
ESTADO NOVO - UM AUTO-RETRATO
(Arquivo Gustavo Capanema) Simon Schwartzman, organizador
Brasília, Editora da Universidade de Brasília, Coleção
Temas Brasileiros, 24, 1983.
SUMÁRIO:
APRESENTAÇÃO (Simon Schwartzman)
PRIMEIRA PARTE: GETÚLIO VARGAS E A ORGANIZAÇÃO DO ESTADO
Introdução: Getúlio Vargas e sua Politica
Capitulo 1: Racaonalização do Governo
Capitulo 2: Ordem e Segurança
Capítulo 3: Finanças Públicas
Capitulo 4: Informação Estatística e Geográfica
Capitulo 5: As Forças Armadas
SEGUNDA PARTE: A AÇÃO POLÍTICA E SOCIAL DO ESTADO FOVO
Capitulo 1: A Política Exterior
Capitulo 2: Política do Trabalho
Capitulo 3: Educação
Capitulo 4: Saúde
Capitulo 5: Comunicações e Transportes
Capitulo 6: A Produção Agropecuária
Capitulo 7: Indústrias Extrativas e Produção Industrial
APRESENTAÇÃO
Nos primeiros anos da década de quarenta, o Ministro Gustavo Capanema, da
Educação e Saúde, assumiu a responsabilidade de produzir uma obra que desse
uma visão aprofundada e de conjunto das realizações do governo Vargas a
partir de 1930. Relatos parciais foram solicitados a todos os setores do
governo e os texto{ que chegavam iam sendo revistos, reescritos e organizados
em capítulos Apesar de muito avançada, foi uma obra que jamais chegou a
ser publicada. O arquivo pessoal de Gustavo Capanema. hoje parte do acervo
do Centro de Pesquisa e Documentação em Historia Contemporânea do Brasil
da Fundação Getúlio Vargas, contém no entanto a maior parte dos manuscritos,
versões preliminares e capítulos acabados que a compõem. Este material forma
o mais completo auto-retrato do governo Vargas, que é aqui apresentado pela
primeira vez.
Em sua maioria, são textos muito bem cuidados, e escritos dentro de uma
perspectiva analítica e histórica, evitando cair em excesso de detalhes
ou permanecer no plano das simples declarações de intenção ou propaganda.
Isto não significa, evidentemente, que se trate de uma obra neutra e imparcial.
Escrita desde a perspectiva dos governantes, ela é necessariamente unilateral,
e deve ser complementada pela pesquisa independente, pelo exame de outras
fontes e da literatura histórica e crítica existente sobre o período. Trata-se,
acima de tudo, de uma visão interna, "compreensiva," do regime
Vargas; e neste sentido é um documento de importância inestimável.
A leitura deste livro dá uma ideia bastante nítida de quanto o Brasil de
hoje ainda vive dentro das concepções e estruturas governamentais e institucionais
estabelecidas naqueles quinze anos cruciais da história do pais. Para entendermos
bem esta questão é necessário pensar que a ação do governo Vargas - como
aliás, de qualquer governo - deve ser vista seguindo dois aspectos distintos,
os de organização e formação do Estado, e os que se referem à ação de governo
propriamente dita. As ações de governo são aquelas que têm a ver com a adoção
de políticas governamentais específicas, seja por exemplo na política externa,
na determinação das prioridades econômicas ou na política migratória. As
ações referidas ao Estado, enquanto isto, afetam a própria estrutura das
instituições de que dispõe o governo - sua capacidade extrativa, sua eficiência
organizacional, seus sistemas de segurança, seus procedimentos operacionais
quotidianos. Na prática, os limites entre estas duas coisas nunca são nítidos,
já que modificações de ordem estrutural são normalmente feitas tendo em
vista objetivos de política governamental determinados, e estas, por sua
vez, geram freqüentemente estruturas estatais mais permanentes. De qualquer
forma, não resta dúvida que, mais do que governar, a nova geração que assumiu
o poder a partir de 1930 viu como tarefa principal sua a reorganização total
do Estado brasileiro, e acreditava que, uma vez conseguida esta organização,
as boas políticas decorreriam quase que naturalmente. Sabemos hoje que as
coisas não são assim. Mas as estruturas criadas naqueles anos sobreviveram
por décadas a seus criadores, muitas delas transformadas em caricaturas
de suas intenções iniciais, que ainda nos acompanham.
