A educação superior brasileira à luz da teoria

Apresentação ao Forum da Educação Superior da Academia Brasileira de Ciências e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 27 de fevereiro de 2024

Queria agradecer à Academia Brasileira de Ciências e à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência pela oportunidade de abrir este fórum sobre a educação superior Brasileira, com o tema sugerido de “um resgate histórico sobre o ensino superior no Brasil”. Conhecer a história é essencial para compreender o sistema de educação superior que temos hoje, não somente para recuperar valores e experiências passadas que possam servir de ensinamentos, mas sobretudo para entender as concepções e instituições com as quais convivemos muitas vezes sem nos darmos conta de onde vieram, e que poderiam ser diferentes, como de fato são em muitas outras partes do mundo. Com o pouco tempo que me é dado, me pareceu oportuno interpretar esta história à luz de alguns conceitos centrais do campo de estudos sobre educação superior, que aqui estou chamando de “teoria” à falta de melhor termo.

As universidades, como sabemos, datam da Idade Média, mas uma de suas características centrais, no mundo moderno, é o processo de transformação das antigas instituições de elite em amplos sistemas de educação de massas, analisado nos textos clássicos do sociólogo norte-americano Martin S. Trow (Trow 1972; Trow 1973). Trow foi um veterano da Segunda Guerra Mundial, e completou seus estudos superiores graças aos benefícios proporcionados pela legislação que ficou conhecida como “G.I. Bill”, que abriu oportunidades de estudo superior para milhões de ex-soldados americanos como ele. A massificação da educação superior nos Estados Unidos, na verdade, vem do século 19, com a legislação conhecida como a “Morris Act”, de 1862, que levou à criação dos “Land Grant Colleges”, uma grande rede de escolas superiores que se desenvolveram ao lado de instituições tradicionais como Harvard e Princeton, criadas à imagem das universidades inglesas, e outras como a Johns Hopkins, que procurou emular as universidades de pesquisa alemãs.

A experiência americana é importante para nós porque a última reforma do ensino superior brasileiro data de 1968, quando se decide trazer para o país o modelo norte-americano das universidades de pesquisa, em substituição ao antigo modelo de faculdades profissionais criadas pelos portugueses. As antigas faculdades brasileiras tinham por função formar e certificar pessoas para o exercício das profissões de nível superior, como o direito, a medicina e a engenharia, e os professores eram bacharéis que formavam seus alunos à sua imagem e semelhança. No novo formato, os professores universitários deveriam ser doutores pesquisadores, trabalhando em tempo integral, para os quais o ensino e a pesquisa seriam indissolúveis, e que formariam profissionais de alto nível e pesquisadores como eles. Apesar de ter sido criada pelo governo militar, a reforma de 1968 foi em geral bem recebida nos meios acadêmicos brasileiros, porque ela compartilhava muitas das concepções que haviam inspirado a criação da Universidade de São Paulo em 1934 e da Universidade de Brasília em 1962.

Em seus escritos, Martin Trow mostra como os sistemas de educação superior se transformam quando deixam de ser instituições de elite e passam a ser de massa, que atendem a mais de 15% dos jovens, e finalmente universais, quanto atendem à metade ou mais. Nos sistemas de elite, o acesso é limitado a poucos, a principal função é a formação do caráter e a preparação para posições de elite, e existe consenso sobre o papel das universidades na manutenção da hierarquia de conhecimentos e da alta cultura na sociedade. Nos sistemas de massa, o acesso se amplia, a educação superior passa a ser vista como um direito de quem consegue passar pelos processos seletivos, a formação técnica e profissional adquire mais importância, e o predomínio intelectual das antigas elites passa a ser disputado pela pressão dos grupos de interesse das diversas corporações profissionais No sistema universal, a educação superior passa a ser vista como um direito de todos, o peso da meritocracia é disputado, e os critérios de acesso e padrões de qualidade passam a depender das características dos diferentes grupos sociais e das demandas do mercado de trabalho.

A análise de Trow é mais complexa do que isto, e uma das críticas que tem recebido é que ela está baseada sobretudo na experiência inglesa e norte-americana.  Mas a concepção central, de que os sistemas vão se ampliando e se tornando mais complexos e contraditórios, continua válida. É importante notar que, quando o sistema de educação superior se amplia, as antigas universidades não são abolidas, mas se modernizam e passam a coexistir com novas instituições criadas com outros objetivos e por diferentes agentes. Em maior ou menor grau, todas as sociedades modernas em que a educação superior se desenvolveu têm universidades de pesquisa, faculdades para a formação de profissionais liberais, instituições de formação de professores para a educação básica, institutos dedicados à formação de técnicos especializados, colégios de formação geral, e outras dedicadas à educação continuada.  São instituições publicas ou privadas, de orientação leiga ou religiosa, e administradas por governos nacionais, locais, comunidades de diferentes naturezas e  grupos privados.

Quando, em 1968, o Brasil tenta copiar o modelo americano, nosso sistema de educação superior ainda era de elite, com menos de 200 mil estudantes, enquanto o sistema americano já era massificado. Isto, aparentemente, passou desapercebido tanto pelos intelectuais que, no Conselho Federal de Educação, lideraram a reforma de 1968 – Newton Sucupira, Anísio Teixeira, Maurício Rocha e Silva, Valnir Chagas – quanto pelos  consultores americanos trazidos pelo famoso acordo Mec-Usaid, que não atentaram para a grande base do sistema norte-americano formada pelos community colleges e e as faculdades profissionais.

 Mesmo em condições ideais, seria muito difícil transformar as antigas faculdades em universidades de pesquisa. Houve um esforço importante neste sentido,  não só na mudança de legislação, abolindo as cátedras, criando departamentos e institutos, etc., como também com a criação dos programas de pós-graduação e contratação de professores em regime de tempo integral, além dos investimentos em pesquisa que vinham da área de ciência e tecnologia e eram destinados em grande parte aos novos departamentos universitários. Mas, com a expansão da demanda, estas iniciativas foram rapidamente atropeladas por professores temporários que buscavam estabilidade nas universidades públicas, estudantes “excedentes” que passavam nas provas seletivas, mas não conseguiam vagas e uma procura por certificações universitárias que era  muito maior do que as universidades públicas poderiam atender.  O resultado foi que o modelo da universidade da pesquisa ficou inscrito na legislação, que até hoje persiste, com a mantra da “indissolubilidade do ensino, pesquisa e extensão’ escrita na lei, ao mesmo tempo em que, para a sociedade como um todo, ainda predomina a ideia de que as universidades são, sobretudo, coleções de faculdades  destinadas à formação profissional.

No vácuo, o sistema privado expandiu, frustrando as tentativas do governo federal de ajustá-lo às regras da reforma. Hoje, mais de 75% da matrícula do ensino superior brasileiro é privada, e a grande maioria das instituições públicas têm  o formato e os custos das universidades de pesquisa, mas na prática funcionam como as antigas faculdades tradicionais. Com 20% da população entre 18 e 24 matriculada no ensino superior, o Brasil tem hoje um sistema de educação superior de massas, com a diversidade típica para este nível, mas sem uma legislação que reconheça e lide de forma clara com a diversidade e pluralidade institucional (Schwartzman, Silva and Coelho 2021). No papel, é um sistema igualitário, em que todos os títulos são equivalentes, todos os professores são doutores e pesquisadores, e todas as instituições podem dar os títulos que queiram, desde que cumpram os critérios de qualidade, e a universidade é para todos. Na prática, é um sistema profundamente desigual, que ainda exclui 80% dos jovens, em que metade dos alunos nunca terminam seus cursos, e que absorvem um volume crescente de recursos públicos e privados. Comparado com outros países de nível socioeconômico semelhante, o Brasil é o país com uma das menores taxas de matrícula no ensino superior, que tem a maior proporção de estudantes no setor privado,  e em que o custo per capita dos estudantes do setor público é o mais alto. O Brasil tem também um amplo sistema de cursos de pós-graduação altamente subsidiado e regulado com a justificativa de que é o celeiro dos doutores e pesquisadores, quando, em grande parte, se transformou em um nível adicional de formação profissional, compensando as debilidades dos cursos iniciais para uma elite da elite.

O segundo conceito que eu gostaria de trazer é o de capital humano, desenvolvido sobretudo por economistas como Theodore Schultz  e Gary Becker,  (Becker 1962; Becker 1973; Schultz 1961; Schultz 1970) em contraste com as teorias credencialistas de autores como Randall Collins e Pierre Bourdieu (Bourdieu and Passeron 1966; Bourdieu and Passeron 1970; Collins 1979) .   Segundo os primeiros, existe uma forte relação entre educação e desenvolvimento econômico – os países ricos têm populações mais educadas, as pessoas mais educadas ganham mais, e isto justifica que pessoas e governos invistam recursos em educação.  Segundo os outros, o que a educação faz é, sobretudo, reproduzir as desigualdades sociais já existentes, com os filhos dos ricos e mais educados herdando os privilégios dos pais, e as instituições de ensino se dedicando sobretudo a distribuir credenciais que garantem acesso a posições de prestígio, renda  e poder. Para os primeiros, a expansão da educação superior leva a mais igualdade social, criando oportunidades. Para os segundos, seu principal resultado é aumentar a competição por credenciais,  a um custo crescente para todos.

A reforma do ensino superior de 1968 veio acompanhada, sobretudo na década de 70, com transformações no sistema de ciência e tecnologia do país e a criação do sistema de pós-graduação, como parte de um projeto nacionalista de desenvolvimento que ficou conhecido como o “milagre brasileiro”. Foi um projeto de curta duração, que entrou em crise juntamente com o regime militar, e desde então a economia tem passado por altos e baixos, ao mesmo tempo em que a sociedade se urbanizava e o sistema educacional se expandia. Neste processo, a demanda por recursos públicos para a educação se ampliou, justificada sobretudo pelas teorias de capital humano. A pós-graduação, concebida como mecanismo de formação de professores doutores para o sistema universitário e pesquisadores de alto nível, se transformou, em parte, em um sistema altamente subsidiado de qualificação profissional e distribuição de credenciais para um segmento de estudantes mais privilegiados do setor público (Schwartzman 2022). O número de pessoas com diplomas superiores aumentou, títulos universitários estão associados a rendas bem mais altas, mas, no agregado, a produtividade da economia não aumentou, e a desigualdade não diminuiu. Ainda que os dados sejam precários, existe a percepção que grande parte dos cursos superiores agregam pouco a seus alunos em termos de competências. Tudo isto faz com que se questione as políticas de subsídio indiscriminado à expansão do ensino superior, que até o final do século XX se limitava ao setor público, mas passou a beneficiar o setor privado através do crédito educativo subsidiado e do Prouni.

