua principal preocupação não é mais com o problema da mão-de-obra, que havia motivado toda a política migratória anterior, mas antes com o controle dos possíveis efeitos negativos que a presença estrangeira poderia. trazer à ordem política e social interna. A parte sobre o trabalho agrícola é bem reduzida, a e evidencia a falta de uma política para o setor, combinada com uma ênfase posta no cooperativismo como forma de organização corporativa desta parcela majoritária d a população do país. Sabemos, no entanto, que a ação do Ministério do Trabalho no regime Vargas, e mesmo depois, dificilmente ultrapassava a os limites dos grandes centros urbanos.

Curioso que não exista, no arquivo de Gustavo Capanema, nenhuma versão do texto referido à política educacional por ele mesmo desenvolvida. É provável que sua elaboração estivesse reservada ao próprio punho do Ministro, e não tenha sido concluída. Para não the deixar a lacuna, incluímos em seu lugar parte de um texto elaborado por Gustavo Capanema e enviado a Getúlio Vargas em 1946, que se intitula "Algumas notas sobre o problema da Educação e da Saúde no governo Getúlio Vargas." Ele faz um resumo bastante sumário da ação do Ministério no campo da educação primária, secundária e superior, assim como em outras modalidades de ensino comercial, industrial e atividades culturais. A atuação ministerial se concentrou inicialmente no nível do ensino superior e secundário, e só em 1942 chegou ao nível da educação primária.

Já o capítulo sobre a saúde é bastante pormenorizado, ainda que não contenha maiores referências aos eventuais dilemas de política sanitária enfrentados pelo governo. As diversas campanhas contra as epidemias são descritas em detalhe. Na parte referida à febre amarela, há um relato circunstanciado da participação da Fundação Rockefeller em seu controle. Chama a atenção o intenso programa de construções de hospitais, no que se refere à campanha contra a tuberculose. A parte sobre obras de saneamento, águas e esgotos, foi elaborada pelo Ministério da Viação e Obras Públicas, e não pelo da Saúde.

O capítulo sobre comunicações e transportes é também altamente descritivo, evidenciando a prioridade dada ao transporte ferroviário. Na área da marinha mercante, chama a atenção a discussão sobre o relacionamento entre o setor privado e o governo, que terminou com a encampação do Lloyd em 1937.

A parte correspondente à política econômica, finalmente, foi aqui organizada em dois capítulos; um, sobre a produção agropecuária, e outro sobre as indústrias extrativas e de transformação. A própria dificuldade em organizar estes dois capítulos a partir dos textos dispersos encontrados no arquivo Capanema. revela que o governo Vargas estava muito menos organizado para tratar de assuntos econômicos do que de assuntos de tipo político, de segurança e social. Antes de 1930 o Ministério da Agricultura abrangia também as áreas de Indústria e Comércio, mas sem maior operosidade. A partir de 30, indústria e comércio passaram para a égide do Ministério do Trabalho, onde assumiram uma posição secundária. Enquanto isto, o novo Ministério da Agricultura se dedicava principalmente às indústrias extrativas, particularmente durante a gestão de Juarez Távora, deixando que as principais atividades agrícolas passassem a ser assumidas por instituições independentes, como o Instituto do Açúcar e do Álcool e o Departamento Nacional do Café.

Não existe em nenhuma parte uma exposição referente à política comercial em sentido mais amplo, nem externa, nem interna. A sinopse da parte de Finanças Públicas contém referências à política cambial, creditícia, monetária e a organismos de grande importância como a Câmara de Reajustamento Econômico, o Conselho Federal de Comércio Exterior e a Comissão de Defesa da Economia Nacional, que não são no entanto analisados, já que o texto sobre finanças tem uma ótica essencialmente contábil e fiscal. Não há nenhuma referência à importantíssima Comissão de Mobilização Econômica, que tinha poderes de interferência em todos os setores do país no período de guerra. É desta forma que parece predominar, nos capítulos sobre a economia, a visão do Brasil como um país essencialmente rural. "Não cabe aos centros urbanos", diz o texto a certa altura, "o papel principal na vida do país. Ao contrário, os campos representam a parte essencial."

