POR UMA NOVA POLÍTICA PARA O ENSINO SUPERIOR NO BRASIL, relatório final da "Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior", Brasília, Ministério da Educação, 1985.


Em dezembro do ano passado, após cerca de 6 meses de trabalho, a Comissão Nacional nomeada pelo Ministro da Educação com a tarefa de estudar e formular propostas para a reformulação de nossa educação superior apresentou suas conclusões Já circula, desde os últimos dias daquele mês, o Relatório Final da Comissão, elogiado pelo Ministro, lançado solenemente em programa de TV transmitido para todo o território nacional, impresso em larga escala pelo MEC e distribuído às Universidades. Inúmeras lideranças estudantis têm se preocupado em compreender que, representam, afinal, as idéias expressas nesse documento, extenso e abrangente.

Seriam fundamentos para uma nova política de ensino superior, que anulasse as distorções acumuladas durante os anos de regime obscurantista? Ou simplesmente um trabalho a mais entre tantos outros elaborados por "comissões de gabinete", distante dos interesses "das bases"? A diretoria da UNE apresenta a seguir sua opinião inicial sobre o assunto. Empenhada, junto com as demais entidades estudantis, em alcançar uma Reforma Universitária democrática e progressista procura, ao mesmo tempo, chamar a atenção e propor caminhos que levem rapidamente à ampla mobilização dos estudantes e da sociedade em busca de tal objetivo.

I - Educação: avança... ma non troppo

Encerrado o regime militar, o país herdou um sistema de ensino superior em frangalhos. A política para o setor imposta a partir de 64 é responsável por essa situação. Caracterizou-se por incentivar a penetração de interesses privados e especulativos na área do ensino; por mergulhar a Universidade pública em tremendas dificuldades causadas pela falta de verbas; por orientar a formação profissional para que atendesse os interesses dos grandes grupos econômicos, muitas vezes opostos às necessidades do povo e do país; por perseguir entidades e líderes estudantis, e por cassar intelectuais que sustentavam idéias democráticas implantando nas escolas um clima de caserna, pouco propício à investigação científica e ao debate das idéias.

O governo da Nova República assumiu a responsabilidade de enfrentar esses problemas, que estavam à vista de todos depois das constantes denúncias e dos movimentos desencadeados pela comunidade universitária ao longo de muitos anos. Não procurou partir, porém, para mudanças profundas ou radicais -e nem era sensato esperá-las de um governo de forças heterogêneas e sem base política maior. Adotou medidas paliativas. Contribuiu para que se regulamentasse a Emenda João Calmon, o que pode significar para as escolas públicas dotações orçamentárias maiores a partir de 1986; inaugurou um relacionamento de diálogo com as entidades representativas da comunidade universitária; atendeu algumas de suas reivindicações, nomeando, por exemplo, boa parte dos candidatos a reitor eleitos por processos democráticos.

O governo também instituiu e fez funcionar a "Comissão Nacional para Reformulação da Educação Superior", criada com o objetivo ambicioso de fornecer subsídios para "uma nova política para a educação brasileira" apresentando propostas que pudessem ser imediatamente consideradas". Tal medida encarnava desde logo avanços e hesitações. Representava, em primeiro lugar, o reconhecimento oficial de uma tese defendida há muito tempo pelos setores conseqüentes da comunidade universitária e da sociedade: a de que a política anterior para a Universidade encontrava-se esgotada, e de que era necessário substitui-la por uma nova. Representava também a possibilidade de que essa substituição fosse feita com maior participação da sociedade e dos setores envolvidos no problema. Afinal de contas, o governo incluiu entre os integrantes da Comissão indivíduos identificados com as três entidades que congregam a nível nacional a comunidade universitária - UNE, ANDES e FASUBRA; comprometeu-se - e ao menos até hoje não declinou desse compromisso - a "abrir uma ampla discussão" sobre as propostas sugeridas; e fará passar pelo crivo do Congresso Nacional o projeto de lei que vier a conter estas propostas.

