Como os produtores de Ciência, Tecnologia e Informação "percebem" a sociedade?

Simon Schwartzman

Preparado para apresentação no seminário sobre "Papel e Inserção do Terceiro Setor no Processo de Construção e do Desenvolvimento da Ciência, Tecnologia e Inovação", organizado pela Academia Brasileira de Ciências e pelo Instituto de Tecnologia Social, Brasília, 14 e 15 de maio de 2002

Nestes tempos de Copa do Mundo, nada melhor do que comparar a questão da relação entre os produtores de conhecimento e a sociedade com a do relacionamento entre os jogadores e técnicos de futebol e a população. A ciência e a tecnologia, assim como o futebol profissional, são atividades especializadas, que requerem treinamento e estudo, e não estão ao alcance de todos os cidadãos, para entendê-los ou praticá-los. E no entanto, tanto o futebol quanto a ciência e tecnologia interessam a muita gente, produzem resultados que afetam a vida das pessoas de diferentes maneiras, e é natural que elas tenham vontade de participar e influenciar nas escolhas e decisões que são feitas.

Para os especialistas, o interesse e a participação do público são uma arma de dois gumes. Por um lado, os técnicos e especialistas necessitam que seu trabalho seja apoiado e valorizado pelo público; por outro, eles ressentem a interferência do leigo, que não entende a complexidade e as dificuldades das decisões e do trabalho a ser feito, mas pode influenciar de maneira muito significativa o trabalho do especialista, dando ou retirando apoio, e forçando escolhas e prioridades que podem não ser as mais adequadas.

Tradicionalmente, os cientistas sempre trataram de resolver esta questão pela valorização do conhecimento científico e técnico como uma forma superior de conhecimento, e pelo uso do argumento de autoridade. A primeira parte desta operação era de natureza ética e filosófica. O conhecimento científico, baseado na razão e na observação controlada da realidade, era apresentado e defendido como um conhecimento iluminado, produtor de verdades superiores àquelas reveladas pela religião ou pelo sentido comum. Além disto, o conhecimento científico e técnico prometia riqueza e saúde, resultados práticos que outras formas de conhecimento não poderiam proporcionar. A segunda parte desta operação era social e institucional. Os conhecimentos científicos eram produzidos e processados em um contexto social específico, o das comunidades científicas e acadêmicas, que compartiam uma cultura própria e em grande parte implícita, só acessível aos iniciados, e na qual só se poderia entrar através de formação e educação exclusivas(2). Os cientistas também se preocupavam, no entanto, em difundir os princípios e os valores da ciência entre o público, através das escolas e universidades, o suficiente para garantir que as pessoas possam entender e apreciar a importância de seu trabalho, mas não o suficiente para fazer com que todos participem, da mesma forma, dos trabalhos e das decisões relativas à produção do conhecimento científico e tecnológico(3). Assim, o público deveria apreciar o trabalho dos cientistas, dar a eles todo o apoio e os recursos que eles precisassem, mas deixando que eles resolvessem o que era melhor para todos. Durante séculos, nos países ocidentais mais desenvolvidos, esta maneira de justificar e apoiar o trabalho dos cientistas e pesquisadores se manteve, e isto permitiu que a ciência e a tecnologia se desenvolvessem a níveis extremamente elevados.

Este duplo processo de valorização ética do conhecimento científico e tecnológico e sua institucionalização fizeram parte, historicamente, de um processo muito mais amplo de constituição das sociedades modernas, descrito por Max Weber como de "racionalização," do qual fez parte, além da ciência e da tecnologia, o capitalismo, o individualismo, a democracia, a organização do Estado moderno e, mais recentemente, o Welfare State. Nos países que lideraram este processo, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia era visto como parte de um amplo projeto social que ficou conhecido como "Iluminismo", percebido como de natureza transformadora e revolucionária. Nos países que ficaram à margem deste processo ou só participaram dele muito tardiamente, como o Brasil, o processo de racionalização foi muitas vezes imposto de cima para baixo, como "modernização conservadora", ou reivindicado por pequenas elites modernizantes, sem o apoio político e social de setores emergentes e em expansão, e por isto se deu de forma muito mais precária.(4)

Hoje, no entanto, este edifício de justificação e proteção do trabalho dos cientistas e tecnólogos já não se sustenta da mesma forma, nem nos país centrais, nem nos de desenvolvimento tardio. Já não há tanta certeza sobre a bondade das tecnologias, nem a convicção de que a ciência conduza a um conhecimento eticamente superior, apesar da crise das demais interpretações normativas da realidade, inclusive as religiosas. O mundo da ciência e da tecnologia, que antes se mantinha protegido e isolado, é hoje invadido por todo tipo de interesses e motivações, e já não comparte uma cultura implícita, como antes parecia ser(5). Paradoxalmente, isto se dá ao mesmo tempo em que a importância da tecnologia para a geração de riqueza e de poder é maior do que nunca.

