Sonia Rocha: Pobreza no Brasil: conceitos, medidas e politicas públicas

Publicado por Eliva Press, disponível na Amazon e Academia.edu

Este livro reúne um conjunto de textos, muitos deles inéditos, que acompanham a transformação da abordagem da pobreza no Brasil, que, por volta dos anos noventa, passa a ocupar um lugar de destaque, tanto nos meios acadêmicos como na agenda de política social, ganhando visibilidade na mídia e entre o público em geral. A pobreza deixa de ser um assunto de caráter essencialmente filantrópico, de certo modo considerado como um fato normal da vida, associado às desigualdades inevitáveis da organização social. Ganha protagonismo próprio e atenção específica, deixando também de ser vista como um apêndice do subdesenvolvimento e da política pública.  Esta ainda estava muito centrada nas questões macroeconômicas e na promoção do desenvolvimento econômico, na crença que o crescimento da renda levaria automaticamente à redução progressiva da pobreza. 

No âmbito na política pública, a nova abordagem causou uma ruptura do enfoque clientelista e assistencialista que operava sem qualquer controle, passando-se a privilegiar paulatinamente instrumentos e ações anti-pobreza baseadas em evidências objetivas e passíveis de avaliação.

Os textos apresentados aqui rompem portanto com a tradição predominante até os anos oitenta, adotando uma abordagem centrada na pobreza com uma pegada empírica. Utilizam como ponto de partida bases estatísticas oficiais cobrindo o país como um todo e suas subdivisões territoriais/espaciais, que tanto servem para fins de análise e de diagnóstico, focando em última instância na aplicação para desenho, monitoramento e avaliação de políticas voltadas para o combate à pobreza e sua irmã gêmea, à desigualdade de renda. 

O texto inicial serve como pano de fundo para todos os demais. Traz uma retrospectiva dos dados básicos desde 1990, apresentando a tendência geral de declínio da pobreza, mas enfatizando as alterações ocorridas associadas à urbanização e à consequente perda de importância relativa da pobreza rural. A expansão da fronteira do Centro-Oeste causa modificações na distribuição regional da pobreza, mas a dicotomia fundamental entre Norte e Sul pouco se altera, já que a pobreza brasileira permanece predominantemente nordestina, mas crescentemente nortista. 

Os textos que se seguem enfocam diferentes aspectos da questão da pobreza. Geralmente adotam como pressuposto a abordagem da pobreza como insuficiência de renda. Utilizam-se, portanto, frequentemente linhas de pobreza e de extrema pobreza como critério básico para distinguir um subconjunto de pobres, medir a incidência de pobreza e caracterizar a subpopulação pobre. A primazia da abordagem de pobreza enquanto insuficiência de renda na maioria dos textos apresentados aqui merece algumas qualificações. 

A primeira é que, embora pobreza seja reconhecidamente uma síndrome de carências multivariada, o nível de renda é o determinante básico do nível de bem-estar das famílias, pelo menos no que o bem-estar depende do consumo no âmbito privado. Por esta razão estudos de pobreza em países de renda média ou alta utilizam preponderantemente a abordagem da renda como ponto de partida. Um dos textos selecionados – Measuring Poverty in Brazil: A Review of Early Attempts – faz uma revisão dos diferentes experimentos pioneiros de medição de pobreza no Brasil usando linhas de pobreza, explicitando como foram estabelecidos seus valores e quais os resultados obtidos.