Em contrapartida, o conjunto de nomes que compôs a comissão não sugeria que dela se esperassem propostas tão renovadoras. Com efeito, participaram da comissão indivíduos que participaram ativamente da resistência à política educacional do antigo regime. Desempenharam na comissão papel importantíssimo em defesa das idéias renovadoras. Tiveram, porém, de conviver com alguns dos que comandaram e defendem ainda hoje a implantação desta politica; com partidários notórios da privatização do ensino; e mesmo com elementos acostumados ao uso de práticas anti-democráticas no interior da Universidade.

Formada com tal heterogeneidade, a comissão não poderia ter deixado de sofrer também influências e pressões contraditórias, tão características de nossa atual conjuntura política. Durante o período em que se desenrolavam seus trabalhos, a UNE e as demais entidades estudantis iniciavam uma ampla discussão e uma campanha pela Reforma Universitária democrática e progressista; a ANDES e a FASUBRA desencadeavam movimento por reposição salarial e verbas para o ensino; as três entidades procuravam ganhar o apoio da sociedade para suas propostas; foram chamadas e ouvidas pela comissão. De outro lado as entidades "mantenedoras", que têm seus interesses estreitamente ligados à privatização do ensino, fizeram também ouvir suas vozes. Elas participam hoje de um orquestrado e bem-nutrido movimento para que o Estado ofereça recursos públicos para sustentação de seus negócios particulares. Também elas exerceram influência sobre a comissão. Esta, tão marcada pelo signo da contradição, não poderia deixar de produzir um conjunto de resoluções igualmente complexo e contraditório.

II - As pequenas (e importantes) medidas positivas...

Seis meses de trabalho, ocupados por várias reuniões plenárias e pelo trabalho das "subcomissôes" foram suficientes para que a comissão produzisse mais de uma centena de "recomendações", divididas no relatório original em 14 itens. Embora a maioria deles seja constituída de orientações, ou sugestões, cuja materialização será muito difícil acompanha e comprovar, há também inúmeras propostas concretas.

Em linhas gerais, é possível afirmar que a característica básica e o rumo a que conduzem essas propostas é o de realizar algumas modificações no sistema de ensino superior implantado após 64; de livrá-lo de parte de seus mecanismos retrógrados e autoritários; de eliminar certos aspectos que encarnam sua vocação privatista e mercantilista; sem abalar porém seus fundamentos. Tais propostas podem ser classificadas em seis grupos, segundo as metas que procuram atingir:

1 - Liberar as instituções de ensino das normas autoritárias a que estão submetidas:

A comissão sugere que se estabeleça a sistemática de orçamentos globais para as Universidades conferindo-lhes justo direito, há muito reivindicado, de distribuírem autonomamente seus recursos internos, e sugerindo que essa distribuição envolva "a participação efetiva de todos os segmentos da comunidade acadêmica". Embora proponha a elaboração d listas tríplices, libera as instituições para que estabeleçam a forma de eleição de seus dirigentes e de composição do órgãos colegiados, o que significa revogar as leis federais que hoje impedem eleições diretas e que limitam a participação estudantil nos órgãos de decisão a um máximo de 1/5. Propõe a reformulação dos estatutos universitários, através "colegiados especiais,' em que participem, além dos membros dos atuais conselhos superiores, representantes de alunos servidores e professores. Também no campo pedagógico, em que as leis atuais exigem a aplicação do sistema de créditos, alvo de constantes criticas, confere autonomia para que as escolas optem pelo sistema que lhes parecer mais adequado. Prevê ainda que se reavalie em cada Universidade o curso básico que é obrigatório, apesar de considerá-lo inconveniente em muitas instituições.