A crise do antigo sistema de proteção e justificação da atividade científica e técnica não significa, como pensam alguns, que o caráter especializado e complexo da ciência e tecnologia seja um mito, um simples embuste dos cientistas e tecnólogos para ocultar dos leigos o que fazem, e preservar o seu poder. Ciência e tecnologia são formas de poder, mas são muito mais do que isto. A complexidade e a natureza especializada das questões científicas e técnicas são maiores hoje do que no passado, em áreas como a dos alimentos transgênicos, as novas tecnologias de clonagem, os problemas de poluição ambiental, o tratamento de novas epidemias, e o entendimento e gerenciamento de sistemas macro-econômicos e macro-sociais. Mas isto não significa que os cientistas e tecnólogos tenham em mão as respostas a estas questões. As controvérsias e perplexidades existem dentro do próprio mundo da ciência, que não é, como os cientistas às vezes pretendem, uma república de sábios em busca das grandes verdades, mas uma arena altamente competitiva, aonde se disputa recursos, projetos, financiamentos, carreiras e reputações.(6) A ciência e a tecnologia não podem continuar funcionando como no passado, primeiro porque já não existe tanta certeza, e na realidade existem muitas dúvidas, sobre os benefícios inquestionáveis das inovações tecnológicas; e, depois, porque o custo da ciência e da tecnologia é cada vez maior, e a sociedade, através de suas instituições e segmentos mais organizados, começa a se perguntar se os cientistas e tecnólogos realmente merecem os cheques a fundo perdido que pleiteiam.

Não existe solução fácil para esta situação. Por parte dos especialistas, o mais adequado é não continuar na posição antiga de donos absolutos da verdade, e começar a compartir seus dilemas e perplexidades com a sociedade. É como o médico que, antes, passava a mão na cabeça do paciente e escondia a incerteza de seu diagnóstico, e que, hoje, discute com o paciente e sua família as diferentes alternativas, ou falta de alternativas, de tratamento. Isto não reduz a importância do conhecimento especializado do médico, que é hoje muito mais complexo e potente do que poucas décadas atrás; mas o torna menos autocrático, e torna o cliente menos passivo e mais senhor de seu destino.

Para esta mudança de atitude, os técnicos e especialistas precisam se reeducar. Precisam desenvolver a capacidade de admitir as limitações de seus conhecimentos, e traduzir as implicações práticas de seus dilemas e dificuldades em uma linguagem que seja acessível e inteligível para o não especialista. Eles precisam, em outras palavras, abandonar a atitude "iluminista" do passado.(7) O público também precisa ser reeducado, mas em um sentido diferente do se costumava fazer até aqui. Não se trata, simplesmente, de difundir o "método científico" ou fazer "divulgação científica" a um público passivo, ambos feitos, sobretudo, para conquistar apoio para as maravilhas da ciência e para os projetos e carreiras dos cientistas. O novo aprendizado requer que o público saiba respeitar e a entender a complexidade do trabalho de pesquisa, sem achar que se possa, pelo simples palpite ou sentimento, tomar o lugar do especialista; mas que aprenda também a colocar perguntas e exigir respostas, desmistificando o trabalho do cientista, entendendo quais as opções e as incertezas, e influenciando para que decisões mais corretas sejam adotadas.

Uma parte importante desta mudança vem sendo produzida por organizações que ocupam lugares intermediários entre o mundo da ciência e o mundo da sociedade, em seus diferentes aspectos. Estas instituições podem ser públicas ou privadas, da área social e da área econômica. Algumas das chamadas "instituições do terceiro setor" podem desempenhar este papel. Para isto, elas precisam trabalhar nas duas pontas, desenvolvendo competências tanto nas áreas técnicas quanto no relacionamento com diferentes segmentos da sociedade(8). Com esta dupla competência, elas podem angariar o respeito e a legitimidade tanto da área científica e técnica quanto dos movimentos e organizações sociais, e desta forma desempenhar importante papel de tradutoras entre os mundos da ciência e da tecnologia e a sociedade mais ampla.