Sem entrar no cipoal de dados e teorias em apoio a cada um dos lados, é possível observar que os dois processos coexistem em diferentes graus. Difícil saber se a galinha ou o ovo vem primeiro, mas, quando a população se urbaniza, a economia cresce, o consumo e os serviços se ampliam, a necessidade de pessoas qualificadas aumenta, e a educação se torna um canal importante de mobilidade e ascensão social.  Se há estagnação, é difícil pensar que a educação, sozinha, possa mudar as coisas, e a distribuição de credenciais tende a predominar sobre a criação de competências e recursos humanos. As teorias de recursos humanos e as do credencialismo, ou da reprodução, têm sido usadas dos debates públicos sobre o financiamento da educação superior, mas podem também servir para desenvolver políticas públicas mais elaboradas que permitam distinguir os investimentos que contribuem mais efetivamente para o desenvolvimento de recursos humanos e equidade e outros que simplesmente alimentam ilusões e subsidiam a reprodução da desigualdade social.

Isto nos permite introduzir um terceiro conceito, que é  do academic drift,  ou viés acadêmico, que não está associado a nenhum autor específico, mas que está muito presente sobretudo na discussão europeia sobre ensino técnico e profissional (Harwood 2010; Kyvik 2007; Neave 1979). O termo descreve a tendência de instituições de ensino de orientação prática e aplicada em adotar as características próprias de instituições voltadas à ao conhecimento científico e de pesquisa. É um movimento contrário ao da diferenciação institucional descrita por Martin Trow. Na Europa, o exemplo mais conhecido é o da transformação das antigas escolas politécnicas em universidades, como no Reino Unido. Na raiz desta tendência está a hierarquia de prestígio e reconhecimento que ocorre nos sistemas de ensino, descrito pelas teorias credencialistas, que faz com que as instituições universitárias tenham mais recursos e os diplomas universitários sejam também mais valorizados no mercado de trabalho. No Brasil, as antigas Faculdades de Filosofia foram inicialmente concebidas como instituições de formação de professores para o ensino médio, tal como pretendido por um dos fundadores da Universidade de São Paulo, Fernando de Azevedo. Mas terminaram sendo em parte capturadas pelos professores que almejavam o status mais prestigioso de cientistas, o que explica o lugar secundário que as licenciaturas para a formação de professores ocupam hoje nas universidades públicas. O exemplo recente mais notório é o do sistema de Institutos Federais, que se originaram de escolas técnicas de nível médio e hoje desenvolvem cursos de bacharelado, licenciaturas e pós-graduação com pouca ênfase na formação tecnológica. Um outro exemplo de academic drift é a transformação de profissões técnicas de nível médio ou pós-secundário, como por exemplo a enfermagem ou o serviço social, em profissões de nível superior, com seus próprios cursos de pós-graduação, sociedades científicas e revistas especializadas. Faz parte da mesma lógica a resistência  à diversificação do ensino médio e expansão da educação técnica (Schwartzman 2011a). Em sociedades mais complexas, esta suposta hierarquia entre a cultura universitária e a formação prática é menos acentuada, e a produção de conhecimentos e formação profissional se dá de forma mais descentralizada (Gibbons et al. 1994). No caso do Brasil, no entanto, como o sistema educacional cresceu mais rapidamente do que a economia, existe uma forte pressão para cima que acaba colocando a todos na média, e dificulta a valorização da especialização institucional e divisão do trabalho. O sistema de avaliação da educação superior brasileira, o SINAES, criado em 2004, ao colocar todos os cursos e instituições em um “ranking” único, contribui para fortalecer esta tendência (Schwartzman 2011b).

O último conceito que gostaria de trazer é o do “triângulo de Clark”, proposto pelo sociólogo norte-americano Burton C. Clark (Clark 1979; Clark 1983), que tem a ver com a maneira pela qual os sistemas de educação superior são coordenados.  Segundo ele, existem três polos que atuam em graus diferentes em todos os sistemas, o Estado, o mercado e a comunidade acadêmica (que ele chama também de “oligarquia”). A universidade clássica alemã talvez seja o melhor exemplo da parceria entre estado e oligarquia, com pouco espaço para o mercado. A França talvez seja o melhor exemplo de preponderância do Estado, enquanto nos Estados Unidos há forte preponderância do mercado. É fácil ver que cada um destes polos traz maneiras próprias de gerir as instituições de ensino, mais formais e burocráticas quando pelo Estado, com mais peso para as comunidades acadêmicas e profissionais quando pelas oligarquias, e mais empresariais quando pelo mercado.  No caso do Brasil, existe uma constante competição e acomodação entre os três polos, com o setor privado fortemente orientado pelo mercado, o setor público fortemente controlado pela burocracia governamental, as instituições mais intensivas em pesquisa com presença mais marcante das oligarquias acadêmicas, e as demais instituições públicas com forte presença das corporações profissionais.

Cada país é único, mas a educação superior em praticamente todos os países atuais se organizou conforme os modelos clássicos da Europa Ocidental e Estados Unidos, descritos na obra clássica de Joseph Bem-David  (Ben-David 1977), e cresceu e se diferenciou conforme a sequência descrita por Trow. O entendimento da história da educação brasileira, e sua situação atual, têm muito a ganhar de uma perspectiva teórica que contempla o processo de diferenciação descrito por Martin Trow, as tensões entre os papéis de formação de capital humano e credencialismo, as pressões trazidas pelo viés acadêmico que afeta as instituições de ensino e as profissões, e a competição entre formas e culturas diferentes de coordenação institucional descritas no triângulo de Clark.  São temas amplos, que afetam o ensino superior de formas diferentes em cada lugar, e que ajudam a pensar sobre o destino que queremos dar à educação superior no país.

Referências

Becker, G. 1962. “Investment in Human Capital: A Theoretical Analysis.” The Journal of Political Economy 70(5):9-49.

Becker, Gary Stanley. 1973. Human capital -A Theoretical and Empirical Analysis, with Special Reference to Education. Chicago and London: The University of Chicago Press.

Ben-David, Joseph. 1977. Centers of learning : Britain, France, Germany, United States : an essay. New York: McGraw-Hill.

Bourdieu, Pierre, and Jean Claude Passeron. 1966. Les Héritiers, les étudiants et la culture. Paris,: éditions de Minuit.

—. 1970. La reproduction; éléments pour une théorie du système d’enseignement. [Paris]: éditions de Minuit.

Clark, Burton R. 1979. “The many pathways of academic coordination.” Higher Education 8(3):251-67.

—. 1983. The higher education system academic organization in cross-national perspective. Berkeley: University of California Press.

Collins, Randall. 1979. The credential society. New York: Academic Press.

Gibbons, Michael, Martin Trow, Peter Scott, Simon Schwartzman, Helga Nowotny, and Camille Limoges. 1994. The new production of knowledge – the dynamics of science and research in contemporary societies. London, Thousand Oaks, California: Sage Publications.

Harwood, Jonathan. 2010. “Understanding academic drift: On the institutional dynamics of higher technical and professional education.” Minerva 48(4):413-27.

Kyvik, Svein. 2007. “Academic drift: a reinterpretation.” Pp. 333-38 in Towards a cartography of higher education policy change: A Festschrift in Honour of Guy Neave, edited by J. Enders and F. van Vught. Enschede: Center for Higher Education Policy Studies.

Neave, Guy. 1979. “Academic drift: Some views from Europe.” Studies in Higher Education 4(2):143-59.

Schultz, Theodore W. 1961. “Investment in human capital.” The American Economic Review 51(1):1-17.

Schultz, Theodore William. 1970. Investment in human capital; the role of education and of research. New York,: Free Press.

Schwartzman, Simon. 2011a. “O Viés Acadêmico na Educação Brasileira.” Pp. 254-69 in Brasil: A Nova Agenda Social, edited by Edmar L. Bacha and Simon Schwartzman. Rio de Janeiro: LTC.

—. 2011b. “Para além do SINAES.” in VI reunião da Associação Brasileira de Avaliação Educacional, Mesa Redonda sobre “Para além do SINAES: quais as novas possibilidades de avaliação da educação superior?”. Fortaleza.

—. 2022. “Pesquisa e Pós-Graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?Estudos Avançados 36(14):227-54

Schwartzman, Simon, Roberto Lobo Silva, and Rooney R.A. Coelho. 2021. “Por uma tipologia do ensino superior brasileiro: teste de conceito.” Estudos Avançados 35:153-86.

Trow, Martin. 1972. “The expansion and transformation of higher education.” International Review of Education:61-84.

—. 1973. Problems in the transition from elite to mass higher education. Berkeley, CA: Carnegie Commission on Higher Education.

A CAPES e suas avaliações

Concordo com Robert Verhine, em sua resenha do livro de André Brasil sobre o sistema brasileiro de avaliação da pós-graduação, de que se trata de uma contribuição importante para o entendimento do tema. Embora tenha também lido o livro, este comentário não pretende ser uma outra resenha, mas uma reflexão mais geral sobre a questão da pós-graduação brasileira e o sistema da CAPES.

Minha principal observação é que os diferentes aspectos e modalidades da avaliação, apresentados no livro e mencionados na resenha, são tratados sobretudo como se fossem questões técnicas, quando na verdade elas refletem concepções diferentes sobre temas como a autonomia universitária, o papel do governo no apoio e ou indução da qualidade e produtividade dos programas de pesquisa e pós-graduação, e inclusive sobre a própria natureza dos cursos de pós-graduação.  Isto aparece com clareza na parte em que se contrastam os sistemas holandês e brasileiro de avaliação. O sistema holandês tem como base a autonomia das universidades, que competem entre si mostrando suas qualidades e com isto atraindo estudantes, recursos públicos e privados etc.  O governo participa tornando explícitos determinados padrões, e financiando diferentes programas ou instituições conforme seus resultados. O modelo brasileiro é hierárquico, top-down, e tem por objetivo controlar e regular o sistema.

É importante lembrar que este modelo foi criado na década de 1970, concebido inicialmente como um mecanismo para a formação de professores pesquisadores para as universidades que estavam sendo reformadas segundo o modelo norte-americano das “research universities” e para os centros de pesquisa que estavam sendo estruturados segundo as políticas do Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da época. Data daqueles anos a distinção entre a pós-graduação “estrito senso”, para a formação de pesquisadores, e “lato senso”, para qualificação profissional mais avançada para pessoas com diplomas de nível superior . Com o tempo, ao se ampliar, o setor estrito senso passou a incorporar cada vez mais pessoas interessadas em obter uma qualificação profissional ou um título que pudesse levar a uma promoção e maior salário na carreira, e não se qualificar como professor pesquisador. Isto ocorreu sobretudo nos mestrados, concebidos inicialmente como substitutos provisórios para os doutorados que o país ainda não tinha, mas que se tornaram permanentes. Além disto, na década de 90 a CAPES começou a incentivar a criação de “mestrados profissionais” que se afastavam ainda mais do conceito original de pós-graduacão estrito senso.