2 - Estabelecer alguns critérios de funcionamento para as escolas particulares:

A comissão propõe que as mantenedoras "respeitem" a autonomia das instituições a eles subordinadas. Estabelece participação das "partes interessadas" nos estudos que determinam a cada semestre os reajustes das mensalidades. E veta a contratação de professores por hora-aula, prática que é hoje universalizada e que leva à redução drástica da qualidade dó ensino.

3 - Introduzir a prática de avaliação de desempenho nas escolas públicas:

A comissão não chegou a propor qualquer forma de avaliação de desempenho. Chamou a atenção para sua necessidade. Afirma, por exemplo, que apenas 1/4 da carga horária dos professores contratados em regime de período integral é ocupada com atividades de ensino; e que as horas restantes, teoricamente destinadas à orientação de alunos, pesquisa, à extensão e à prestação de serviços, muitas vezes não são cumpridas devido justamente à escassa produção pesquisa e à quase inexistência de serviços de extensão.

4 - Canalizar certos recursos para o ensino. público:

A comissão sugere alguns dispositivos para tanto. Propõe que a remessa de divisas feita pelas empresas multinacionais a suas matrizes sob a forma de royalties e de pagamento de contratos de assistência técnica seja taxada em 5%. Os recursos arrecadados serão aplicados na pesquisa científica e tecnológica em instituições de excelência. Defende também a permissão para que as empresas transformem parte de seu imposto a pagar em doações para as Universidades, e a prioridade para os hospitais-escola na composição do orçamento do INAMPS.

5 - Introduzir pequenas modificações nas atuaisrelações de ensino e trabalho:

Entre outras medidas, a comissão pretende que o ingresso na carreira docente se faça sempre por concurso público Propõe a instituição do semestre sabático, através do qual os professores podem, após seis semestres de trabalho regula dedicar o sétimo a atividades de pesquisa, de extensão, ou de aperfeiçoamento. Sugere a criação de um sistema desenvolvimento de recursos humanos para os servidores. Quanto aos estudantes, propõe a extensão até o 3 grau dos serviços de assistência prestados pela FAE, bem como o apoio material do Ministério a atividades científico-culturais promovidas por entidades estudantis, como os Encontros Nacionais de Cursos; defende também a existência efetiva nas escolas de instalações destinadas à prática esportiva, além de um programa nacional de incentivos às atividades cultun e políticas dos estudantes que inclua um evento anual expressivo de sua produção artístico-cultural.

Finalmente, a comissão propôs que seja redefinido o papel e modificada substancialmente a composição do conselhoFederal de Educação. É a medida mais importante e a que vem alcançando maior repercussão. O Conselho, cuja totalidade dos membros é nomeada por livre escolha do Presidente da República tornou-se, a partir de 1964, um importantíssimo sustentáculo pra a implantação da política educacional do regime militar e para manutenção dessa política nos dias de hoje. Facilitou e estimulou a multiplicação das escolas particulares, fazendo vistas grossas às precaríssimas condições de ensino que oferecem. Aprovou repetidos pareceres procurando demonstrar a justeza e viabilizar a cobrança de mensalidades nas escolas públicas. Serviu e serve de obstáculo à democratização de inúmeras instituições, vetando estatutos e regimentos que indicavam este sentido.

A comissão propõe uma alteração na forma de compor o CFE que pode abalar seu caráter reacionário. Sugere que seus membros, ainda nomeados pelo Presidente da República, passem a ser escolhidos respeitando alguns critérios que reúnam cena representatividade: dez dos membros serão representantes das Universidades, escolhidos a partir de listas tríplices elaboradas por um colégio eleitoral composto por elas; oito serão indicados a partir de listas tríplices elaboradas pelas sociedades científicas de âmbito nacional; quatro representarão as escolas isoladas; quatro o ensino de 1 e 2 graus e quatro serão nomeados a partir de listas preparadas por entidades ligadas à educação: UNE, ANDES, FASUBRA e CPB.