O mundo da ciência e da tecnologia não é mais o mundo fechado das comunidades científicas e técnicas, mas tampouco é uma arena disforme em que as questões de natureza científica e técnica são decididas em assembléias, manifestações de rua, passeatas e programas de televisão. Continua sendo impossível ganhar a Copa do Mundo sem bons técnicos, bons jogadores, e sem que as pessoas em posição de responsabilidade tenham capacidade e autonomia para decidir. O que não se aceita mais é que os critérios e os procedimentos sejam mantidos em segredo, na ilusão de que, no fundo, o único que vale é o resultado final. Na verdade, os resultados finais serão sempre incertos, e a única coisa que pode legitimar o trabalho dos especialistas é a legitimidade e o respeito que eles possam conquistar, através do diálogo, junto à sociedade mais ampla.


Notas

2. A constituição e formas de funcionamento destas comunidades acadêmicas e científicas, dos conhecimentos tácitos que elas requerem, e suas transformações, tem sido objeto central dos estudos sociais sobre a ciência. Veja entre outros Michael Polanyi. Personal knowledge towards a post-critical philosophy. London: Routledge, 1997.; Robert King Merton. The sociology of science theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973.; Joseph Ben-David. Centers of Learning: Britain, France, Germany and the United States. Berkeley, California: The Carnegie Commission on Higher Education, 1977. Para o Brasil, ver Simon Schwartzman, Um espaço para a ciência - a formação da comunidade científica no Brasil. Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001.

3. Não por coincidência, é um sistema muito parecido com o das grandes igrejas, que reservam a interpretação e o gerenciamento das liturgias religiosas para os especialistas, e ao mesmo tempo procuram difundir seus valores e sua fé entre toda a população. No outro extremo, as seitas religiosas atribuem a cada pessoa o direito de interpretar a gerir suas próprias verdades, criando situações de grande envolvimento e instabilidade social.

4. Veja a este respeito, para a experiência brasileira, Simon Schwartzman, "A Força do novo." Em Simon Schwartzman , A redescoberta da cultura.São Paulo: Edusp - FAPESP, 1997. Veja também Edmundo Campos Coelho., As Profissões Imperiais: Advocacia, Medicina e Engenharia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.

5. Veja a respeito Michael Gibbons, Martin Trow, Peter Scott, Simon Schwartzman, Helga Nowotny e Camille Limoges. The new production of knowledge - the dynamics of science and research in contemporary societies . London, Thousand Oaks, California: Sage Publications, 1994.

6. Richard Lewontin. "The Politics of Science." The New York Review of Books May 9 (2002): 28-31.; Daniel S. Greenberg. Science, money and politics: political triumph and ethical erosionUniversity of Chicago Press, 2002.; Bruno Latour.La Clef de Berlin et autres leçons d'un amateur de sciences. Paris: Editions La Découverte, 1993.

7. Para uma crítica contundente da atitude "iluminista", ou moderna, que fingia não reconhecer as implicações mais gerais do trabalho científico e técnico, veja Bruno Latour., We have never been modern. Cambridge, Mass: Harvard University Press, c1993.

8. Sobre o papel das "boundary organizations" na área ambiental, veja os artigos reunidos em David H. Guston. "Boundary organizations in environment policy and science (special issue)." Science, Technology & Human Values 26, no. 4 (2001).


Referências Bibiográficas

Ben-David, Joseph 1977. Centers of Learning: Britain, France, Germany and the United States. Berkeley, California: The Carnegie Commission on Higher Education.

Coelho, Edmundo Campos 1999. As Profissões Imperiais: Advocacia, Medicina e Engenharia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Editora Record.

Gibbons, Michael, Martin Trow, Peter Scott, Simon Schwartzman, Helga Nowotny e Camille Limoges 1994. The new production of knowledge - the dynamics of science and research in contemporary societies . London, Thousand Oaks, California: Sage Publications.

Greenberg, Daniel S. 2002. Science, money and politics: political triumph and ethical erosion University of Chicago Press.

Guston, David H. 2001. "Boundary organizations in environment policy and science (special issue)." Science, Technology & Human Values 26, no. 4.


Latour, Bruno 1993. La Clef de Berlin et autres leçons d'un amateur de sciences. Paris: Editions La Découverte.

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Lewontin, Richard. 2002. "The Politics of Science." The New York Review of Books May 9: 28-31.


Merton, Robert King 1973. The sociology of science theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press.

Polanyi, Michael 1997. Personal knowledge towards a post-critical philosophy. London: Routledge.

Schwartzman, Simon, 1997. "A Força do novo." Em Simon Schwartzman, A redescoberta da cultura. São Paulo: Edusp - FAPESP.

------, 2001. Um espaço para a ciência - a formação da comunidade científica no Brasil. Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos. <