O resultado foi que se estabeleceu, na pós-graduação, uma dualidade semelhante à que havia também na graduação:  por um lado, um sistema regulado, subsidiado, baseado quase totalmente em instituições públicas, e por outro um sistema aberto, desregulado e pago, baseado quase que totalmente no setor privado. Hoje, o setor público tem cerca de 450 mil estudantes, dos quais 300 mil em programas de mestrado e o privado, cerca de 1.300 mil, segundo os dados da Pnad contínua. Embora, nos extremos, os dois setores sejam muito diferentes, com os doutorados e programas de excelência em pesquisa concentrados no setor público, e a proliferação de cursos de aperfeiçoamento, como os MBAs, no setor privado, existe uma grande área de superposição, sobretudo nos mestrados, que faz com que esta dualidade precise ser revista.

Reconhecendo que a formação para a pesquisa científica havia deixado de ser o objetivo principal da maioria dos programas, a CAPES começou a buscar outros critérios de avaliação além dos relacionados à produção  científica, o que foi tornando o sistema de avaliação cada vez mais complexo, com várias tentativas de combinar diferentes dimensões, mecanismos de avaliação, fontes de dados etc., apresentados no livro e discutidos na resenha de Verhine. Mas a questão fundamental, que precisaria ser discutida, é se já não seria a hora de desmontar este sistema criado meio século atrás e substitui-lo por um sistema semelhante ao que existe na Holanda e outras partes do mundo, em que as instituições oferecem os cursos e programas que consideram mais adequados, e os governos se responsabilizam por manter um marco regulatório amplo e programas específicos de fomento para atividades consideradas prioritárias, sem pretender regular e controlar, no detalhe, o funcionamento das instituições.

O  antigo argumento em defesa do sistema centralizado da CAPES, de que o sistema universitário brasileiro é novo e incipiente, poderia fazer sentido meio século atrás, mas hoje a CAPES é uma anomalia,  sem similar em outros países, e com disfunções importantes. Uma delas é complexidade cada vez maior do sistema de avaliação que procura ainda manter, que se torna cada vez caro de implementar,  difícil de entender e estimula comportamentos conformistas por parte dos programas, muitas vezes mais preocupados com seus conceitos do que com os resultados de seus trabalhos. A outra é a artificialidade da separação entre os dois setores, o público/subsidiado/estrito senso e o privado /pago / lato senso. O terceiro é captura dos sistemas internos de avaliação da CAPES pelas corporações profissionais das diferentes áreas de conhecimento, que faz com que os critérios externos de qualidade (pelo qual os programas de nível 7 deveriam ter um padrão de qualidade internacional, etc.)  sejam constantemente relativizados. O quarto é o cerceamento da autonomia universitária, na criação de programas inovadores de pesquisa, formação avançada e inovação. Outra disfuncionalidade é a inequidade do sistema, já que os alunos dos cursos de pós-graduação, tanto no setor público quanto no privado, provêm de nível social elevado, e não há justificativa para que os do setor público tenham seus cursos subsidiados e recebam bolsas, enquanto os do setor privado tenham que pagar. Hoje, a maior parte dos recursos das agências federais de apoio à pesquisa universitária, CAPES e CNPq, se destina a bolsas de estudo, restando pouco para o apoio à pesquisa propriamente dita. E agora, como seria inevitável, começam as políticas de cotas para o setor estrito senso. Muito parecido com o que já acontece com os cursos de graduação, com um setor público minoritário, subsidiado e controlado, e um setor privado cada vez maior, competitivo e quase totalmente desregulado.

Ao não tratar destas questões mais fundamentais sobre papel do governo, autonomia universitária,  setor privado, espaço para a regulação etc., a discussão sobre avaliação acaba se perdendo em tecnicalidades que na verdade não têm maior importância.  Um exemplo é a questão dos rankings, ou conceitos agregados, de 1 a 7  – por que eles existem e são mantidos no Brasil, mas não na Holanda? Isto tem a ver, claramente, com a regulação top-down do sistema brasileiro, que estimula comportamentos conformistas e acaba, em última análise, perdendo sentido, por causa dos interesses conflitantes das diferentes corporações e a própria complexidade do sistema de indicadores.  Outro é a questão da autoavaliação. Ela é importante para instituições que precisam competir por qualidade em suas diversas dimensões e ante uma ampla clientela de usuários e potenciais financiadores, mas se transforma em um ritual sem relevância se sua única função é atender aos critérios formais estabelecidos pela burocracia reguladora. Não é uma questão “técnica” nem de “cultura acadêmica” enquanto tal, e não há como resolvê-la através de diretrizes ou formulários de um ou outro tipo.

Em conclusão, o que precisa ser entendido é a verdadeira natureza do setor de pós-graduação no Brasil, sua relação com o sistema de pesquisa e inovação (que não são duas faces da mesma moeda) e o papel da CAPES, que não pode continuar sendo o mesmo de meio século atrás. É a partir daí que podemos entender melhor as virtudes e defeitos de seu sistema de avaliação.

Robert E. Verhine: Avaliando a pós-graduação no Brasil

Resenha de Brasil, André, Advancing the evaluation of graduate education: towards a multidimensional model in Brazil. Leiden, Holanda: Universiteit Leiden / ProefschriftMaken, 2023, 378p.

(para um comentário adicional a esta resenha veja a postagem seguinte, A CAPES e suas avaliações)

O modelo nacional de avaliação de programas de pós-graduação da CAPES, implementado em 1980, tem recebido muita atenção da comunidade acadêmica brasileira, especialmente considerando seu profundo impacto no financiamento e na regulação da pós-graduação no país. Enquanto muitos reconhecem que a estrutura da avaliação nacional, aplicada a todos os programas do país em intervalos regulares, tem sido eficaz na promoção da qualidade do programa, outros vêem o esforço de uma forma mais negativa, argumentando, entre outras críticas, que a qualidade educacional é vista de maneira restrita e excessivamente quantitativa, o que interfere na autonomia acadêmica das universidades garantida na Constituição brasileira. Embora muitos artigos tenham contribuído ao debate em curso, nunca houve um livro detalhado dedicado exclusivamente ao tema, até recentemente. Esta ausência na literatura de avaliação foi agora remediada, pelo menos para a comunidade internacional, por um livro que acaba de ser publicado em inglês, intitulado “Avançando a avaliação da educação de pós-graduação: rumo a um modelo multidimensional de educação de pós-graduação”.[1] O livro, que tem quase 400 páginas, é baseado em uma tese de doutorado de autoria de André Brasil, gestor de alto escalão da Diretoria de Avaliação da CAPES.

O livro está dividido em 12 capítulos e aborda detalhadamente a construção e a dinâmica da avaliação nacional, seu impacto na produção acadêmica e na qualidade da aprendizagem, seus pontos fortes e fracos e, por fim, as medidas que devem ser tomadas para seu aprimoramento. O livro conclui apresentando dez princípios que norteiam o modelo de avaliação da CAPES e oferece treze recomendações para seu aprimoramento, que, segundo o autor, foram “meticulosamente delineadas para respeitar os contornos socioculturais distintos do Brasil” (p. 298). Devido  à riqueza de detalhes do livro, a presente resenha não pretende analisar todos os seus muitos aspectos. Em vez disso, o resenhista apresenta elementos-chave que considera mais relevantes para a reforma e melhoria do modelo de avaliação da CAPES atualmente em uso.

Para quem já conhece o modelo CAPES, o capítulo mais interessante do livro é o Capítulo 5, que traz uma análise comparativa dos sistemas brasileiro e holandês de avaliação de programas de pós-graduação, identificando diferenças e semelhanças no que diz respeito à estrutura organizacional, métodos de avaliação e dados, partes interessadas relevantes e grau de transparência. A análise revela que as duas abordagens de avaliação são muito diferentes, refletindo pontos de vista distintos em relação à avaliação, à autonomia universitária e à gestão da educação superior. As universidades holandesas, que datam do século XVI, são muito mais antigas que as congêneres brasileiras, o que significa que a autonomia universitária e a internacionalização estão muito mais firmemente enraizadas nas primeiras do que nas segundas. Diferentemente do Brasil, na Holanda o uso do inglês é enfatizado e a pesquisa é organizada em unidades acadêmicas e não em programas de pós-graduação.

Como o Brasil começou tarde a promover o estudo e a pesquisa sobre a universidade, tem tentado recuperar o tempo adotando uma abordagem central e nacional para garantir a qualidade dos programas de pós-graduação, capaz de causar um impacto rápido e universalizado. Essa orientação centralizada resultou na criação do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) e na concentração da avaliação em órgão governamental nacional. A avaliação tende a ser uniforme, aplicada a todos os programas do país, e tem grandes implicações para as unidades avaliadas, estando diretamente vinculada às políticas regulatórias e de financiamento e desenhada para garantir o funcionamento, a estabilidade e a qualidade do sistema através de uma abordagem hierárquica governamental. No Brasil, o governo “dirige” o desenvolvimento da ciência no país, utilizando a avaliação dos programas de pós-graduação como principal ferramenta de regulação.

Na Holanda, o foco da avaliação está na pesquisa e não nos programas de pós-graduação, e a pesquisa é organizada de acordo com disciplinas e unidades acadêmicas, nas quais estão incluídos programas de doutorado (mas não de mestrado). Ao contrário do Brasil, o estado não possui uma atuação avaliadora na Holanda. Embora as diretrizes sejam fornecidas por organizações não-governamentais nacionais de reitores e de professores universitários, as instituições têm autonomia para definir a sua própria estratégia, organização e escopo de avaliação. Assim, o sistema de avaliação holandês é bottom-up e descentralizado. A avaliação é uma prática interna e participativa realizada com base na identidade, objetivos e estratégias de cada unidade avaliada, tornando o processo predominantemente interno, formativo, contextual e qualitativo. Não foi concebido para controle externo, regulação estatal ou responsabilização. Os protocolos nacionais definem objetivos gerais de avaliação a nível nacional, mas os critérios não são rígidos, padronizados ou obrigatórios. As unidades de investigação têm autonomia para as reorganizar de acordo com as suas características específicas. Os protocolos não definem regras ou diretrizes sobre as consequências da avaliação e nenhuma instituição nacional é responsável por definir ou aplicar sanções, recompensas e incentivos. Essa é prerrogativa de cada unidade ou instituição, seguindo suas políticas internas. Assim, ao contrário do caso brasileiro, na Holanda a avaliação não é regulatória, não estabelece classificações e não cria indicadores que permitam a comparabilidade entre unidades.