O arquivo Capanema possui uma primeira prova tipográfica de parte do trabalho,
composto em 1943, e provas tipográficas de alguns capítulos feitas em 1945.
Naquele ano, o Ministro da Educação informava ao Presidente Vargas já ter
concluído o trabalho, e enviado os originais para a Imprensa Nacional (este
texto final, no entanto, não foi encontrado) . Os textos de 1943 e 1945
se referem freqüentemente às mesmas áreas de ação governamental, ainda que
com redação diferente. Além disto, existem vários textos manuscritos em
diferentes estágios de preparação, que não chegaram a ser compostos.
A reorganização dos textos para efeitos de publicação exigiu uma série de
decisões que estão referidas em detalhe em cada capítulo. Basicamente, foi
necessário escolher qual versão a ser publicada, quando havia mais de uma;
decidir quais dos manuscritos ainda não compostos deveriam ou não ser incluídos;
quando havia textos revistos, se deveria ser mantida a forma original ou
a corrigida; e quais partes já deixaram de ter interesse e deveriam ser
eliminadas. Além disto, foi necessário reordenar todo o material, e adaptar
os títulos de forma a fazer da obra um todo consistente. Na primeira parte
foram reunidos os textos que se referem mais diretamente à organização do
Estado, e na segunda, à ação política e social do governo.
O princípio que norteou estas decisões foi o de dar, sempre, a versão historicamente
mais densa possível das diversas áreas da política governamental, em detrimento
do que fosse meramente ideológico e declaratório, ou simplesmente administrativo
e burocrático. Muito pouca coisa foi suprimida: em geral, tabelas muito
extensas de dados pouco significativos atualmente, transcrição de legislação
ou normas burocráticas, listas extensas de obras públicas de vários tipos.
O pesquisador especializado que tiver interesse em examinar o material completo
em suas diversas versões poderá consultá-lo pessoalmente no arquivo do CPDOC.
Não haveria como aprofundar nesta curta apresentação a análise de tão rico
material. Isto deverá ser feito aos poucos, pelos especialistas de cada
área. Vale a pena assinalar, no entanto, que não existe uma coerência ideológica
e programática absoluta entre todos os textos. Primeiro, porque eles foram
escritos por pessoas e setores governamentais distintos, e não chegaram
a ser totalmente padronizados. Segundo, porque existe uma diferença de estilo
e ênfase importante entre os textos mais antigos, escritos durante o que
pode ser considerado o período de apogeu da versão mais radical e totalitária
do Estado Novo, e os redigidos no clima político correspondente ao alinhamento
brasileiro contra as potências do Eixo. O que se segue é uma notícia breve
sobre cada um dos capítulos, chamando a atenção para uma ou outra questão
que pareceu merecer maior destaque.
Do capítulo introdutório só existe um manuscrito datilografado. Seu estilo
é do louvor ao Chefe, do culto à personalidade do líder, um estilo que cairia
rapidamente em desuso quando o Brasil finalmente tomou partido ao lado dos
aliados na Segunda Grande Guerra. Ele é provavelmente anterior a todas as
demais partes da obra, e quase certamente não estaria incluído em sua versão
final.
O primeiro capítulo, sobre a racionalização do governo, foi escrito no interior
do próprio Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP, dirigido
desde sua formação por Luís Simões Lopes. O DASP, agência de grande poder
e assessoramento direto ao Presidente, foi responsável por trazer ao Brasil
os princípios e ideais de uma administração científica e racional, que escapasse
das injunções dos interesses particularistas e político-partidários. Foi
o DASP quem introduziu o sistema de concursos públicos para os cargos federais,
diminuindo assim, em certa medida, a grande pressão por empregos que todos
os governantes brasileiros sempre sofreram por parte de seus constituintes.
O DASP foi também o responsável pela idéia, até hoje bastante difundida,
de que existe uma incompatibilidade radical entre a "racionalidade"
da administração e a "irracionalidade" da política. A outra idéia
também difundida a partir daí foi a da superioridade da padronização sobre
a diversidade no manejo da coisa pública. Finalmente, o DASP foi em boa
parte o executor do ideal da integração administrativa entre os diversos
níveis do governo federal, estadual e municipal. O capítulo do DASP ainda
inclui uma parte referente ao uso oficial da propaganda no governo Vargas,
realizada principalmente através do Departamento de Imprensa e Propaganda
- DIP, órgão autônomo e diretamente subordinado à Presidência da República.