A segunda qualificação concerne à aplicabilidade de um valor único de linha de pobreza para um país tão vasto e com características diferenciadas de consumo e de preços, portanto de custo de vida. Os textos selecionados aqui adotam como pressuposto linhas de pobreza e de extrema pobreza diferenciadas por regiões e por suas subáreas (urbanas, rurais e metropolitanas). Além disso, ao invés de usar valores arbitrários como linha de pobreza – como por exemplo, um múltiplo do salário mínimo-, os valores adotados derivam-se da estrutura de consumo efetivamente observada dentre os mais pobres em pesquisas de orçamentos familiares. Os valores das linhas são, portanto, resultado das preferências de consumo dos indivíduos e famílias, dada a restrição de renda que enfrentam. A diferença de valores entre áreas mais afluentes, com estrutura de consumo de maior custo, como a metrópole de São Paulo, e as áreas mais pobres, como a área rural do Nordeste, evidencia a relevância de usar parâmetros de renda tão localizados quanto possível para medir pobreza no Brasil. Premissas e procedimentos utilizados para a derivação e atualização periódica dos valores espacialmente diferenciados das linhas de pobreza são objeto de um dos textos selecionados (Poverty Lines for Brazil: New Estimates from Recent Empirical Evidence). 

Um terceiro aspecto tem a ver com a vantagem do uso de linhas de pobreza como premissa, já que ela permite incorporar à análise, simultaneamente, outras carências associadas à pobreza. Assim, a partir da delimitação dos pobres do ponto de vista da renda, podem ser derivados perfis dos pobres, e se desejado, também dos não-pobres, utilizando variáveis relativas à educação, inserção no mercado de trabalho, acesso a serviços públicos, estrutura familiar, etc. Os textos Poor and Non-Poor in the Brazilian Labor Market e Who are the Poor in Brazil tiram partido desta abordagem combinada. 

Alguns dos textos selecionados utilizam apenas subsidiariamente a renda para a análise de aspectos relevantes da pobreza. Em Sustainable Development and the Poverty Reduction Goal discutem-se três aspectos relativos à noção de sustentabilidade no Brasil, que são frequentemente vinculados à questão de pobreza. Em particular o falso trade-off entre crescimento econômico e política anti-pobreza. Um outro texto, Child Labor in Brazil and the Program for Eradication of Child Labor, enfoca um problema crítico da pobreza e desenvolve uma tipologia das crianças envolvidas em trabalho precoce visando o desenho e a operacionalização do PETI, sem utilizar linhas de pobreza.  

O texto sobre o trabalho infantil acima citado, assim como três outros textos selecionados, enfoca o processo de formulação, aplicação e aperfeiçoamento dos novos programas de transferências de renda, começando com o Bolsa-Escola em Brasília. Revelam-se os defeitos e dificuldades detectados, que foram contornados ou pelo menos amenizados com os aperfeiçoamentos paulatinos introduzidos, em particular, no Bolsa-Família ao longo do tempo. Estes textos sobre os programas de transferência de renda, que combinam micro-simulações, análise e explicitação da lógica da adoção das progressivas mudanças no desenho dos programas, estão fortemente vinculados à operação da política pública anti-pobreza adotada no país desde os anos noventa, fortemente centrada nas transferências de renda focalizadas.  

Dois textos tratam da desigualdade de renda, que está imbricada à persistência da pobreza absoluta no Brasil, já que, diferentemente do que ocorre em países realmente pobres, em base per capita, há renda suficiente para que toda a população brasileira se situe acima das linhas de pobreza. Nas raízes da desigualdade e da pobreza estão as históricas deficiências educacionais, que determinam a relação entre nível de escolaridade dos indivíduos e as possibilidades de inserção no mercado de trabalho. O primeiro texto – Education, Labor Earnings and the Decline of Income Inequality in Brazil – enfoca as relações entre educação e renda do trabalho, e os impactos sobre a pobreza e a desigualdade de renda. O segundo – Age and Regional Inequality Among the Poor in Brazil – se concentra na desigualdade entre os pobres. Mostra como no período 2004-2014, caracterizado pela queda sustentada da pobreza, não houve redução na desigualdade entre os pobres tanto no que se refere ao recorte regional – mantendo-se a concentração de pobres no Norte/Nordeste, como já se comentou, como por faixa etária. Neste último caso foram os idosos, que já se encontravam em melhor situação relativa dentre os pobres, os que mais se beneficiaram da redução da pobreza no período, em particular devido à cobertura dos benefícios previdenciários e assistenciais, indexados ao salário mínimo, que muito se valorizou no período. No extremo oposto foram as crianças as grandes perdedoras, com aumento de sua participação dentre os pobres, apesar de programas como o Bolsa-Família. Estes resultados deixam evidente o ponto crítico da política anti-pobreza que vem sendo adotada no Brasil, dos programas de transferência de renda mais especificamente, incapazes de proteger as crianças, os mais vulneráveis e também em maior desvantagem dentre os pobres. 