Ao fazer a sua análise comparativa, o autor do livro teve o cuidado de notar que os dois sistemas se baseiam em trajetórias históricas, desafios geográficos e estruturas institucionais. Os mecanismos de avaliação devem ser adaptados aos contextos únicos de cada país. Contudo, existem inspirações e lições que podem ser tiradas das experiências positivas de cada país. Em última análise, ele reconhece vantagens para ambas as abordagens, afirmando que, do ponto de vista comparativo, o modelo brasileiro tem servido de forma mais eficaz para estimular a produção de pesquisas e publicações, especialmente em um contexto em que o desenvolvimento da cultura da pesquisa é relativamente recente, enquanto o modelo holandês promoveu com mais sucesso um ponto de vista contextualizado conducente ao reconhecimento da diversidade, diferenciação e autonomia institucionais.

O autor volta à questão da autoavaliação de programa no Capítulo 11, que aborda a questão da multidimensionalidade, tema subjacente ao qual todo o livro é dedicado. Ele observa que, em 2018, a CAPES reconheceu a necessidade de desenhar uma estratégia de autoavaliação para o SNPG. Este reconhecimento, na opinião do autor, derivou de duas tendências principais. Em primeiro lugar, a expansão significativa do SNPG, que cresceu de cerca de 400 programas em 1980 para quase 5.000 em 2020, tornou-se um obstáculo para captar as narrativas complexas vividas pelo número rapidamente crescente de iniciativas de pós-graduação. Em segundo lugar, era cada vez mais evidente que a sua abordagem de avaliação externa tinha promovido um sistema científico excessivamente homogêneo, levando os programas de pós-graduação “a tornarem-se fotocópias de qualidade inferior aos de melhor desempenho” (p. 260).

No que diz respeito ao tema da multidimensionalidade, entendido como uma abordagem avaliativa que busca captar a realidade de forma ampla, focando em uma variedade de dimensões, subdimensões e indicadores operacionais que se relacionam, de forma articulada, com a qualidade educacional, o autor afirma que a autoavaliação é potencialmente “o instrumento mais valioso numa avaliação genuinamente multidimensional” (p. 273), pois, se bem desenvolvido, pode assegurar a relevância contextualizada que historicamente faltou ao modelo de avaliação da CAPES. Ele postula que uma abordagem multidimensional eficaz “só é verdadeiramente possível por meio da autoavaliação”, pois permite que a multidimensionalidade “incentive a diversidade na ciência brasileira e que possa empregar as próprias instituições como parceiras mais ativas no processo de avaliação” (p. 277).

É claro que, no Capítulo 11, a sua discussão sobre a abordagem da multidimensionalidade à avaliação trata de muito mais do que apenas a autoavaliação. Ele analisa a proposta multidimensional feita em 2018 pela Comissão do PNPG, responsável por acompanhar o Plano do período 2011-2020. Esta proposta defendia a utilização de cinco dimensões, com cada dimensão classificada separadamente numa escala de um a sete, preservando assim a classificação dos programas, mas eliminando a atribuição de uma nota única a cada programa. Embora a Comissão do PNPG tenha anunciado a sua proposta como um “novo modelo”, o autor argumenta corretamente que o seu enquadramento não muda muito em relação à avaliação já em vigor. Ainda assim, ele vê a proposta da referida Comissão como um avanço, representando “um passo modesto, mas relevante, para permitir que os programas de pós-graduação encontrem suas próprias identidades” (p. 273). O mesmo também ressalta o fato de ser uso-amigável, no sentido de que os programas individuais podem selecionar os indicadores ou itens que os ajudariam a definir os perfis dos seus programas de acordo com os seus interesses. Afirma, ainda, que essa flexibilidade orientada para o utilizador produziria resultados mais ricos e mais relevantes para a melhoria do programa.

Apesar da sua argumentação coerente, detalhada e bem fundamentada, muitos aspectos da sua narrativa podem ser questionados, incluindo o fato, reconhecido pelo próprio autor, de que o seu estudo não aborda os aspectos operacionais das suas muitas recomendações, limitando, potencialmente, sua aplicabilidade. Contudo, para este resenhista, quatro questões merecem atenção especial aqui. Cada uma é brevemente discutida abaixo.

  1. O autor defende a avaliação externa realizada pela CAPES. Embora reconheça suas limitações e a necessidade de reformas à luz da complexidade e diversidade do Sistema de Pós-graduação do Brasil, ele enfatiza seu importante papel na promoção da qualidade e da produção acadêmica, além de ser muito positivo ao descrever o uso de comissões de pares, áreas de avaliação, um padrão formulário de avaliação para orientar a aplicação de critérios e indicadores, e o Sistema Qualis para julgar, por meio de análises qualitativas e quantitativas, artigos de periódicos e outros produtos. Mas, por outro lado, sugere que a avaliação externa não é sustentável devido ao tamanho crescente do SNPG e critica-o frequentemente por limitar a diversidade e a inovação em todo o sistema. Assim, conforme descrito acima, ele concentra grande parte do livro na importância da autoavaliação, que descreve com detalhes brilhantes. Mas, nunca fica claro como ele vê a avaliação externa e a autoavaliação inter-relacionadas. A autoavaliação é um complemento ou substituto do modelo externo? Em alguns momentos, ele parece indicar que o processo interno deveria substituir a abordagem centralizada e de cima para baixo, como ocorreu na Holanda, enquanto em outros momentos ele sugere que o componente externo deveria permanecer o elemento principal, devido ao seu impacto global e a sua capacidade de fornecer resultados comparativos. Segundo ele, as duas iniciativas exigiriam articulação, mas ele não faz nenhum esforço para revelar o que “articulação” pode significar em termos concretos.
  2. Em diversas ocasiões, o autor defende uma abordagem de avaliação amigável, na qual o programa escolhe as dimensões e os indicadores com base nos quais seria avaliado. A recomendação faz todo o sentido no caso da autoavaliação, mas o autor parece aplicá-la também à avaliação externa, especialmente quando apoia o sistema de cinco notas proposto pela Comissão do PNPG por ser um passo modesto, mas relevante. O problema desse argumento é que o programa de pós-graduação não é o único “usuário”. Na verdade, como fica claro nos capítulos iniciais dos livros, o principal usuário é e sempre foi o governo brasileiro, que utiliza os resultados da avaliação para financiar estudos de pós-graduação (via a CAPES) e para regular a qualidade dos programas (via o Conselho Nacional de Educação). Outro usuário é o público brasileiro, que exige (e merece) que todos os programas de pós-graduação do país, independentemente de onde estejam, atendam a padrões mínimos de qualidade. O próprio autor parece contradizer sua postura a favor da chamada avaliação amigável, quando, por exemplo, defende o direito das áreas de avaliação estabelecerem indicadores e critérios a serem utilizados e quando afirma que um ingrediente essencial do modelo de avaliação da CAPES é seu quadro comparativo.
  3. Outra posição discutível adotada pelo autor envolve a defesa de notas múltiplas, sendo uma atribuída a cada dimensão, em vez de uma nota unitária gerada pela ponderação dos componentes com o modelo multidimensional da CAPES. Este ponto de vista não está incorreto, mas requer uma análise mais profunda. A abordagem multi-nota é útil para os programas, pois fornece uma imagem desagregada da sua qualidade que pode facilitar as decisões para a sua melhoria. Porém, o autor deixa de mencionar que os programas já recebem seus resultados de avaliação de forma desagregada, com avaliação em escala de cinco graus feita para cada quesito, item e indicador incluídos na Ficha  de Avaliação. Na área de Educação, por exemplo, cada programa recebeu, em 2022, uma avaliação para 62 elementos diferentes, abordando 3 quesitos, 12 itens e 47 indicadores. Por outro lado, o resultado da nota única é útil para outros fins, como na tomada de decisões governamentais relativas ao financiamento e à regulamentação e quando indivíduos e organizações, incluindo os do exterior, estão decidindo se devem ou não trabalhar com um determinado programa. A CAPES, por exemplo, recebe solicitações de todo o mundo perguntando sobre a equivalência entre os conceitos (E a ​​A) dados aos programas anteriores a 1998 e as notas (1 a 7) dadas a partir de então. Essas solicitações são uma prova do valor, da legitimidade e do reconhecimento internacional conferidos às notas da CAPES na forma como estão divulgadas atualmente.
  4. Por fim, ao defender o modelo de cinco dimensões proposto pela Comissão do PNPG, o autor ignora totalmente o formato de avaliação construído e aprovado pelo Conselho Técnico Científico (CTC-ES) da CAPES em dezembro de 2018. Ao invés de ser composto por dimensões avaliadas de forma independente e isoladas entre si, a Ficha de Avaliação aprovada pelo CTC-ES apresenta uma abordagem mais holística, integrada e condensada, organizada em torno de três dimensões e 12 subdimensões que espelham o chamado modelo clássico de avaliação de programas que se concentra, sistematicamente, em insumos (Programa), processos (Formação) e resultados (Impacto na Sociedade). A dimensão Programa, que existia anteriormente mas nunca foi ponderada, inclui como componentes-chave tanto o planejamento estratégico como a autoavaliação do programa, dois ingredientes que o autor considera cruciais para a melhoria do programa, mas que são omitidos no modelo proposto pela Comissão do PNPG. Outra vantagem da Ficha aprovada em 2018 é que a dimensão formativa dá ênfase, pela primeira vez, às trajetórias e opiniões dos egressos do programa. Além disso, inclui como um de seus itens a produção acadêmica dos docentes, aspecto que era uma dimensão à parte tanto na avaliação da CAPES no passado quanto no modelo proposto pela Comissão do PNPG. Agora, no novo formato, trata-se apenas de um componente de dimensão mais geral, reduzindo assim sua influência, algo condizente com o pensamento do autor, ao mesmo tempo em que destaca a principal justificativa para promover a pesquisa e a publicação nos programas de pós-graduação, como estratégia pedagógica para possibilitar que os alunos aprendam sobre a produção de conhecimento trabalhando em estreita colaboração com aqueles que têm experiência profunda com tais processos. Também, a nova Ficha de Avaliação aumentou a importância dada aos impactos do programa e relativizou, de forma multidimensional, os impactos internacionais versus aqueles de natureza mais local. E ainda, como parte da nova abordagem, os indicadores qualitativos receberam muito mais peso e valor do que no passado. Todos estes avanços vão ao encontro dos argumentos apresentados pelo autor em vários momentos da sua longa narrativa, embora nenhum deles faça parte do modelo da Comissão do PNPG que o autor abraça.