O capítulo sobre ordem e segurança é originário do Ministério da Justiça
e Negócios Interiores. Suas duas primeiras partes consistem em uma análise
bastante aprofundada da evolução do sistema jurídico brasileiro até o Estado
Novo, tanto do ponto de vista de sua base legal quando no que se refere
à organização administrativa do sistema judiciário. Na parte do processo
civil, ele acentua o fortalecimento dos poderes do juiz e a criação de procedimentos
mais rápidos e eficientes de justiça, como aspectos mais importantes da
reforma do Código feita pelo governo Vargas. Na área do direito penal material,
é acentuado o ecletismo que combina a responsabilidade moral e penal e as
medidas de segurança. Na área do processo penal. a ênfase é na "primazia
do interesse social sobre o dos indivíduos, sem sacrifício, porém, da defesa
dos acusados". Em relação aos serviços judiciários, a nota principal
é a extinção da justiça federal, com transferência de suas funções para
os Estados, permanecendo o governo central somente com as áreas de competência
originárias do Supremo Tribunal Federal, da Justiça Militar, da Justiça
do Trabalho e do Tribunal de Segurança Nacional, cujas funções são descritas
em detalhe. A parte referida à defesa das instituições Nacionais abandona
a linguagem jurídica anterior, e adota a terminologia própria dos órgãos
de segurança política e social. Ela contém uma breve história do comunismo
no Brasil, apresentada como uma conspiração feita por "agitadores estrangeiros"
e "maus brasileiros" que culminou com a Lei de Segurança Nacional
de 1935 e a Intentona do mesmo ano. Sob o item "outras atividades defensivas"
há uma referência à extinção dos partidos políticos e à revolta integralista
de 1937, que visava a implantar entre nós uma "odiosa ditadura fascista".
A legislação sobre estrangeiros, finalmente, dá ênfase ao problema da formação
de quistos de nacionalidade estrangeira em território brasileiro, procurando
corrigir o "erro fundamental do passado," quando "não se
cogitou de evitar a formação de núcleos coloniais com predominâncias raciais
estrangeiras muito acentuadas."
O capítulo sobre as finanças públicas assinala a transformação do Orçamento
de um instrumento do controle político do Parlamento sobre o Executivo em
um elemento central do plano financeiro e de instrumento da própria administração.
Com isto os poderes legislativos sobre o Orçamento são reduzidos, enquanto
a autoridade do Executivo é aumentada. Esta transferência de funções aparece
como ligada à ampliação das funções do Estado moderno, que é um Estado "nitidamente
intervencionista e disciplinador," e como tal destina grandes somas
à "previdência, amparo, assistência, educação, etc., e ao fomento da
economia em seus diversos aspectos". Esta ampliação, por sua vez, estaria
ligada à passagem do Brasil do estágio de um pais agrícola para o de um
pais industrializado. A economia do pais é caracterizada como não tendo
atingido ainda "a fase propriamente capitalista e que se apóia na extração
e exportação de matérias-primas e produtos agrícolas, apresentando ainda
uma indústria incipiente. financiada por capitais estrangeiros." Ao
mesmo tempo, no entanto, já estariam lançadas as bases para a industrialização
e para a independência econômica do país, com o fim da importação de capitais.
Trata-se de uma concepção desenvolvimentista bastante pioneira para a época,
principalmente se observamos que a parte sobre a economia, elaborada sob
a orientação do Ministério da Agricultura, ainda insistia na tese da vocação
agrícola brasileira. O sistema tributário é analisado de forma histórica,
e a partir desta visão. Na área da despesa há uma análise da evolução da
divida pública brasileira desde a independência, tanto interna quanto externa,
e sobre o que o governo Vargas vinha fazendo a este respeito. Um dos aspectos
básicos da nova política teria sido a subordinação da gestão financeira
dos Estados e Municípios à União, responsável por "incontáveis benefícios"
ao país.
O Recenseamento de 1940 é geralmente considerado um dos mais bem-sucedidos
na história do país, e o capitulo sobre a informação estatística e geográfica
trata de mostrar o histórico da evolução deste tipo de atividade. Tendo
somente à sua disposição os resultados do Censo de 1920, e sem dispor de
informações confiáveis obtidas por outros meios, esta era uma lacuna fortemente
sentida por um governo que pretendia, como o do Estado Novo, a racionalidade
e a interferência em todos os setores da vida nacional. "O governo
instituído em 1930 encontrou a nação, a bem dizer, ignorando quase tudo
de si mesma." "Os dados, que poderiam caracterizar qualquer aspecto
da vida nacional, ou não existiam, ou eram de difícil compreensão, ou eram
de difícil pesquisa ou se achavam fragmentária e lacunosamente elaborados,
ou eram antiquados ou se contradiziam - quando não se distanciavam visivelmente
da realidade" Diante deste quadro, todo o esforço foi feito com o objetivo
de criar um "plano orgânico, sistemático e completo,"que proporcionasse
as informações necessárias ao esforço racionalizador do governo federal.