Um ultimo conjunto de artigos mostra como as oscilações conjunturais e fatores macroeconômicos impactaram os níveis de pobreza, o que não é surpreendente, já que utilizamos a abordagem da renda. Como a inflação castiga preponderantemente os pobres, o estancamento da alta de preços do Plano Real trouxe uma forte redução da pobreza com melhorias distributivas marcantes, mas não deu origem a um processo continuado (The 1994 Monetary Stabilization. Early Evidence of its Impacto on Poverty).  Entre 1997 e 2004 diversos determinantes macroeconômicos – de crises externas a dificuldades da gestão cambial – deixaram as taxas de pobreza estagnadas. Só a partir de 2004 se iniciou um ciclo sustentado de redução da pobreza, impulsionado por fatores favoráveis tanto internos como externos.  

Hoje muito já se sabe sobre pobreza no Brasil e sobre os mecanismos de política pública mais eficientes para combatê-la. Os textos apresentados neste livro trazem um conjunto de evidências e reflexões com a intenção de ilustrar os progressos ocorridos no longo prazo e o enorme aprendizado acumulado. Os retrocessos ocorridos desde a recessão iniciada em 2014, acentuados pela crise sanitária atual, vão demandar todo o talento e arte para a recuperação das perdas e a retomada do crescimento econômico em moldes adequados à nova realidade.    

O papel das ciências sociais no desenvolvimento do Brasil

Webinar organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, 6 de maio de 2021, às 17 hs, com a participação de Benardo Sorj, Elizabeth Balbachevsky e Simon Schwartzman. Inscrições por Zoom ou por Facebook.

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As ciências sociais vivem em permanente tensão com as sociedades sobre as quais refletem e atuam. De um lado, para se desenvolver como disciplinas do conhecimento, precisam demarcar seu campo próprio, conquistar sua autonomia relativa em relação às demandas do meio circundante. De outro, devem ser capazes de responder às preocupações, problemas e desafios colocados pela sociedade.

No Brasil, a produção de conhecimento no campo das ciências sociais nunca deixou de refletir as questões políticas e sociais contemporâneas e de influenciar o debate público e as políticas de governo.

Qual a contribuição das ciências sociais para o desenvolvimento do Brasil nesta quadra da nossa história? Esta é a pergunta-chave deste webinar, que será também uma ocasião para o relançamento da autobiografia de Simon Schwartzman, “Falso Mineiro: Memórias de Política, Ciência, Educação e Sociedade”, editora Intrínseca (selo História Real), 2021.

Pela Preservação do Censo Demográfico 2021

Junto com outros ex-presidentes do IBGE, estamos circulando esta nota, instando os membros do Congresso a preservar os recursos para garantir a realização do Censo Demográfico de 2021.

Uma alteração de última hora na proposta orçamentária para 2021 ameaça cancelar o Censo Demográfico decenal que deveria ter sido feito no ano passado, e foi adiado para este ano por causa da Covid, como na maioria dos países do mundo. 

Os dados do Censo Demográfico são a base para a transferência dos recursos do Fundo de Participação de Estados e Municípios, para a administração do Bolsa Família e para todas as políticas de educação, saúde e transferência de renda do governo federal, estados e municípios. E é ele, também, que traz confiabilidade para as pesquisas amostrais de emprego, saúde e educação do IBGE e outras entidades públicas e privadas. Nosso último censo ocorreu em 2010, e, sem ele, o Brasil se junta ao Haiti, Afeganistão, Congo, Líbia e outros estados falidos ou em guerra que estão há mais de 11 anos sem informação estatística adequada para apoiar suas políticas econômicas e sociais. 