Apesar das dúvidas levantadas acima, este resenhista avalia o livro produzido por André Brasil de forma bastante positiva. Em suma, o autor acredita que a avaliação da CAPES deveria ser mais flexível, adaptável e contextualizada, “permitindo variação e customização de acordo com as especificidades de cada programa de pós-graduação, em harmonia com contextos institucionais e disciplinares mais amplos” (p. 302). Os esforços para melhorar ainda mais o Sistema serão muito beneficiados pelo que este livro tem a oferecer. Dou a sua leitura a minha mais alta recomendação.

Nota


[1] Todos os trechos do texto colocados entre aspas foram traduzidos do inglês para o português pelo autor da resenha. 

Pesquisa, inovação, pós-graduação e ensino superior no Brasil

Estou compartilhando, para críticas e comentários, a versão preliminar de um trabalho sobre o tema acima, disponível aqui.

Este trabalho teve por objetivo obter uma visão abrangente das áreas de pesquisa, inovação, educação superior e pós-graduação no Brasil, com ênfase em uma análise mais detalhada dos conteúdos das teses e dissertações de doutorado e mestrado. O uso do termo “sistema” para descrever este conjunto pode dar a impressão equivocada de que ele obedece a uma lógica racional e coerente, que teria por objetivo desenvolver os recursos humanos do país em suas diversas dimensões. O que se observa, no entanto, é que cada um destes componentes se desenvolveu e funciona segundo uma lógica própria e não necessariamente coincidente. A pesquisa mais significativa está concentrada em um segmento do sistema universitário e em alguns institutos isolados, as despesas públicas em ciência, tecnologia e inovação não estão associadas, maioritariamente, à pesquisa e inovação enquanto tais, e a formação de doutores e mestres só em parte converge com a formação de pesquisadores.  Embora não seja uma conclusão surpreendente, ela traz implicações de políticas públicas importantes que deixam de existir quando se desconsidera a pluralidade de funções de cada um destes setores.

Este artigo é produto do projeto “Pesquisa em Pesquisa e Inovação: indicadores, métodos e evidências de impacto”, realizado pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo  – FAPESP (Processo FAPESP 2021/15091-8).

Um novo ENEM? Ou um novo sistema de seleção para a educação superior?

Renato Pedrosa, IEA/USP e Fapesp

No final da tarde de 31/08/2023, uma mesa da Reunião Anual da Associação Brasileira de Avaliação Educacional (ABAVE) discutiu a necessidade de se reformar o ENEM, em vista das mudanças recentes ocorridas no Ensino Médio. Coordenada pelo ex-presidente do INEP, Reynaldo Fernandes, que liderava o INEP quando o ENEM foi reestruturado em 2009 e passou a ser o instrumento central do sistema de acesso às instituições federais de ensino superior, foi composta por Manuel Palácios, atual presidente do INEP, pelo presidente do CONSED e secretário da educação do Espírito Santo, Vítor de Angelo, e por Ricardo Enriques, presidente da Fundação Unibanco e especialista em educação.

Após uma boa introdução ao tema por Fernandes, Palácios comentou que o ENEM está congelado em seu formato e metodologia desde 2009 e que mereceria ser revisado, mencionando as mudanças por que passou o EM recentemente; Angelo mencionou a urgência da reforma do exame, já que os estudantes do ensino médio estão recebendo uma formação distinta daquela que existia quando o exame foi formulado, incluindo agora os chamados itinerários formativos opcionais; e Enriques, questionou se manter o modelo atual ou uma alteração descuidada poderiam levar o exame a ter impactos na equidade do acesso ao ensino superior.

Em entrevista no início de agosto[1], o ministro Camilo Santana afirmou que o ENEM não seria alterado até que as propostas para o Novo Ensino Médio sejam discutidas e aprovadas (ou não). O ministro, pensamos, está correto, e por mais de uma razão. Entre elas, porque a lógica por trás do pedido de urgência por mudança não se justifica, mas há outras, discutidas a seguir.

O que falta ao debate é explicitar claramente qual é o objetivo do exame; isso posto, muito do debate em curso deixa de ser relevante. O ENEM não é avaliação do ensino médio, nem de escolas nem de sistemas ou subsistemas; é, exclusivamente, avaliação individual de estudantes para fins de seleção ao ensino superior. O INEP reconheceu isso quando, em 2017, deixou de divulgar médias das notas do ENEM das escolas, que a imprensa utilizava para criar rankings[2]. Especialistas foram ouvidos pelo INEP, que tomou a decisão correta.

Para avaliar o ensino médio, existe o SAEB de 3º ano desse ciclo. Em que esse exame difere do ENEM? Isso precisa ser explicitado e explicado, pois já começaram as sugestões de mudar o ENEM e deixar de realizar o SAEB. O INEP, em sua justificativa para suspender a divulgação das notas das escolas, diz:

“Para o Inep, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) tem instrumentos mais adequados para a avaliação da qualidade da educação ofertada nos sistemas de educação e nas escolas brasileiras. Para fortalecer esse entendimento, desde 2017 o Saeb ampliou a aplicação da prova para o ensino médio da rede pública, tornando-a censitária.”

Os detalhes da justificativa não cabem nessa nota, mas incluem: cada aplicação do SAEB conta um conjunto de itens muito maior do que o ENEM, cobrindo toda a matriz de avaliação da formação, tanto em termos de proficiências como de nível de dificuldade. Estudantes não fazem todos uma prova única, mas uma amostra das questões, e os resultados são consolidados e fornecem os escores por escola/sistema. Análise estatística a posteriori pode eliminar respostas de estudantes consideradas inválidas, algo impossível de se fazer em um exame do tipo ENEM. Itens são pré-testados, o que geraria problemas de segurança em prova competitiva como o ENEM (já aconteceu). Esse processo melhora a qualidade da avaliação em vários aspectos. Um deles é que o SAEB tem uma escala de proficiência estabelecida por critério, ou seja, sabe-se onde estaria uma escola ou um sistema em termos de proficiência da formação, por exemplo, se o nível dos estudantes é mesmo de 3º ano ou de anos anteriores. Nada disso é feito ou é possível de se fazer no modelo do ENEM, que avalia desempenho individual e não proficiência de grupos de estudantes[3].

Voltando ao ENEM: o modelo atual está defasado e precisa ser reformulado? Talvez, mas não há nenhum estudo que aponte de forma clara que o exame é deficiente para seu objetivo central, novamente, de selecionar estudantes para o ES. Pode ser que seja, ou pode ser que não seja. Voltemos ao argumento que vem sendo levantado para justificar a necessidade e a urgência da reforma: o ENEM atual não avalia a formação em itinerários opcionais possibilitados pelo chamado Novo EM. De fato, mas, cabe a pergunta: é possível se avaliar tais formações, que podem ser muitas, inclusive de caráter aplicado e profissionalizante, em provas escritas? E a questão da formação técnica, adotada como alternativa na reforma, não deveria então também ser avaliada no ENEM, para não deixar os que nela seguiram em condição desigual quanto ao acesso ao ES? Lembremos que os IFETs e CEFETs utilizam o ENEM para o acesso, também. E, por que não pensar em incluir outros aspectos da formação, que vão além daqueles de caráter diretamente ligados aos conteúdos, como capacidade de trabalhar em grupo, capacidade de se expressar oralmente, etc, etc, etc?

Alguns dirão que isso seria totalmente fora do alcance de uma prova escrita. De fato, e é por essa razão que muitos países utilizam, além de exames ao final do ciclo, as avaliações desenvolvidas ao longo do EM, de todos os tipos. Por exemplo, nos Estados Unidos, as notas do EM sempre foram consideradas e, recentemente, exames do tipo ENEM (SAT) vêm sendo abandonados pelas universidades em seus processos seletivos, inclusive por algumas das mais seletivas[4]. Na Alemanha, todas as notas dos últimos dois anos do EM, inclusive de educação física, contam para o processo seletivo, juntamente com exames ao final, realizados pelas escolas, incluindo provas orais e escritas. Ou seja, se o argumento for, de fato, que o atual ENEM não avalia toda ou a maior parte da formação proporcionada pelo EM, o veredito é que nenhuma bateria de exames escritos, aplicada ao final ou após a conclusão do EM, cumprirá essa missão. Ou seja, precisamos reformar o sistema de seleção e não apenas prova usada para esse fim.

Um sistema que incluísse as avaliações desenvolvidas ao longo do EM teria uma grande vantagem sobre o modelo atual: o treinamento para o ENEM, seja qual for seu modelo, deixaria de ser o único objetivo de muitas escolas, valorizando-se não só o processo de aprendizagem como modelos variados de avaliação, ou seja, os muitos anos de trabalho de estudantes e professores. Aos que dizem que isso é impossível, estudos mostram que as notas obtidas na escola são melhores preditores, em geral, das chances de estudantes concluírem seus cursos superiores, do que exames do tipo ENEM[5].

Concluindo: o ministro tem razão, esperemos a finalização dos debates sobre o EM e, até lá, quem sabe, façamos um bom estudo sobre se o atual ENEM cumpre seu papel de selecionar estudantes para o ES, os dados estão na mão do INEP, ou seja, do MEC. E, seja qual for o veredito, não seria interessante pensar em novos modelos de seleção para o ES, que fossem além de uma bateria de provas do estilo ENEM, atual ou reformado, como fazem muitos países?

Notas


[1] https://educacao.uol.com.br/noticias/2023/08/02/ministro-educacao-camilo-santana-uol-entrevista.htm

[2] http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/enem-por-escola

[3] Sobre essa diferença, ver OECD (2018). PISA 2018 Technical Report, Chapter 15. OECD site. https://www.oecd.org/pisa/data/pisa2018technicalreport/

[4] https://www.nytimes.com/2021/05/15/us/SAT-scores-uc-university-of-california.htm

[5] Chapter 6: Test Scores and High School Grades as Predictors, em Bowen, W.G., M.M. Chingos e M. McPherson (2011). Crossing the Finish Line. Princeton Un. Press, Princeton, NJ, EUA.

O financiamento das universidades federais

(publicado em O Estado de São Paulo, 9 de junho de 2023)

Com 40% dos estudantes brasileiros na quarta série sem entender o que leem e a reforma do ensino médio empacada, é natural que o Ministério da Educação ainda não tenha tido tempo para dizer a que veio em relação ao ensino superior. E no entanto, com um orçamento anual de 53 bilhões de reais só para o financiamento de suas universidades, mais de um terço de todos os gastos federais em educação, não é um assunto que deveria ficar para depois. O sistema federal matricula cerca de 1,3 milhões de alunos por ano, mas só forma cerca de 125 mil, a um custo médio de 415 mil reais por aluno formado. E estes formados não chegam a 10% dos que concluem a cada ano, comparado com 83% do setor privado. Será que este dinheiro está sendo bem gasto?  Qual sua contribuição para a formação de recursos humanos e para reduzir os problemas da desigualdade social no país?  Existiriam outras maneiras de usar este dinheiro de forma mais eficiente e socialmente mais justa?