A criação de órgãos nacionais de estatística, dentre os quais o IBGE, é
o caminho encontrado. Mais ainda, a legislação do Estado Novo criou o Conselho
Nacional de Estatística. como órgão consultivo de alto nível, responsável
pela "orientação da estatística nacional e interpretação de seus resultados'"
e opinando sobre questões de política de amparo à família, recomposição
do quadro das unidades políticas nacionais, e muitas outras. O setor de
estatística se transformou, assim, em importante ponto de reunião de talentos
no governo Vargas. O recenseamento culmina todo este esforço, e não deixa
de ser significativo que seu primeiro volume seja a obra monumental de Fernando
de Azevedo, A Cultura Brasileira. A geografia, entendida menos
como disciplina acadêmica do que como um serviço público de importância,
é também analisada em sua evolução histórica, até sua vinculação ao IBGE,
de forma análoga ao dos serviços de estatística.
O capítulo sobre as forças armadas, escrito no interior de cada uma delas,
contém um quadro bastante abrangente e detalhado da organização, capacidade
e atividade do Exército, Marinha e Aeronáutica. O capítulo sobre o Exército
começa com uma pequena discussão sobre as causas da debilidade histórica
das forças armadas brasileiras, que não seriam nem a falta de recursos nem
a participação dos militares na política, mas "a inexistência de uma
direção firme e consciente, que traçasse rumos definitivos, não apenas para
estas instituições. porém para o próprio país, cuja grandeza e soberania
delas decorre." O texto sobre o Exército dá grande ênfase ao ensino
militar, à construção de rodovias, à organização e disposição dos dispositivos
militares, às atividades de apoio de vários tipos, etc. Merece destaque
ainda a parte referente à indústria bélica, inclusive em cooperação com
a indústria Krupp, alemã, até 1940. A parte sobre a Marinha tem estrutura
semelhante, chamando a atenção o desenvolvimento de uma incipiente aviação
naval. Existe ainda um apêndice sobre a participação da Marinha na Segunda
Grande Guerra, escrito posteriormente. A parte sobre a Aeronáutica não se
limita à aviação militar, mas inclui toda uma parte a aeronáutica civil.
Chama a atenção. no capítulo referido à política exterior, que abre a segunda
parte, a grande ênfase dada às atividades da diplomacia brasileira no âmbito
panamericano e a ausência de referências à presença desta diplomacia em
seu ambiente preferido, que foi sempre o europeu. Isto pode ser melhor entendido
quando pensamos que, de todas as áreas da atuação do governo, a de relações
exteriores talvez tenha sido a que mais foi afetada pela súbita passagem
de uma posição de neutralidade, ou mesmo de simpatia do Brasil em relação
ao Eixo, à de aliança política e militar com os Estados Unidos. Pareceu
sem dúvida ao responsável pela redação que, examinando somente a presença
brasileira no contexto panamericano, seria possível encontrar uma certa
continuidade na política externa brasileira através do tempo. Mesmo nesta
linha, no entanto, é possível ver a transformação de uma postura neutralista
à de comprometimento com os aliados, no final do período analisado (trata-se
de um texto escrito presumivelmente em 1942). Ao contrário de outras áreas
do governo, as relações exteriores já tinham uma estrutura administrativa
bastante desenvolvida antes de 1930, e a reforma organizacional mais importante
feita pelo governo Vargas foi a unificação dos corpos diplomático e consular.