O Censo de 2021 deverá ser feito por uma combinação de coletas de dados nos domicílios e de forma virtual e por telefone, fazendo uso das novas tecnologias que o IBGE teve que desenvolver ao longo de 2020 para não interromper suas pesquisas amostrais. A expectativa é que, em agosto, o Brasil já tenha saído ou esteja saindo da epidemia da COVID, e o IBGE vem se preparando para realizar o trabalho fazendo uso de protocolos estritos de proteção sanitária de entrevistadores e entrevistados.

Como ex-presidentes do IBGE, instamos aos senhores Senadores e Deputados, membros da Comissão Mista do Orçamento, que preservem os recursos do censo e não deixem o país às cegas.

Edmar Bacha
Eduardo Nunes
Eduardo Augusto Guimarães
Edson Nunes
Eurico Borba
Sérgio Besserman
Simon Schwartzman
Silvio Minciotti

Educação Superior na América Latina e os Desafios do Século XXI

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A editora Springer acaba de publicar o livro que editei com o título de Higher Education in Latin America and the Challenges of the 21st Century, com contribuições de Jamil Salmi, José Joaquin Brunner, Julio Labraña, Elizabeth Balbachevsky, Jorge Balán, Helena Sampaio, Sylvie Didou Aupetit e Renato H. L. Pedrosa.

No primeiro semestre de 2013, tive o privilégio de ministrar o curso de Ensino Superior na América Latina e os Desafios do Século XXI, na Cátedra UNESCO do Memorial da América Latina em São Paulo, o que me permitiu convidar vários dos principais estudiosos do ensino superior da região para apresentar e discutir suas idéias e conhecimentos com um grupo excepcional de estudantes de diferentes instituições no Brasil e no exterior. A primeira versão deste livro, publicada pela Editora da Unicamp, foi um produto desse curso. Agradeço ao Prof. Adolpho José Melfi, então diretor do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos do Memorial, por me convidar para ministrar o curso e por me incentivar a preparar este livro; e à Editora da Universidade de Campinas, por tornar esses textos acessíveis a um público mais amplo. Para esta edição em língua inglesa, os capítulos foram foram extensivamente atualizados e expandidos.

O livro apresenta uma visão geral da região com um dos setores de ensino superior que mais crescem no mundo. Até o início dos anos 80, as universidades estavam restritas às elites nos países da América Latina, com menos de 5 milhões de estudantes matriculados em seus cursos. Nas últimas quatro décadas, no entanto, a região passou por um boom de instituições de ensino superior e agora tem mais de 25 milhões de estudantes matriculados em mais de 3.800 universidades, aproximadamente 10% de todos os estudantes matriculados em cursos de ensino superior no mundo, com quatro vezes mais instituições de ensino superior que a Europa. O boom do ensino superior latino-americano é analisado neste volume com contribuições de vários dos principais especialistas da região. Eles discutem as causas e conseqüências dessa expansão maciça e os desafios que representam para diferentes partes interessadas, como governos, empreendedores privados, professores, pesquisadores, estudantes, formuladores de políticas, administradores e outros.

Liberalismo ou fascismo?

(publicado em O Globo / Opinião, 23 de maio de 2020)

Do deprimente vídeo da reunião de governo de Bolsonaro, quase todos os comentários se concentraram nos palavrões, nos insultos e sobre se ele disse ou não se pretendia intervir na polícia federal. Mas o que mais me chamou a atenção foi a parte em que ele fala da facilidade com que se poderia implantar uma ditadura no Brasil, e da necessidade de armar a população para resistir e se defender. Pedro Dória, do Meio, e Demétrio Magnoli, na GloboNews, também deram destaque a isto, sendo que Doria interpreta como sendo uma manifestação de liberalismo extremo como o que grassa em alguns setores nos Estados Unidos, a busca da volta a uma sociedade que teria existido no século 18, de um Estado diminuto e uma população organizada em milícias e armada para se defender. Mas me parece que a inspiração não é esta, e sim do fascismo, objeto de um livro recente de Antonio Scurati sobre Mussolini que resenhei em um artigo de alguns meses atrás.