Um estudo recente sobre o financiamento das universidades nos países da Europa Ocidental, onde predomina o ensino público, sugere o caminho a seguir[1].  Cada país é um pouco diferente, mas em todos o financiamento está associado a indicadores de desempenho, como taxas de conclusão, características dos alunos, produção científica, capacidade de atrair recursos adicionais, qualificação dos professores, quantos alunos são formados em diferentes áreas e níveis, e outros. Isto é feito tanto olhando para trás, vendo o que as instituições têm conseguido, como olhando para frente, com contratos de desempenho: as instituições se propõem a cumprir determinadas metas nos próximos anos, e recebem recursos para isto, depois de uma negociação com o governo. Uma pode querer dar prioridade a formar pessoas de alto nível e fazer pesquisas de impacto internacional e outra pode dar prioridade à formação de técnicos de nível intermediário e atividades de extensão regional e local. Não basta querer, é preciso demonstrar que podem. Ambas podem ser financiadas e avaliadas em função de seus objetivos, e não conforme uma escala única aplicada a todos. O risco deste sistema é que ele limita a autonomia das universidades, que precisam se ajustar às prioridades públicas; mas ele reduz o outro risco, das universidades receberem recursos, gastarem mal, e ficar por isto mesmo.

Daria para fazer isto no Brasil? A primeira dificuldade é que a maior parte dos custos de nossas universidades públicas está comprometida com pagamento professores e funcionários públicos com cargos e salários rígidos e estabilidade. Dos 53 bilhões, 45 são para pagamento de pessoal, incluindo 14 bilhões para aposentados. Este dinheiro nem chega às universidades, o governo faz os pagamentos diretamente, e controla de forma centralizada o número de cargos. Para participar de um sistema de financiamento por desempenho as instituições teriam que poder administrar estes recursos, mexendo no quadro de pessoal conforme as necessidades e prioridades próprias. Para isto precisariam deixar de funcionar como repartições públicas e passar a um regime de organização autônoma, vinculada ao setor público por mecanismos de financiamento e avaliação de resultados, e não pelo controle burocrático de cada despesa e do regime funcional.

A segunda dificuldade é que precisaríamos ter um sistema efetivo e inteligente de acompanhamento de resultados que servisse de referência para o financiamento. O sistema de avaliação que temos hoje, criado 20 anos atrás, se resume a um “índice geral de cursos” que ignora que existem instituições públicas e privadas com características e objetivos diferentes, que não podem ser medidas pela mesma métrica; e não inclui informações essenciais como a proporção de alunos que se formam e sua empregabilidade. Ele afeta marginalmente o sistema de regulação do setor privado, mas não tem efeito sobre as instituições públicas, porque todas se saem bem em indicadores como número de professores em tempo integral, cursos de pós-graduação etc., que o setor privado não consegue emular. A terceira dificuldade, finalmente, é que o Ministério da Educação precisaria desenvolver um sistema competente, robusto e respeitado para acompanhar o desempenho e negociar os orçamentos das instituições que administra, assim como os subsídios que dá ao setor privado, na forma de isenções fiscais e crédito educativo.

A implantação de um sistema de financiamento por resultados significaria uma revolução profunda que dificilmente ocorrerá nos próximos anos, pelos interesses que precisaria contrariar, mas o que dá para fazer deste já é criar um sistema mais moderno de informações e avaliação da educação superior.  Nos últimos anos falou-se muito, no Brasil, sobre direitos de acesso ao ensino superior e apertos no custeio das instituições públicas, mas pouco ou nada sobre quanto custa tudo isso e seus resultados.  Já passamos da hora de olhar com outros olhos.


[1] Jongbloed, B., et al. Final Report of the Study on the state and effectiveness of national funding systems of higher education to support the European Universities Initiative (volume 1), European Commission, 2013.

SUCATA – os que voltam

Depois de publicar o texto sobre os altos níveis de abandono dos estudantes de nível superior no Brasil, tomei conhecimento do artigo de Felipe Tumenas Marques, do ano 2020, com dados inéditos sobre os estudantes que voltam a se matricular no ensino superior depois que abandonam. O artigo, “The return to higher education of dropout students in Brazil.” Cadernos de Pesquisa 50: 1061-1077, está disponível aqui. A pesquisa foi feita identificando os alunos que abandonaram os cursos no período 2009 a 2017, e verificando se eles retornaram depois. O artigo também menciona outros estudos sobre o tema que existem.

A boa notícia é que metade dos que se desligam voltam a estudar em algum momento depois, muitos no mesmo ano ou no ano seguinte. É possível também que haja um problema no registro do censo, pessoas que aparecem como tendo abandonado e depois retornado de fato tenham simplesmente se transferido de um curso básico para uma área de formação específica, ou de uma licenciatura para um bacharelado (agradeço a Renato Pedrosa por ter chamado minha atenção para esta possibilidade). Então, a situação não é tão grave quanto a que eu havia indicado.

A pesquisa detalha mais a informação, mostrando, por exemplo, que cerca de 30% dos que se desligam se matriculam em outra instituição no mesmo ano, e 10% no ano seguinte; que só cerca de metade se rematricula na mesma cidade; e que a maioria dos que se desligam de instituiçoes públicas se rematriculam em instituições privadas.

Pode ser que, no setor público, parte da explicação seja que muitos estudantes que fazem o ENEM só conseguem se matricular em instituições distantes, ou em outras carreiras que não as preferidas; ou que procurem cursos menos exigentes. Os dados não indicam quantos dos que se rematriculam finalmente concluem os cursos e quantos voltam a abandonar, o que significa que continuamos sem saber bem a proporção dos que realmente abandonam os estudos definitivamente.

De qualquer maneira, os índices de abandono são altos, e a alta circulação de estudantes entre cursos e instituições indica também ineficiências no sistema. Ainda bem que a situação é menos grave do que parece à primeira vista, e existem pesquisadores tratando de conhecer melhor o que está ocorrendo. O próximo passo será entender melhor e começar a lidar com o problema.

Sucata

(O artigo abaixo foi publicado em O Estado de São Paulo, 12 de maio de 2023. O tema são as desigualdades no ensino superior brasileiro. No dia 25 de maio às 17h devo fazer uma apresentação remota sobre o tema em um seminário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade, quem estiver interessado pode se inscrever neste link. A versão preliminar do trabalho de referência, em inglês, está disponível aqui, e comentários são desde logo bem vindos)

“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”, dizia a Constituição da distopia imaginada por George Orwell em A Revolução dos Bichos. Me lembrei desta frase ao ver os resultados de um trabalho importantíssimo feito pelo INEP sobre o que acontece com os jovens que entram no ensino superior brasileiro.  Entitulado “Indicadores de fluxo na Educação Superior”, os dados estão disponíveis na Internet, mas até hoje nunca vi alguém que tenha se dado ao trabalho de falar da gravidade do que revelam.

O que o INEP fez foi identificar os alunos que entraram no ensino superior em determinado ano, e verificar, em cada ano seguinte, o que aconteceu com cada um – se continua estudando, se abandonou o curso, ou se concluiu. A metodologia é complicada, mas os resultados são fáceis de entender. Para o Brasil como um todo, dos que entraram em 2015, cinco anos depois, em 2020, 35% haviam se formado, 10% continuavam estudando, e 54%, mais da metade, haviam abandonado sem terminar. Os números variam conforme o tipo de instituição, a modalidade do curso e a área de estudos, mas não muito. No setor privado, com 75% da matrícula, a taxa acumulada de abandono depois de 5 anos era de 57%; no setor público, 47%. Um pouco melhor, mais ainda muito alta. Para os estudantes em cursos presenciais, era de 54%; para os cursos à distância, 65%. A área com maior proporção de estudantes que abandonam é a de tecnologias de computação e informação, 65%, seguida das engenharias, 59%.

São dados desastrosos, que podem ser explicados por muitos fatores, como a dificuldade dos alunos em seguir cursos mais exigentes, a precariedade dos cursos à distância. a necessidade de trabalhar, a dificuldade em pagar as mensalidades das faculdades privadas, e outros. O que é inexplicável é que ninguém parece ser preocupar com isto. Este dado não entra no complicado sistema de avaliação do MEC, as verbas e os salários dos professores nas universidades públicas continuam chegando quer os alunos se formem ou não, e as universidades privadas não devolvem as mensalidades dos que não se formam.

O que faz lembrar a sociedade dos bichos é que, nos últimos 20 anos, as politicas de educação superior tiveram como preocupação quase única tornar o acesso aos estudos universitários o mais igualitário possível. Programas como o Prouni, Reuni, Crédito Educativo, a transformação dos antigos CEFETS em institutos universitários, a transformação do ENEM em exame vestibular nacional, a lei de cotas, todos buscavam ampliar as vagas, oferecer estudos gratuitos ou empréstimos a perder de vista para pagar os estudos, facilitar os processos seletivos, e privilegiar estudantes mais pobres, das redes públicas e não brancos. Com isto, o ensino superior se tornou um pouco maior e mais igualitário, o setor público ficou menos elitista, mas, ainda assim, fazer um curso superior continuou sendo um privilégio. E boa parte da desigualdade entre os que entravam ou ficavam fora agora existe dentro, entre os que se graduam e a metade que fica pelo caminho. É um enorme desperdício, como de uma fábrica que joga fora metade do que produz, e uma grande frustração para os que entram cheios de esperança, investem tempo e dinheiro, e acabam sendo forçados a desistir.

Claro, aa frustrações já vinham se acumulando desde antes, para os milhões que terminam o ensino fundamental sem saber ler direito, os que não conseguem terminar o ensino médio, os que não conseguem notas razoáveis no ENEM; e continua inclusive para os que, depois de quatro ou cinco anos, terminam com um diploma universitário, mas mal conseguem um emprego de nível médio. Mas parece que não importa – há sempre aqueles que se dão bem, que são mais iguais do que os outros, e mantêm o mito de que todos um dia poderão chegar lá.

Os dados de fluxo nos dizem qual as chances de um estudante de determinada área de estudo ou setor terminar seu curso, mas não identificam quais instituições cuidam mais de seus alunos, nem que características dos alunos os tornam mais vulneráveis ao fracasso. Além disto, os estudantes só têm uma ideia vaga das oportunidades que terão no mercado de trabalho. Temos informações gerais que nos dizem que ter um diploma universitário facilita muito ter um emprego estável e um bom salário, o que explica porque tanta gente continua tentando. Mas não existe nenhum sistema de informações que ajude os estudantes a escolher seus cursos, e que ajude aos governantes a decidir que instituições e áreas de estudo precisam ser apoiadas ou desestimuladas.