O capitulo sobre política do trabalho descreve um dos aspectos mais salientes
do regime Vargas, que foi a tentativa de organização da sociedade brasileira
em moldes corporativos. O princípio liberal da liberdade de ação e negociação
entre empregados e empregadores não é aceito, já que ele supunha uma igualdade
de condições entre as classes que na realidade não existia: "O direito
do trabalhador era um mito." Diante disto, caberia ao Estado assumir
a responsabilidade. através da criação de uma Secretaria de Estado que tivesse
a responsabilidade de "estudar e executar medidas de proteção aos trabalhadores
e harmonizar seus interesses com os empregadores, a fim de disciplinar as
forças produtoras em benefício da prosperidade geral da nação." O capítulo
descreve em detalhe a legislação criada de proteção ao trabalhador e organização
do trabalho, a justiça do trabalho, o regime das profissões e a organização
do sistema sindical. A parte sobre a política de povoamento e imigração
foi escruta separadamente, e de fato no Brasil nunca esteve vinculada à
política do trabalho. Sua principal preocupação não é mais com o problema
da mão-de-obra, que havia motivado toda a política migratória anterior,
mas antes com o controle dos possíveis efeitos negativos que a presença
estrangeira poderia. trazer à ordem política e social interna. A parte sobre
o trabalho agrícola é bem reduzida, a e evidencia a falta de uma política
para o setor, combinada com uma ênfase posta no cooperativismo como forma
de organização corporativa desta parcela majoritária d a população do país.
Sabemos, no entanto, que a ação do Ministério do Trabalho no regime Vargas,
e mesmo depois, dificilmente ultrapassava a os limites dos grandes centros
urbanos.
Curioso que não exista, no arquivo de Gustavo Capanema, nenhuma versão do
texto referido à política educacional por ele mesmo desenvolvida. É provável
que sua elaboração estivesse reservada ao próprio punho do Ministro, e não
tenha sido concluída. Para não the deixar a lacuna, incluímos em seu lugar
parte de um texto elaborado por Gustavo Capanema e enviado a Getúlio Vargas
em 1946, que se intitula "Algumas notas sobre o problema da Educação
e da Saúde no governo Getúlio Vargas." Ele faz um resumo bastante sumário
da ação do Ministério no campo da educação primária, secundária e superior,
assim como em outras modalidades de ensino comercial, industrial e atividades
culturais. A atuação ministerial se concentrou inicialmente no nível do
ensino superior e secundário, e só em 1942 chegou ao nível da educação primária.
Já o capítulo sobre a saúde é bastante pormenorizado, ainda que não contenha
maiores referências aos eventuais dilemas de política sanitária enfrentados
pelo governo. As diversas campanhas contra as epidemias são descritas em
detalhe. Na parte referida à febre amarela, há um relato circunstanciado
da participação da Fundação Rockefeller em seu controle. Chama a atenção
o intenso programa de construções de hospitais, no que se refere à campanha
contra a tuberculose. A parte sobre obras de saneamento, águas e esgotos,
foi elaborada pelo Ministério da Viação e Obras Públicas, e não pelo da
Saúde.
O capítulo sobre comunicações e transportes é também altamente descritivo,
evidenciando a prioridade dada ao transporte ferroviário. Na área da marinha
mercante, chama a atenção a discussão sobre o relacionamento entre o setor
privado e o governo, que terminou com a encampação do Lloyd em 1937.
A parte correspondente à política econômica, finalmente, foi aqui organizada
em dois capítulos; um, sobre a produção agropecuária, e outro sobre as indústrias
extrativas e de transformação. A própria dificuldade em organizar estes
dois capítulos a partir dos textos dispersos encontrados no arquivo Capanema.
revela que o governo Vargas estava muito menos organizado para tratar de
assuntos econômicos do que de assuntos de tipo político, de segurança e
social. Antes de 1930 o Ministério da Agricultura abrangia também as áreas
de Indústria e Comércio, mas sem maior operosidade. A partir de 30, indústria
e comércio passaram para a égide do Ministério do Trabalho, onde assumiram
uma posição secundária. Enquanto isto, o novo Ministério da Agricultura
se dedicava principalmente às indústrias extrativas, particularmente durante
a gestão de Juarez Távora, deixando que as principais atividades agrícolas
passassem a ser assumidas por instituições independentes, como o Instituto
do Açúcar e do Álcool e o Departamento Nacional do Café.
Não existe em nenhuma parte uma exposição referente à política comercial
em sentido mais amplo, nem externa, nem interna. A sinopse da parte de Finanças
Públicas contém referências à política cambial, creditícia, monetária e
a organismos de grande importância como a Câmara de Reajustamento Econômico,
o Conselho Federal de Comércio Exterior e a Comissão de Defesa da Economia
Nacional, que não são no entanto analisados, já que o texto sobre finanças
tem uma ótica essencialmente contábil e fiscal. Não há nenhuma referência
à importantíssima Comissão de Mobilização Econômica, que tinha poderes de
interferência em todos os setores do país no período de guerra. É desta
forma que parece predominar, nos capítulos sobre a economia, a visão do
Brasil como um país essencialmente rural. "Não cabe aos centros urbanos",
diz o texto a certa altura, "o papel principal na vida do país. Ao
contrário, os campos representam a parte essencial."