Que risco é este de ditadura que Bolsonaro tanto teme? Não são justamente ele e seu grupo mais próximo que ficam o tempo todo ameaçando fechar o Congresso e o Judiciário?  Mas ele mesmo dá exemplos do que pensa: o risco da ditadura viria dos governadores e prefeitos que mandam as pessoas ficar em casa para controlar a epidemia , da pessoa que impede que seu irmão entre em um açougue sem máscara, das instituições que tentam investigar seus filhos, do Supremo Federal que impede que ele nomeie seu amigo para polícia federal, do Congresso que não aprova suas medidas provisórias. Ele ataca o governador do Rio de Janeiro porque acha que ele está conspirando para incriminar sua família, mas não diz uma palavra sobre a violência policial que o governador estimula, que mata milhares de pessoas, nem sobre as milícias que exploram e também matam a população em sua cidade. 

O que Bolsonaro tem na cabeça não é um Estado mínimo e uma população armada para se defender, mas um Estado máximo, sem limites, controlado por um ditador acima das leis e apoiado por milícias armadas dedicadas a manter a oposição acuada e liquidar todas as outras formas de autoridade pública (o “casamento” com o liberalismo de Paulo Guedes é de mera conveniência, como foi o casamento com Sérgio Moro).  Mussolini conseguiu isso na Itália, com um discurso violento contra as instituições e a mobilização de pequenos grupos de ex-militares e marginais, os Fasci Italiani di Combattimento. Explorando a crise econômica e social depois da Primeira Guerra, os fascistas foram aos poucos ganhando adeptos e culminaram na famosa marcha sobre Roma de 1922, que forçou o governo a nomeá-lo como Primeiro Ministro, posição a partir da qual, metodicamente, foi desmontando as instituições e implantando sua ditadura pessoal, até a aventura da Segunda Guerra Mundial. 

Como mostra Scurati, as milícias fascistas que chegaram a Roma eram um bando caótico e desorganizado que poderia ter sido facilmente detido pelo exército, que no entanto ficou confuso e acuado e não saiu em defesa do Estado de direito. O poder crescente de Mussolini não se devia somente à oratória e à força amedrontadora das milícias, mas, por trás, a negociações secretas e troca de favores com os mesmos grupos políticos e econômicos que denunciava em público, e um processo regular de liquidação dos aliados que ousavam voo próprio.

Não sei se este modelo está sendo seguido deliberadamente, mas é difícil que a semelhança seja mera coincidência.

Acesso à Internet dos estudantes de nível superior

O uso de recursos de internet para manter vivas as atividades das instituições de nível superior tem sido  objeto de controvérsias, colocando, por um lado, os que advogam, como eu, que isto deve ser feito, apesar das dificuldades que existem, e os que se opõem, argumentando que isto aumentaria ainda mais a desigualdade no ensino superior, já que os estudantes de baixa renda não teriam condições de fazer uso destes recursos.  A Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Contínua de 2018 traz perguntas específicas sobre uso de computadores e acesso à Internet, e permite que se verifique até que ponto esta desigualdade realmente existe.

A PNAD estima que existem 7.8 milhões de estudantes de nível superior no Brasil, 74% na rede privada. A distribuição de renda dos estudantes nos dois setores, público e privado, é semelhante, com mais estudantes de renda mais baixa no setor público, e bem melhor do que a da população em geral, embora existam estudantes em todas as faixas de renda.

Educação Superior e renda familiar per capita

Posse de computador, tablet ou celular

No total, 83% dos domicílios dos estudantes têm computador ou, em menor número, tablets em casa. A posse de computador varia com a renda das famílias, indo de 58% entre os mais pobres até 98% entre os mais ricos, sem muita diferença entre os que estudam na rede pública ou privada. Em termos absolutos, 1.2 milhões dos domicílios dos estudantes de nível superior, e 172 mil na rede pública, não tem nem computadores nem tablets. Por outro lado, praticamente todos têm telefone celular.