São estas informações, e não provas que a ninguém importa e indicadores que ninguém entende, que deveriam ser a base de um sistema efetivo de avaliação da educação superior brasileira. Já é hora de falar menos de igualdade de acesso e encarar a ineficiência e as desigualdades que existem dentro das instituições.  Como usam seus recursos, qual a qualidade e pertinência do que ensinam, e o fazer para que não continuem sucateando metade os jovens que caem em suas mãos.

As transformações da Educação Superior Brasileira – 2010-2020

(Publicado no Jornal da Unicamp, 26 de Janeiro de 2023)

O tema

O sistema de educação superior brasileiro passou por sua mais importante reforma em 1968, que incorporou o princípio da integração entre ensino e pesquisa, tomando como referência a organização das universidades de pesquisa dos Estados Unidos, com seus departamentos e institutos de pesquisa, sistemas de crédito, professores doutores e alunos em tempo integral. Um dos resultados importantes desta reforma foi que, na medida em que a pesquisa científica se desenvolveu no país, ela se deu no interior de suas universidades. 

Mas, ao tentar emular o sistema norte-americano, os reformadores não tomaram em conta o fato de que as universidades de pesquisa naquele país eram somente uma parte pequena de um amplo sistema de educação superior de massas, com milhares de instituições com outras características. Nos anos seguintes, o sistema da educação superior brasileiro também se expandiu, indo muito além da capacidade das universidades de pesquisa idealizadas na década de 60. Deste então, a legislação brasileira procurou se adaptar à nova realidade de um sistema complexo de instituições públicas e privadas, de ensino e pesquisa, presenciais e à distância, sem que, no entanto, houvesse uma reforma abrangente que desse conta da diversidade que se instalou.

O Projeto

O projeto “Pesquisa da Pesquisa e da Inovação”, conduzido pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da UNICAMP, com apoio da FAPESP, tem por objetivo entender os diferentes contextos e modalidades de apoio à pesquisa científica e tecnológica no país, e parte deste trabalho consiste em examinar em maior profundidade como a educação superior no país vem se transformando, e o lugar que o ensino de graduação, os cursos de pós-graduação e a pesquisa ocupam neste sistema.

Entre 2010 e 2020, o acesso à educação superior brasileira aumentou em cerca de 30%, de 6.6 para 9 milhões de estudantes, somando os matriculados em cursos de graduação e pós-graduação estrito senso. Não foi um crescimento homogêneo: o ensino superior brasileiro, como no resto do mundo, é fortemente diferenciado, com universidades públicas e privadas, grandes redes de ensino à distância, instituições seletivas e de acesso mais simples.

Para melhor entender esta diferenciação, em um trabalho anterior, propusemos uma classificação das instituições de ensino de graduação e pós-graduação em 9 tipos, tomando em consideração, sobretudo, o porte das instituições, em termos do número de alunos matriculados; sua natureza jurídica ou institucional; e o peso relativo de sua dedicação aos cursos de graduação em suas diferentes modalidades (bacharelado, licenciatura, cursos tecnológicos) e pós-graduação estrito senso (mestrados e doutorados) 1.

As bases de dados

Para ter uma visão de conjunto, foi necessário, em um primeiro momento, unificar as bases de dados do Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, INEP, com informações referentes aos cursos de graduação, e da CAPES, com informações referentes aos cursos de pós-graduação, tomando como referência o ano de 2018. Posteriormente, tivemos acesso ao conjunto de dados da CAPES para o período 2004 a 2020 e do INEP para o período 2010 a 2020, organizados pela FAPESP.

Como INEP e CAPES não utilizam os mesmos e códigos nem os mesmos critérios da identificar as entidades, nem para organizar as informações (mantendo juntas ou separadas, sem critério uniforme, instituições e suas diferentes partes ou localidades), e como os microdados da CAPES não foram submetidos a um tratamento de sistematização e limpeza apropriados, como os do INEP, foi necessário um trabalho minucioso de organização dos dados, incluindo a criação de um dicionário comum de entidades e uma série de decisões sobre agregação e eliminação de informações inconsistentes. A estes dois conjuntos de dados acrescentamos as informações sobre publicações científicas oriundas do Web of Science, e outros dados do INEP referentes ao fluxo de características socioeconômicas dos estudantes de graduação.

A integração destas diferentes bases de dados permite uma série de análises sobre as características e evolução recente do ensino superior brasileiro, que serão apresentadas em documentos de trabalho sucessivos.

Tipologias

Existem duas maneiras de desenvolver uma tipologia, por metodologias estatísticas que permitem agrupar as entidades conforme suas semelhanças ou diferenças, e pelo uso de critérios mais ou menos arbitrários, mas apoiados na observação dos dados mais relevantes. Em um texto recente, Maria-Ligia Barbosa e colaboradores fizeram uma análise hierárquica de clusters dos principais componentes de um grande conjunto de dados das instituições de ensino superior brasileiras, a partir das informações do Censo da Educação Superior do INEP de 2019 que levou à identificação de quatro grupos: 1) faculdades privadas, de pequeno porte e inclusivas (35% da matrícula); 2) faculdades de pequeno porte com ênfase em formação vocacional e STEM (1.3% da matrícula); 3)  grandes universidades privadas (40% da matrícula); e 4) grandes universidades públicas de orientação acadêmica (27% da matrícula) 2.

Para este projeto, também experimentamos como diferentes técnicas de agrupamento, como, por exemplo, a análise de proximidade ilustrada no gráfico 1. É um gráfico tridimensional, que tem como principais vetores a proporção e alunos em cursos de pós-graduação, o tamanho das instituições, em número de alunos, e a proporção de alunos em cursos vocacionais, ou tecnológicos. Embora interessante, neste tipo de análise o resultado depende do número de variáveis que entra na análise, e o resultado não necessariamente inclui dimensões importantes que conhecemos. 

Mais promissor tem sido o uso intencional de algumas variáveis que consideramos estratégicas para melhor entender a diferenciação que de fato vem ocorrendo no sistema. Estamos retomando, neste projeto, a classificação de 9 tipos de instituições de ensino superior brasileiro, que tem como principais eixos o seu tamanho, a natureza jurídica (públicas, privadas e filantrópicas), a proporção de alunos em cursos de pós-graduação, e a proporção de alunos em cursos curtos, tecnológicos ou vocacionais. O quadro 2, abaixo, apresenta a tipologia que está sendo utilizada, com alguns indicadores relativos às características dos estudantes matriculados, para o ano de 2020, que variam de forma significativa entre os diferentes tipos. Ela permite distinguir com clareza diferentes tipos de instituições públicas, e traz informações adicionais sobre instituições de pequeno porte voltadas para a pesquisa e pós-graduação, que as outras abordagens não identificam. 

O acesso a dados de diferentes anos permite, ainda, ter uma visão inédita da evolução do ensino superior brasileiro, como no gráfico abaixo, no qual se pode observar que o crescimento foi quase que exclusivamente concentrado no primeiro tipo de instituição, as instituições privadas de grande porte, voltadas sobretudo para a educação à distância e noturna.

O mesmo tipo de análise pode ser feito sobre a pós-graduação, podendo-se observar que 48.5% dos alunos de doutorado em 2020 estavam concentrados nas 13 instituições que fazem parte do grupo 2; e elas ainda concentravam 35% da produção de artigos de instituições brasileiras indexados no Web of Science (base de dados InCites) nos últimos 10 anos.

Tal como já ocorre nos Estados Unidos e outros países3; 4, a existência de uma base de dados integrada e em permanente atualização, e uma tipologia apropriada, podem se tornar um instrumento poderoso para o conhecimento apropriado e aperfeiçoamento contínuo de seu sistema de educação superior em suas diversas dimensões.

Referências

1                SCHWARTZMAN, S.; SILVA, R. L.; COELHO, R. R. Por uma tipologia do ensino superior brasileiro: teste de conceito. Estudos Avançados, v. 35, p. 153-186,  2021. ISSN 0103-4014.  

2                BARBOSA, M.-L.  et al. Higher Education in Brazil: Institutional actions for the retention of students in public and private sectors. In: PINHEIRO, R.;BALBACHEVSKY, E., et al (Ed.). The impact of COVID-19 on the institutional fabric of higher education:  Accelerating old patterns, imposing new dynamics, and changing rules?: Srpinger, 2023 (forthcoming).   

3                MCCORMICK, A. C. Classifying Higher Education Institutions: Lessons from the Carnegie Classification Clasificación de las instituciones de educación superior: lecciones de la Clasificación Carnegie. Pensamiento Educativo. Revista de Investigación: Educacional Latinoamericana, v. 50, p. 65-75,  2013.  

4                VAN VUGHT, F. Mapping the higher education landscape: Towards a European classification of higher education.   Springer Science & Business Media, 2009.  ISBN 904812249X.  

A educação superior brasileira

Entrevista a Jorge Priori, publicada em Monitor Mercantil. 21 de outubro de 2022, p. 7 (revisada)

Conversamos sobre a educação superior brasileira com Simon Schwartzman, sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Como o senhor avalia a educação superior brasileira?

A educação superior brasileira expandiu muito rapidamente nos últimos 20 anos, mas essa expansão trouxe muitos problemas. Eu costumo dizer que essa expansão foi feita em cima de um modelo das profissões liberais. Todos querem um diploma prestigioso e que dê rendimentos tão bons quanto os recebidos pelos médicos e advogados. Essa é uma espécie de aspiração da população brasileira. O sistema público oferece isso em certa medida, e o sistema privado promete oferecer. O sistema expandiu, mas, proporcionalmente, poucas pessoas conseguem esse objetivo. E os que conseguem geralmente vêm de famílias mais ricas e mais educadas, que conseguem dar aos filhos uma educação básica em escolas privadas de melhor qualidade.

Criou-se um sistema que é extremamente custoso para o setor público, que financia a parte pública, e para a população, que, além dos impostos, paga as anuidades do setor privado quando não tem acesso ao sistema gratuito, mas que em grande parte não consegue resultados e fica pelo caminho. O Brasil não soube como lidar com as questões da diversificação e da ampliação da educação superior, que é um processo que ocorreu no mundo inteiro.

Quando o Brasil reorganizou o seu sistema de educação superior com a reforma universitária de 1968, inspirada no sistema norteamericano, a proporção de brasileiros que chegavam ao nível superior era de até 3%. Mas Brasil não copiou o sistema americano como um todo, com sua ampla base de colleges municipais, estaduais e privados, mas só o das universidades de elite de pesquisa e pós-graduação. Quando veio a demanda por mais educação, o setor público não conseguiu responder, e o setor privado abriu e respondeu de maneira bastante caótica.