Esta visão de um Brasil fortemente apoiado no campo. entretanto, não parece vinculada à uma perspectiva totalmente tradicional da atividade econômica. Muito espaço é dedicado às atividades de pesquisa científica ligadas à melhoria das espécies, à mecanização, e à realização de pesquisas e estudos sobre as condições sócio-econômicas do trabalhador rural. Ao mesmo tempo, falta, significativamente, qualquer referência à questão do sistema de propriedade da terra, e existe uma visão idílica sobre as supostas virtudes do relacionamento entre proprietários e trabalhadores no setor rural."O trabalho rural brasileiro apresenta ainda aspectos semi-patriarcais." dizem os autores. "Felizmente, os nossos proprietários rurais possuem equilíbrio mental e moral. A índole boa de nossa gente e as condições geo-econômicas da formação brasileira evitaram excessos comuns a outras terras, podendo-se afirmar que no trabalho dos campos não existe o ódio e a luta social. A verdade é que, no purificador trabalho da terra, patrão e empregado se confraternizam, unidos por laços salutares de afeto e de colaboração". Este equilíbrio só seria rompido quando as relações pessoais fossem substituídas por relações dos trabalhadores com pessoas jurídicas, dando lugar ao surgimento de "choque de interesses classistas". É aqui que caberia a intervenção regulatória do Estado, através de um processo de sindicalização rural semelhante ao das cidades, que parece, no entanto, não ter ido além da letra da legislação.

O último capítulo. sobre as indústrias extrativas e manufatureiras, cobre muito mais as primeiras do que as últimas. Ênfase especial é dada ao Código de Minas e ao Código de Águas, promulgados durante a gestão de Juarez Távora no Ministério da Agricultura e que firmaram a orientação nacionalista e estatizante do governo em relação à exploração dos recursos minerais. É neste contexto que são tratadas as questões do petróleo, carvão e siderurgia. A parte da siderurgia merece uma atenção própria, em um texto elaborado pela própria Companhia Siderúrgica nacional. As grandes polêmicas sobre estes temas, que mobilizaram a opinião pública do país nos anos vinte e trinta transparecem, mas sem grandes aprofundamentos, exceto na parte referida aos códigos. Os antecedentes históricos da questão da indústria siderúrgica, por exemplo, são sumariados em cerca de uma página; a política finalmente adotada por Vargas é definida como sendo a de "criação de uma siderurgia nacional com a colaboração de capitais estrangeiros, utilizando a maior quantidade possível de carvão do país, e independente da exportação de minério de ferro", o que teria significado uma total reversão da política definida pelo contrato entre o governo brasileiro e a Itabira Iron Ore Co., e que prevaleceu até então.

O exame destes capítulos é suficiente para entendermos porque ele~ não chegaram jamais a ser publicados como planejado. O fato é que, antes que o trabalho estivesse terminado, o governo Vargas chegou ao fim. Mas a própria existência de múltiplas versões dos mesmos textos, e a ausência significativa de outros, mostra que se tratava de uma tarefa extremamente difícil, se não impossível. As mudanças que ocorriam no cenário político nacional e internacional levavam o governo Vargas a rever constantemente sua ideologia e a visão de seu próprio passado, e isto teria que afetar profundamente uma obra como esta, escrita por tantas mãos e através de vários anos. Se no fim da década de 30 e início dos anos 40 a ênfase era no Estado forte e centralizador, mais tarde a preocupação era com o governo paternalista e socialmente comprometido; o autoritarismo e caudilhismo dos primeiros anos cedia lugar ao populismo e aos valores democráticos e ocidentais dos últimos, da mesma forma que o neutralismo cedeu lugar ao alinhamento militar no campo aliado.

Esta metamorfose dos últimos anos do regime Vargas, reforçada pelo populismo dos anos cinqüenta, fez com que para muitos só permanecesse do Estado Novo a idéia tardia do getulismo petebista. O regime Vargas, no entanto, foi muito mais, e freqüentemente muito diferente disto, como este auto-retrato revela. <