Acesso à Internet

Por um meio ou outro, 98.2% dos estudantes de nível superior declaram que acessam a internet. Dos que não acessam, metade dizem que não o fazem porque o equipamento é caro, e 18% porque acessam de outro lugar que não o domicílio, e 88.5% dizem que acessam por conexão de banda larga.

Conclusão

Os dados mostram que praticamente todos os estudantes de nível superior têm acesso à Internet, mas cerca de 17%, sobretudo nos níveis de renda mais baixa, só têm acesso por telefone celular. Isto coloca uma limitação no uso de sistemas mais complexos de educação à distância, mas não chega a ser um impedimento.

A questão que se coloca é sobre o que seria mais adequado, proporcionar educação à distância para a grande maioria que tem como acessá-la, desenvolvendo um trabalho adicional de apoio aos que não têm (por exemplo distribuindo tablets de baixo custo), ou privar a grande maioria do acesso à educação, para não aumentar a desigualdade.

Os Dados do IBGE e a Globonews

Muito ruim a matéria da “Globonews Em Pauta” de ontem, 23 de abril de 2020, sobre a Medida Provisória que dá ao IBGE acesso aos endereços e telefones das pessoas que constam das listas das companhias telefônicas. Ao invés de ouvir o IBGE, ou alguém que entende de estatísticas públicas, todos os comentaristas, com a exceção de Mônica Waldvoguel, que tentou timidamente explicar do que se trata, partiram para uma interpretação totalmente paranoica da medida, como se fosse uma grande ameaça à privacidade da população brasileira. 

Os comentaristas ignoraram que o IBGE, para a realização do Censo Demográfico, já dispõe de uma ampla listagem dos nomes e endereços da população brasileira, obtidos por diversas fontes diretas e indiretas. O Censo Demográfico é a base para a amostra da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, que dá informações indispensáveis sobre emprego, renda, educação, fertilidade, condição de vida das famílias, etc., mas está dez anos desatualizado, e não é possível fazer boas amostras se não conhecemos o universo.  Com a suspensão do Censo de 2020, o IBGE precisa de uma listagem atualizada de informações sobre a população brasileira para atualizar a amostragem e fazer a PNAD por telefone, já que não será possível fazer as pesquisas da forma tradicional, de porta em porta. O IBGE também mantém um cadastro de todas as empresas brasileiras, com nome, CPF, faturamento e tipo de atividade, que usa para suas pesquisas regulares sobre a economia brasileira, que são a base para o cálculo do Produto Interno Bruto. Os dados que está solicitando agora só complementariam os que já têm, com a vantagem de permitir a pesquisa por telefone que se tornou a única possível no momento.  

Gerson Camarotti, jornalista geralmente bem informado e sensato, disse estranhar que o IBGE esteja com tanta pressa para obter os dados para fazer a pesquisa sobre o COVID 19, porque afinal não tem os testes, que são a única coisa que importa. Se tivesse buscando as fontes adequadas, como sempre faz em suas excelentes análises políticas, teria entendido que o IBGE não pretende substituir as pesquisas epidemiológicas do Ministério da Saúde, mas incluir questões sobre a  COVID  19 na PNAD contínua, para conhecer o impacto social e econômico da epidemia sobre os diversos segmentos da população e regiões do país. Isto pode ser feito com perguntas sobre a condição de saúde das pessoas, distanciamento social, assim como falecimento de familiares, como se faz normalmente. Além deste dado novo, a PNAD divulga mensalmente dados sobre emprego e muitos outros que já estão atrasados, e precisam ser coletados para evitar o “apagão” estatístico que pode deixar o país às cegas para levar adiante as políticas econômicas, sociais e assistenciais que serão cada vez mais indispensáveis.

“Ah, mas este governo não é confiável, e o IBGE pode usar estes dados para manipular as pessoas, ou entregar para alguém uma produzir uma versão brasileira do Cambridge Analytica que ajudou a campanha do Trump”.