Que conclusões tirar e que atitude adotar diante desse primeiro conjunto de medidas que a comissão sugere? Seria correto desprezar-lhes o valor, deixando de reconhecer nelas qualquer aspecto positivo? Tudo indica que não. Elas encarnam opiniões e propostas que foram durante muito tempo sustentadas pela comunidade universitária, que ainda conservam seu conteúdo democrático, que ainda representam avanços, que levam algumas modificaçoes positivas no atual modelo de ensino superior.

Tanto é assim que enfrentam desde já obstinada resistência conservadora, que parte de elementos da própria Comissão. Dois de seus membros, Dom Lourenço de Almeida Prado e Romeu Ritter dos Reis, fizeram, aliás, questão de expressar publicamente suas discordâncias, em "declarações de voto", que acompanham o Relatório Final: protestam contra qualquer participação da comunidade universitária na escolha dos dirigentes da Universidade e contra a sugestão "infundada e leonina" de submeter as escolas isoladas a algum tipo de controle. Mais recentemente, foi a vez do jornal "O Estado de São Paulo", defensor convicto da privatização do ensino e crítico fervoroso de qualquer democratização da estrutura universitária, pronunciar-se asperamente contra as mudanças pretendidas no Conselho Federal de Educação.

Coerentes com seu posicionamento histórico, as entidades e os indivíduos progressistas precisam assumir prontamente a defesa de suas idéias que foram incorporadas pela Comissão. Devem denunciar as articulações que surgem e que se ampliarão visando engavetar e esquecer estas idéias. Precisam, mais que nunca, continuar a luta para que nosso sistema de ensino superior mude para adaptar-se aos reais interesses do país e do povo. Mas ao fazê-lo precisam estar atentos também para as insuficiências, as lacunas e os equívocos do trabalho da Comissão, que podem ter conseqüências graves.

III ... E onde a Comissão não quis mexer

Algumas das medidas agora propostas possuem méritos indiscutíveis. Pode-se dizer que procuram - e em certa medida conseguem - limpar a Universidade brasileira de seu "entulho autoritário". Mas em seu conjunto elas rigorosamente não alteram duas das características mais marcantes e ao mesmo tempo mais retrógradas e nocivas, de nosso sistema de ensino superior.

1. Nada para deter a privatização.

A primeira destas características é a privatização acentuada de nossa Universidade. Por serem eles próprios partidários de um sistema de ensino superior baseado na iniciativa de grupos privados, e por terem firmado com agências internacionais acordos de óbvias tendências privatizantes, os governos militares transformaram, ao longo de 20 anos, o perfil de nossa Universidade no que diz respeito ao seu sistema de financiamento. Ao mesmo tempo em que reduziam substancialmente os investimentos com Educação (as verbas para o MEC despencaram de 11% do orçamento da União em 1965 para 4,8% em 1981), estes governos concederam inúmeras e imensas facilidades para que as escolas particulares então existentes se expandissem; para que muitas outras viessem a se instalar; para que todas pudessem extrair vultosos lucros da atividade no ensino, ao arrepio da própria legislação. E ainda liberaram tais escolas de uma regulamentação competente ou de uma fiscalização efetiva que assegurasse a existência de condições mínimas de funcionamento. Resultado: se em 1964 a rede particular era responsável por menos de 40% das matriculas no ensino superior, esta participação havia saltado para 63% em 1983.

Imposta à revelia da maior parte da comunidade universitária, esta política de privatização teve conseqüências extremamente graves. Ela foi responsável, antes de mais nada, pelo rebaixamento sensível da qualidade de ensino, pesquisa e extensão. A rede particular, onde concentra-se a maior parte do estudantado, oferece duas vezes menos professores por aluno que a rede pública, e realiza apenas 2% da pesquisa científica desenvolvida no país. Não é só: no interior da rede particular predominam as 'faculdades isoladas", responsáveis por 69% de suas matrículas. Em tais faculdades, salvo raras exceções, os professores são contratados por horas-aula e não prestam sequer atendimento aos estudantes; não há laboratórios ou bibliotecas; a comunidade universitária não exerce qualquer influência nas decisões administrativas ou pedagógicas e, mais que isso, é alvo de freqüentes perseguições, inquéritos, expulsões e demissões.