Esta visão de um Brasil fortemente apoiado no campo. entretanto, não parece
vinculada à uma perspectiva totalmente tradicional da atividade econômica.
Muito espaço é dedicado às atividades de pesquisa científica ligadas à melhoria
das espécies, à mecanização, e à realização de pesquisas e estudos sobre
as condições sócio-econômicas do trabalhador rural. Ao mesmo tempo, falta,
significativamente, qualquer referência à questão do sistema de propriedade
da terra, e existe uma visão idílica sobre as supostas virtudes do relacionamento
entre proprietários e trabalhadores no setor rural."O trabalho rural
brasileiro apresenta ainda aspectos semi-patriarcais." dizem os autores.
"Felizmente, os nossos proprietários rurais possuem equilíbrio mental
e moral. A índole boa de nossa gente e as condições geo-econômicas da formação
brasileira evitaram excessos comuns a outras terras, podendo-se afirmar
que no trabalho dos campos não existe o ódio e a luta social. A verdade
é que, no purificador trabalho da terra, patrão e empregado se confraternizam,
unidos por laços salutares de afeto e de colaboração". Este equilíbrio
só seria rompido quando as relações pessoais fossem substituídas por relações
dos trabalhadores com pessoas jurídicas, dando lugar ao surgimento de "choque
de interesses classistas". É aqui que caberia a intervenção regulatória
do Estado, através de um processo de sindicalização rural semelhante ao
das cidades, que parece, no entanto, não ter ido além da letra da legislação.
O último capítulo. sobre as indústrias extrativas e manufatureiras, cobre
muito mais as primeiras do que as últimas. Ênfase especial é dada ao Código
de Minas e ao Código de Águas, promulgados durante a gestão de Juarez Távora
no Ministério da Agricultura e que firmaram a orientação nacionalista e
estatizante do governo em relação à exploração dos recursos minerais. É
neste contexto que são tratadas as questões do petróleo, carvão e siderurgia.
A parte da siderurgia merece uma atenção própria, em um texto elaborado
pela própria Companhia Siderúrgica nacional. As grandes polêmicas sobre
estes temas, que mobilizaram a opinião pública do país nos anos vinte e
trinta transparecem, mas sem grandes aprofundamentos, exceto na parte referida
aos códigos. Os antecedentes históricos da questão da indústria siderúrgica,
por exemplo, são sumariados em cerca de uma página; a política finalmente
adotada por Vargas é definida como sendo a de "criação de uma siderurgia
nacional com a colaboração de capitais estrangeiros, utilizando a maior
quantidade possível de carvão do país, e independente da exportação de minério
de ferro", o que teria significado uma total reversão da política definida
pelo contrato entre o governo brasileiro e a Itabira Iron Ore Co.,
e que prevaleceu até então.
O exame destes capítulos é suficiente para entendermos porque ele~ não chegaram
jamais a ser publicados como planejado. O fato é que, antes que o trabalho
estivesse terminado, o governo Vargas chegou ao fim. Mas a própria existência
de múltiplas versões dos mesmos textos, e a ausência significativa de outros,
mostra que se tratava de uma tarefa extremamente difícil, se não impossível.
As mudanças que ocorriam no cenário político nacional e internacional levavam
o governo Vargas a rever constantemente sua ideologia e a visão de seu próprio
passado, e isto teria que afetar profundamente uma obra como esta, escrita
por tantas mãos e através de vários anos. Se no fim da década de 30 e início
dos anos 40 a ênfase era no Estado forte e centralizador, mais tarde a preocupação
era com o governo paternalista e socialmente comprometido; o autoritarismo
e caudilhismo dos primeiros anos cedia lugar ao populismo e aos valores
democráticos e ocidentais dos últimos, da mesma forma que o neutralismo
cedeu lugar ao alinhamento militar no campo aliado.
Esta metamorfose dos últimos anos do regime Vargas, reforçada pelo populismo
dos anos cinqüenta, fez com que para muitos só permanecesse do Estado Novo
a idéia tardia do getulismo petebista. O regime Vargas, no entanto, foi
muito mais, e freqüentemente muito diferente disto, como este auto-retrato
revela.
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