  A prevalecer este argumento, será melhor então fechar o IBGE, e também a Receita Federal, que detém uma base de dados bastante completa de todas as informações econômicas da população brasileira, sem falar de outras bases de dados como o Cadastro Único usado para administrar o Bolsa Família e outros programas sociais do governo, que está sendo atualizado e usado para distribuir o auxilio de emergência para a população carente. Existem outras bases de dados importantes com informações individualizadas, como as do INEP, do Ministério da Educação, com mais de 50 milhões de estudantes e professores, e o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, também com dezenas de milhões de nomes. Se o IBGE pode usar mal os dados, por que não os outros? Vamos fechar todos? E o que fazer com as 3 ou 4 companhias telefônicas que já têm estes dados em mãos? E as companhias de eletricidade, que dispõem dos endereços de todos os domicílios?   

O fato é que agências de estatística pública necessitam de cadastros atualizados de empresas e pessoas para funcionar. Em muitos países da Europa Ocidental, estes dados, sempre atualizados nos registros administrativos, são integrados e permitem um acompanhamento permanente das condições econômicas e sociais da população, dispensando os censos decenais e reduzindo ao mínimo a necessidade de bater à porta das pessoas pedindo informações adicionais. O IBGE tem a obrigação legal e uma tradição sólida de proteger as informações individuais de empresas e pessoas que detém, e isto não seria diferente com as listas telefônicas. A proteção à privacidade dos dados individuais deve ser feita pelo fortalecimento e blindagem das instituições responsáveis pela administração e uso dos dados, e não por sua mutilação. Não se pode, em seu nome, ir ao extremo de furar os olhos e cegar o país.

Precisamos das estatísticas do IBGE para ajudar a vencer o COVID-19

A crise do COVID-19 obrigou o IBGE a postergar o Censo Demográfico para 2021, e não está permitindo que seus entrevistadores percorram as residências coletando as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, que é a principal fonte de informações do país sobre emprego, educação, renda e condições de vida da população brasileira. Sem estas informações, os governos federal, estaduais e municipais ficam às cegas para voltar a normalidade e desenvolver as políticas fiscais, sociais e econômicas que se tornarão necessárias.

Para evitar esse apagão estatístico, o IBGE solicitou ao governo uma Medida Provisória que lhe dá acesso aos nomes, endereços e números de telefone que constam das bases de dados das operadoras de telefonia no Brasil.  Essas informações são as mesmas que eram antes publicadas nas “páginas amarelas” ou catálogos de telefones, não incluem nenhuma informação adicional, e são a única alternativa que o Instituto dispõe hoje para elaborar uma amostra significativa da população brasileira e conduzir suas pesquisas por telefone.  Além das pesquisas regulares, o IBGE fez um convênio com o Ministério da Saúde para  uma pesquisa domiciliar especial sobre o COVID-19, que deve ser um instrumento fundamental para a saída da situação de confinamento que deve ocorrer no futuro próximo.

Preocupadas com a proteção das pessoas contra a invasão abusiva de sua privacidade, algumas instituições entraram na Justiça para impedir que o IBGE tenha acesso a essas informações. Esta preocupação não se justifica, porque os dados não incluem informações pessoais, serão usados unicamente para fins estatísticos, não podem ser passados a terceiros para qualquer outro uso, e o IBGE tem uma prática estabelecida de garantir a confidencialidade dos dados individuais que coleta em suas pesquisas, estabelecida por lei.

Por estas razões, os abaixo-assinados, ex-presidentes do IBGE, apelamos às instituições impetrantes, ao Judiciário e ao Congresso para que apoiem a Medida Provisória e evitem, assim, o apagão estatístico que tornaria muito mais difícil o controle da epidemia, a volta à normalidade e a recuperação das políticas sociais de que tanto necessitamos.

Rio de Janeiro, 20 de abril de 2020

Edmar Bacha 

Sérgio Besserman

Eurico de Andrade Neves Borba

Eduardo Augusto Guimarães 

Silvio Minciotti 

Charles Mueller

Edson Nunes

Eduardo Nunes

Simon Schwartzman

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