Além de arrasar o nível geral de ensino a privatização penalizou especialmente os estudantes de mais baixa renda, constituindo-se num mecanismo de injustiça e discriminação social. Ela elitizou como nunca as Universidades públicas, fechando suas portas à maioria da população. Como o número de vagas oferecidas nessas Universidades cresceu sempre menos que o de candidatos, estas vagas tornaram-se extremamente concorridas e só as alcançam, via de regra, os estudantes de melhores condiçoes econômicas, aqueles que puderam pagar por um ensino de melhor qualidade no segundo grau. Aos outros, resta recorrer às faculdades particulares, onde terão acesso a um ensino de baixo nível que lhes oferecerá perspectivas mais restritas de sucesso profissional, e onde estarão submetidos ao pagamento de pesadas mensalidades.

Tudo isso, porém não foi suficiente para que a Comissão enxergasse na privatização do ensino superior um problema a ser enfrentado. Sem preocupar-se em estudar séria e aprofundadamente as distintas condições de ensino, pesquisa e extensão em cada um dos sistemas; sem querer abordar as conseqüências sociais da presença amplamente majoritária das escolas pagas; e utilizando-se abundantemente de dados superficiais ou incompletos, o Relatório Final, no capítulo em que trata do assunto procura mostrar-se isento de um posicionamento em avor de um dos sistemas de ensino, defendendo a "convivência" entre ambas. Recomenda que a nova Constituição "assegure a responsabilidade do Estado pela educação em todos os níveis", e que ao mesmo tempo "mantenha a liberdade de ensino e o pluralismo de pensamento, possibilitando a iniciativa particular nos diferentes ramos de ensino".

Seria útil perguntar: como assegurar a "convivência" entre os sistemas de ensino em nosso pais, ameaçada e desequilibrada precisamente pela privatização? Basta manter os direitos e privilégios de que goza a iniciativa particularou é preciso indicar medidas concretas para que o Estado efetivamente exerça o direito e cumpra a obrigação de manter e ampliar a rede pública de ensino? E como assegurar a "liberdade de ensino" sem expandir a rede pública, de modo que o acesso ao conhecimento científico seja um direito de amplos contingentes da população e não privilégio de uma pequena minoria.

Sem comprometer-se em favor da recuperação da rede pública e sem reconhecer que ela precisa recobrar a condição de rede fundamental e majoritária na educação superior brasileira, a Comissão acaba enveredando por caminhos perigosos. Cedendo aos argumentos falaciosos sustentados pelas escolas particulares, apresenta com destaque, ainda no capítulo relativo a ensino público e ensino particular, a proposta de institucionalizar, através da legislação, a concessão de recursos públicospara manutenção de estabelecimentos particulares de ensino. O relatório afirma que estes estabelecimentos encontram-se com situação financeira "deteriorada" e ressalva que tais recursos destinar-se-iam apenas àqueles "reconhecidos pelo seu padrão de qualidade". Mesmo dourada, a pílula é muito difícil de engolir. Primeiro, porque à situação financeira deteriorada das escolas corresponde, em quase todos os casos, a expansão astronômica do patrimônio de suas "mantenedoras" e o enriquecimento fabuloso de seus proprietários, que não cabe ao governo sustentar. Segundo, porque as escolas particulares já recebem importantes incentivos oficiais, através da isenção completa de impostos e porque esses incentivos são ainda maiores nas escolas com "elevado padrão de qualidade", cujos projetos de pesquisa são quase integralmente sustentados por agências governamentais. Terceiro, e mais importante, porque não parece de bom tom desviar dinheiro público para negócios particulares na educação enquanto a rede oficial, além de minoritária e insuficiente, permanece sujeita a inúmeros e graves problemas causados pela falta de recursos.