Assim, nós temos uma situação de uma grande expansão que acabou criando um grande um custo e uma grande frustração.

Na sua opinião, quais são os principais problemas que afligem a educação superior brasileira?

O grande problema é o fato de que, apesar de ter crescido muito, ela não dá a qualificação que se espera para muitas pessoas. Do ponto de vista do setor público, nós temos uma questão complicada já que ele ficou limitado no seu crescimento por causa do modelo que foi adotado na década de 1960, com professores em tempo integral, fazendo pesquisa, cursos de pós-graduação, e alunos passando o dia todo na faculdade. Esse modelo não conseguiu se expandir. Algumas universidades se aproximam mais disso, mas a maioria das outras têm os mesmos custos, como se fossem de pós-graduação e pesquisa, mas não funcionam dessa maneira.

Se você olhar a pesquisa e a pós-graduação brasileira, ela está, relativamente, concentrada em poucas instituições. O custo das universidades públicas é muito alto, basicamente, por causa do regime de tempo integral da quase totalidade dos professores e do regime de serviço público. O resultado disso é que hoje em dia cerca de 25% dos alunos estão no setor público e 75% no sistema privado, que é um sistema desigual que em grande parte dá uma formação muito básica e muito simples.

O sistema privado cresceu em grande parte com subsídios públicos pesados através do sistema de crédito educativo, que foi à falência por causa do aumento descontrolado dos custos e inadimplência. Isso levou a uma situação de crise em que praticamente todo o sistema privado foi para o ensino a distância, que em princípio pode ser uma boa modalidade em alguns casos, mas que na maior parte é uma formação muito precária.

Nós temos um grande funil. Em 2021, 4 milhões de pessoas se candidataram ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio; em 2014, esse número havia sido de 8,7 milhões). Para que tenhamos uma ideia, o número de vagas oferecidas pelo setor público no ano passado foi de 262 mil (SiSU, Sistema de Seleção Unificada).

Grande parte dos que entram no Enem não consegue chegar às universidades públicas. Quando conseguem, uma pequena porcentagem entra nos cursos que gostaria, das universidades mais prestigiadas e carreiras que dão melhor resultado, mas a maior parte fica em cursos de menor qualificação e de menor qualidade. Ou então optam pelo setor privado, que aceita todos que conseguem pagar ou obter uma bolsa ou crédito educativo. Dos que que se matriculam em instituições públicas, metade abandona antes de terminar; no setor privado, o abandono chega a 60% ou mais. E, dos que terminam, metade não consegue uma profissão equivalente ao que se espera do nível superior.

O sistema inchou, cresceu muito rapidamente e criou custos de diferentes lados, gerando oportunidades, mas também muita frustração.

Da mesma forma que existem as soluções mais complexas, existem as soluções mais simples, de fácil implementação e que geram efeitos positivos. Na sua visão, existem soluções mais simples que poderiam ser implementadas para resolver parte dos problemas da educação superior brasileira?

Considerando o setor público, um ponto muito importante é o tema da diferenciação. Em todo o mundo, quando o sistema de ensino superior se expande, ele cria diferentes modalidades de formação. Além dos cursos tradicionais como Medicina e Direito, você tem cursos vocacionais curtos, com duração de 3 anos, mais diretamente direcionados ao mercado de trabalho. O Brasil quase não criou essa modalidade, e, praticamente só no setor privado.

Quando todas as pessoas buscam o mesmo tipo de qualificação, que são os bacharelados tradicionais, muitas delas acabam ficando pelo caminho. É necessário oferecer uma variedade diferente de cursos para as pessoas que chegam ao nível superior com diferentes níveis de qualificação.

Não há sentido em você tratar todas as universidades federais como se elas fossem idênticas, com as mesmas carreiras de professores, quando algumas delas têm uma orientação de pesquisa, pós-graduação e de ensino de alto nível, enquanto outras estão dando uma qualificação mais geral e mais básica, que também pode ser importante, mas que é muito diferente. Hoje em dia, mais de 90% dos orçamentos das universidades federais são gastos com pessoal. Isso não precisaria ser assim.

Outra questão, e que também tem a ver com o sistema privado, é o sistema de avaliação. O Brasil criou um sistema de avaliação que começou com o Provão nos anos 90 e depois passou para o Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior), já no Governo Lula, em 2004. Trata-se de um sistema obsoleto que avalia as instituições como se elas fossem destinadas à formação de alto nível de pesquisa, quando elas não são assim. É muito claro que esse sistema não funciona e não toma em consideração a diversificação do sistema.

Eu participei da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior, que no papel deveria ter sido responsável por rever esse sistema. O governo brasileiro, já no final da presidência de Michel Temer, contratou uma missão da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para trazer pontos de vista internacionais, comparar o Sinaes com outros países e propor a sua revisão. O trabalho ficou pronto no final do governo Temer, mas o governo Bolsonaro não teve o menor interesse pelo assunto.

Por fim, existe a questão do financiamento do ensino superior privado e público. Nos dois lados, o estudante que precisa estudar, mas que não tem condições econômicas, precisa ser assistido, se possível com bolsa ou com algum tipo de isenção ou crédito educativo. Além disso, não faz sentido nós termos 25% dos estudantes no sistema público, que é totalmente gratuito, e 75% no sistema privado, onde ele tem que pagar. A questão da gratuidade total no sistema público tem que ser revista.

Os problemas da educação superior pública são os mesmos da educação superior privada?

Não, eles são diferentes. No caso da educação superior pública, há uma questão de custos. Na minha visão, com o volume de dinheiro destinado ao setor seria possível atender mais gente, de melhor forma e com um público diferenciado.

Eu também diria que o sistema público tem problemas em duas pontas. Numa delas, nós temos as instituições de elite, que formam pessoas muito bem qualificadas e que contribuem para colocar o país na sociedade global do conhecimento. Aí o sistema superior brasileiro sofre porque é muito amarrado. As melhores universidades públicas no Brasil não têm liberdade para contratar um professor pagando um salário equivalente ao mercado internacional. Por exemplo, elas não podem trazer um cientista de ponta para coordenar um novo departamento. Os salários são rígidos e uniformes, havendo um sistema burocrático de concurso. As universidades de melhor qualidade não têm condições de competir por talento, o que seria o seu principal acervo e recurso.

Na outra ponta, nós temos a educação universitária de massa, onde você tem que dar uma qualificação prática mas não necessariamente de nível mais alto. O setor público não oferece essa modalidade de formação, pois continua tentando imitar o modelo da pesquisa, que na verdade não se aplica a 70%, 80% das universidades públicas.

Ele está amarrado a uma concepção tradicional da década de 1960, sem que haja um esforço para repensá-lo de forma a que tenha muito mais flexibilidade institucional para trabalhar com modalidades diferentes para atender diferentes públicos. Toda essa discussão de como você moderniza, atualiza e torna mais eficiente o setor público não foi feita.

Com relação ao setor privado, hoje em dia você já tem algumas instituições, que são poucas, que já começam a competir com o setor público em termos de qualidade. Por exemplo, se você quiser fazer uma excelente pós-graduação em Economia, você não vai para uma universidade pública, e sim para uma instituição como a FGV, o Insper em São Paulo ou a PUC no Rio. Estão entrando instituições que estão trazendo pessoas de melhor qualidade, pagando salários para professores de nível internacional e recrutando de maneira mais qualificada os estudantes. Essa competição não se dá em áreas mais pesadas de tecnologia, mas isso está começando a mudar, nas áreas de saúde e engenharia.

Contudo, isso é um setor pequeno. Grande parte do setor privado faz uma educação de massa para alunos, em geral, mais velhos, na casa dos 30, 40 anos, que não tiveram condições de se formar e que ficam buscando um diploma. As instituições privadas oferecem uma educação barata, à distância, mas com um controle de qualidade muito débil. Ninguém sabe exatamente o que os alunos estão recebendo. Eles recebem um diploma na esperança de que ele lhes dê uma excelente posição no mercado de trabalho, mas, cada vez mais, isso é difícil.

Seria necessário ter um sistema de avaliação e de acompanhamento para dar mais informações para a sociedade sobre o que está sendo oferecido, de forma a que as pessoas não caiam numa espécie de armadilha: entrar num curso; passar 3, 4 anos; pagar como puder aquilo que é cobrado, e no final ficar com um papel que não vale nada.

Além do mais, hoje em dia existe uma discussão internacional sobre novos tipos de conhecimentos, demandados pelas novas tecnologias. Fala-se muito das microcredenciais. Em vez de você dar um título depois de 3 ou 4 anos, você pode dar uma formação especializada de 4 meses, por exemplo, numa nova maneira de lidar com o computador, ou seja, um novo tipo de competência que o mercado de trabalho, que está em movimento, solicita. Isso praticamente não avançou no Brasil.

A discussão no Brasil sobre nível superior ainda está muita presa numa temática antiga. Só se fala acesso e financiamento, havendo uma espécie de briga entre o setor público e privado, que na verdade não faz muito sentido. Os dois são muito importantes, não sendo possível dispensar um ou outro.

Entra eleição e sai eleição, esse tema é tratado com um festival de platitudes e lugares-comuns, sendo a principal delas “mais recursos”. Por que a classe política não trata esse tema com objetividade?

Existem muitos interesses criados nos dois lados. O setor público fica se sentindo muito ameaçado, principalmente agora, já que o governo Bolsonaro é muito hostil à educação em geral, e à educação superior em particular. Ele nunca teve uma política, a não ser uma política de hostilidade para o setor como um todo. Há uma situação compreensível de se querer defender as instituições e as pessoas que estão lá, que têm salários e que vivem disso.

Por outro lado, essa postura defensiva dificulta uma discussão mais aprofundada de uma reforma que precisaria ser feita. Seria necessário ter um governo que ao mesmo tempo tivesse consciência da importância da educação superior e dos recursos para viabilizá-la, mas que não se fique simplesmente financiando o sistema que está aí da mesma maneira.

É preciso mudar o regime jurídico para dar mais autonomia e responsabilidade às instituições; diversificá-las para que elas possam fazer coisas distintas; mudar o processo gerencial para ter um sistema mais adequado de uso de recursos, e mudar o sistema de avaliação do setor público e privado, já que o Sinaes só se aplica na prática ao setor privado, com o setor público ficando de fora, pois não há nenhuma consequência ou efeito sobre ele.

Existe uma série de reformas necessárias para trazer o sistema para o nível do que acontece nos países desenvolvidos onde o sistema de educação superior se massificou, é grande, é caro e onde existe uma convivência do setor público com o privado.

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