2. Uma visão incorreta acerca da autonomia universitária.

A conquista de uma Universidade democrática e progressista, capaz de contribuir nos campos científico, cultural e tecnológico com a conquista da soberania nacional e de melhores condições de vida para a população exige, além do combate à privatização, uma outra providência; a revisão geral dos ptogramas de ensino, pesquisa e extensão.

Tais programas orientam-se, em boa parte dos casos, para o atendimento das necessidades dos monopólios e da parcela reduzida da população que hoje pode ter acesso aos serviços oferecidos por profissionais universitários. Estimula-se a especialização, na maior parte das vezes em disciplinas que não correspondem às verdadeiras necessidades nacionais. O resultado é que os investimentos feitos pela população revertem em benefício de uma minoria. Esta realidade é facilmente verificada em cursos como o de medicina - em que se priorizam os processos curativos aos preventivos, bem como a formação de profissionais especializados em ramos a que têm acesso apenas os ricos, em detrimento daqueles capacitados a combater doenças endêmicas e a desenvolver sua prevenção. Com efeito, nosso país reúne alguns dos mais renomados centros mundiais de cirurgias plásticas, enquanto boa parte da população padece sem assistência de Mal de Chagas, de esquistossomose ou de tuberculose. Já nas áreas de engenharia civil e arquitetura hágrande destaque para a construção de grandes obras, na maior parte das vezes desvinculadas das reais necessidades do país, e às residências luxuosas, enquanto se relega a segundo plano a construção de moradias populares de baixo custo e boa qualidade, para solucionar o déficit habitacional. Os cursos de agronomia, além de estarem voltados para as culturas de exportação, não costumam preocupar-se com o desenvolvimento de fertilizantes, de defensivos e de técnicas condizentes com a agricultura brasileira. Continuamos dependentes de práticas e produtos importados e inadequados às nossas condições.

A revisão democrática e a transformação dos programas universitários exige, em primeiro lugar, a reformulação dos currículos mínimos. Através de estudos rigorosos e profundos, com participação da comunidade universitária e da sociedade, é preciso reformulá-los, sintonizando-os com as necessidades do país e da maioria da população. Além disso, eles precisam ser realmente mínimos,de modo a permitir que em cada Universidade a carga horária seja completada com matérias e disciplinas adaptadas às diferentes realidades regionais e às distintas vocações de cada instituição.

O entendimento da Comissão é diferente. O Relatório Final, confundindo autonomia universitária com independência, propõe que simplesmente sejam extintos os currículos mínimos, ficando as instituições desobrigadas de seguir qualquer regulamentação curricular.

Tal proposta é inaceitável. Primeiro, porque a reformulação democrática dos currículos universitários capazes de contribuir com o avanço do país é um direito e uma obrigação de toda a sociedade, que não pode ser "assumido exclusivamente" por professores, alunos e funcionários. Segundo, porque ela significaria, na prática, destruir uma das únicas formas de regulamentação e fiscalização da maioria das escolas, com enormes prejuízos para ojá reduzido nível de ensino.

Por último, o Relatório Final parece conceder aos dirigentes das Universidades públicas maior liberdade para estabelecer contratos com organismos externos às instituições sem discriminar que tipos de contratos sejam estes. É mais uma proposta extremamente temerária; na sua esmagadora maioria estes acertos têm servido para que grandes grupos econômicos, particularmente multinacionais penetrem na Universidade pública, fornecendo-lhes alguns recursos mas vinculando, em contrapartida, a produção científica a seus interesses particulares. Na prática, é um processo de privatização da rede pública, que pode ser mantido ou mesmo acelerado se implementada a proposta da Comissão.

Diretoria da UNE - Fevereiro de 1986 <